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O que os livros de cabeceira de Bolsonaro e Haddad têm a nos dizer

Haddar, símbolo da conciliação, e Bolsonaro, a representação da violência. Foto: montage Biblioo

Quando da votação do impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o à época deputado federal Jair Bolsonaro dedicou seu voto a favor  de um conhecido torturador do período da ditadura militar e ex-chefe do DOI-Codi, o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015.

Além de torturador e sequestrador (para ficar apenas nas duas condenações que lhes foram impostas pela Justiça brasileira) Brilhante Ustra é também autor de uma obra (se é que se pode chamar assim) que viria a se tornar o livro de cabeceira do agora presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), conforme revelou durante o programa Roda Viva da TV Cultura este ano.

“A Verdade Sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, título do livro de Brilhante Ustra, traz o ponto de vista dos militares e de seus apoiadores sobre o que ocorreu durante a ditadura, focando sua maior parte nos supostos atentados que eram praticados por grupos da esquerda durante aquele período.

No livro, o coronel apresenta dados e documentos para tentar justificar que o regime militar não estaria enfrentando pessoas que desejavam derrubar um regime autoritário para substituí-lo por uma democracia, mas terroristas que desejavam implementar uma ditadura comunista (tal qual os argumentos que os bolsonaristas têm se valido atualmente para justificar os seus atos de violência).

Cada de “A verdade sufocada”, de Brilhante Ustra. Foto: divulgação

Em sessão da Comissão Nacional da Verdade, em 2013, Brilhante Ustra negou ter cometido crimes e disse que recebeu ordens de seus superiores no Exército para fazer o que foi feito, e que suas ações à frente do órgão tinham como objetivo o combate ao terrorismo, afigurando-se uma verdadeira “banalização do mal”. Qualquer semelhança com Eichmann em Jerusalém não é mera coincidência.

Também em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, exibido na última segunda-feira, Fernando Haddad (PT), adversário de Bolsonaro, foi igualmente perguntado sobre o seu livro de cabeceira. O candidato revelou que se tratava de “Memórias Póstumas de Brás Cubas“, livro escrito por Machado de Assis e publicado em 1881. Machado é apontado por muitos como o maior escritor brasileiro de todos os tempos.

“Memórias Póstumas” influenciou diversos escritores aos longo do tempo e é considerado uma das obras mais revolucionárias e inovadoras da literatura brasileira. Mesmo depois de mais de um século de sua publicação original, ainda tem recebido inúmeros estudos e interpretações, adaptações para diversas mídias, além de traduções para outros idiomas.

Se pudéssemos fazer um julgamento de valor acerca dos candidatos à presidência da República a partir de suas leituras (e acho que isso é absolutamente possível), veremos a diferença gritante entre os dois. De um lado a personalidade autoritária e violenta de Bolsonaro e de outro o estilo conciliador e democrático de Haddad.

Assim como o seu mentor, Bolsonaro enxerga o mundo a partir de uma perspectiva bélica, onde os seus opositores, os “vermelhos”, os comunistas, as minorias, os movimentos sociais etc. devem ser suplantados. “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”, disse Bolsonaro em ato na Avenida Paulista recentemente.

Como esse e outros pensamentos absurdos suscitadas pelo candidato ao longo dessa campanha, viu-se ressurgir o slogan da ditadura: “Brasil ame-o ou deixe-o”. Viu-se, também, mesmo antes do pleito final, ações injustificadas do Poder Judiciário à acossar as instituições, movimentos sociais e estudantis, proibições de toda ordem, atentados ao direito à livre manifestação do pensamento etc.

“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, tem centenas de edições. Imagem: divulgação

De volta aos livros de cabeceira dos nossos presidenciáveis, temos também as diferenças entre os perfis dos candidatos a partir não só das publicações que lhes servem de inspirações, mas também dos seus autores. De um lado Machado de Assis, um intelectual sagaz e refinado que encontrou na literatura um instrumento de crítica a sociedade aristocrática e conservadora de seu tempo.

Negro, filho de família pobre, com escolaridade irregular, Machado ascendeu socialmente se valendo de sua notável capacidade intelectual, o que garantiu a capacidade de transitar e escrever em praticamente todos os gêneros literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário, o que também lhe permitiu assumir diversos cargos públicos.

“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” – Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis.

Brilhante Ustra, além de não ser necessariamente um escritor, foi (e continua sendo para muitos, sobretudo aqueles que foram violentados por ele) a encarnação da violência e do mal. Conforme decisão judicial e depoimentos amplamente divulgados por suas vítimas, Brilhante Ustra não só sabia, como era cumplice nas ações criminosas que ele tentou tornar atos de heroísmo nos livros que viria a publicar.

No próximo domingo milhões de brasileiros irão às urnas escolher entre um destes perfis. Votará pela possibilidade de continuar discordando, votando em Haddad 13, ou apertar o botão verde rumo ao desconhecido, escolhendo Bolsonaro 17. De uma lado, é preciso unidade da esquerda. De outro, é fundamental a resistência de homens e mulheres destes rincões do Brasil que por algum instante chegou a pensar que existe alguma possibilidade de progresso sem liberdade.

De nossa parte, preferimos a sagacidade e a ironia fina de Machado à desumanidade e violência de Ustra. Que possamos continuar tendo a possibilidade de leituras livres, de manifestações do pensamento sem censura, de livros e bibliotecas sem limitações, coações ou sanções. Que a liberdade prevaleça e que o futuro nos reserve dias menos sombrios.

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