A ideia do livro morre aos poucos na boca de uns e ganha cada vez mais impulso nas mãos de quem sabe como ressuscitá-los. No momento atual, que tudo é hiperconectado, onde a internet e as tecnologias tomam conta de cada canto de nossas vidas, alguns insistem em dizer que livros e bibliotecas estão fadados ao esquecimento. Na minha opinião, apesar do clichê, Lavoisier se mostra mais do que pertinente ao dizer que “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Dentre as muitas transformações em sua trajetória, o livro acaba embarcando algumas vezes em outros universos metamórficos, sendo um deles o universo das artes. Desse relacionamento entre duas áreas tão mutáveis nasce o livro de artista. No entanto, o livro de artista vai além do somatório do livro com o ramo das artes. Não é sobre livros de artes que se trata aqui. É da própria metamorfose do livro, a partir da arte.

O livro de artista é um corpo sem forma fixa e em constante mudança. Não possui limites, barreiras, parâmetros ou completas definições. Trata-se de uma obra de arte que se incorpora ao formato do livro ou, então, que faz do livro sua base para dar vida a uma criação artística.

Não existem regras aqui, não são contadas páginas, não existe uma estrutura a seguir, não existem restrições ao se criar. É o material que é tudo e nada ao mesmo tempo sendo um dos grandes desafios para os bibliotecários que lidam com essas coleções.

Pouco estudado ainda pela biblioteconomia, é um tipo de material que ainda não possui muita visibilidade do grande público, contradizendo uma das teorias que envolvem seu surgimento: de que se trata de um rompimento com o mercado da arte.

A teoria em questão, abordada no texto “O livro de artista, o colecionador e a coleção no museu: um itinerário intersubjetivo da coleção de livros de artista de Paulo Herkenhoff no Museu de Arte do Rio” de Andréa da Silva Barboza e Gustavo Silva Saldanha, é de que os artistas, buscando que suas obras caminhassem de forma mais livre e alcançassem um maior número de pessoas, começam a criar estes objetos que por muitas vezes são feitos em tiragens muito mais extensas do que uma obra de arte tradicional, o que o confere a possibilidade de ser mais visto e mais compartilhado (em teoria).

Na realidade isto se tornou contraditório, pois o mercado da arte toma posse desta criação, fazendo com que haja um encarecimento dessas obras e que se criem coleções dentro de espaços culturais onde a arte em sua forma mais “tradicional” já se encontrava (e de onde nesta teoria os artistas desejavam seu escape). Com a diferença que várias instituições podem possuir exatamente o mesmo livro de artista, pois eles são replicados como originais, ao contrário da maioria dos outros tipos de arte e suas produções, como pintura e escultura, onde cada obra é única.

O livro de artista pode assumir várias formas, além de poder se apresentar no formato códice (o formato de livro que entendemos como um livro comum) ou no formato objeto. Os mais comuns são o livro-objeto, o catálogo-obra, o antilivro, o livro ilustrado, o poema-livro e o livro fotográfico.

O livro “Colidouescapo”, de Augusto de Campos, uma das obras mais importantes deste segmento. Foto: divulgação

Uma ideia muito importante (e muito difícil para os profissionais que lidam com essas coleções, e até mesmo para o público no geral) é a de que o conceito não define a ideia, ou seja, não é por se tratar de um catálogo-obra, por exemplo, que necessariamente este material vai ser livro de artista.

Alguns nomes e obras de artistas brasileiros que mais se destacam neste campo são: Augusto dos Campos, com Colidouescapo, Caixa Preta e Poemóbiles (estes dois últimos em parceria com Julio Plaza); Wlademir Dias-Pino, com poesia/poema e Pré história: uma leitura projetada; Artur Barrio, com Fac-Símile e Livro Carne; entre outros.

No fim, o livro de artista se torna um grande emaranhado de conceitos sem fim, de desenhos sem linhas e de estruturas não convencionais. Sua grande diferença de um livro comum é a intenção de criação. Segundo umas das obras de Ulisses Carrión, “A nova arte de fazer livros”, um autor de um livro comum não escreve um livro, ele escreve um texto que por conveniência é colocado em um livro (códice) para ser de mais fácil acesso: a forma do material não interessa ao autor, apenas sua disseminação.

Já no livro de artista o autor pensa cada processo, desde o texto (caso vá a conter algum) até o design, os cortes da página, o formato, podendo inclusive, fazer intervenções artísticas num códice impresso já existente de autoria de outra pessoa.

Um livro de artista que representa esse pensamento de criação total da forma e que ao mesmo tempo ainda não é muito conhecido é o “Museu espetacular de 1 dia: (catálogo daquilo que não é museu)”, de Felipe Braga. Este livro se trata da montagem de algo além de uma exposição, mas sim de um museu em si. Felipe idealiza uma espécie de catálogo do museu, que se localiza em São Paulo, e sua exposição, apresenta desenhos das plantas da estrutura, imagens das salas e suas obras.

Onde está o diferencial nisso e porque ele é livro de artista? Simplesmente no fato de que nada existe! Felipe cria um museu fictício do zero e todas as exposições dentro dele guiam o espectador através desse mundo inventado, e no final do dia ateia fogo a tudo e uma fumaça preta cobre o céu de São Paulo.

É importante ressaltar aqui que um livro de artista não é o livro de um artista, nem um livro de artes. Ele é um livro com intervenções próprias e específicas.

Como identificar o ser e o não ser? Como saber quando se trata de um livro de artista e quando se trata apenas de um catálogo um pouco diferente? Não há fórmula para isso ainda (e creio que nunca haverá). Não se delimita a arte e nem a criação, então porque delimitar o livro de artista? A identificação deste tipo de material é algo ainda muito delicado, existe inclusive a possibilidade de uma pessoa possuir um livro de artista em casa e acreditar que se trata de um livro comum.

A Biblioteca do Museu de Arte do Rio possui uma das mais importantes coleções de livros de artista do Brasil. Foto: Soraia Magalhães / Caçadores de Bibliotecas

A fadainflada, por exemplo, é uma editora independente que produz materiais que podem muito bem ser considerados livros de artista a um preço totalmente acessível, fazendo com que qualquer um possa ter um exemplar de obra de arte em forma de livro na sua coleção.

Atualmente as coleções de livros de artista de mais fácil acesso e mais conhecidas no Brasil se localizam em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Em Minas, a coleção pertence à Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde, segundo o blog da Instituição, foi a primeira coleção do tipo montada em uma universidade pública no país tendo início em 2009, sendo atualmente a maior coleção em solo nacional.

Já no Rio de Janeiro, a Biblioteca do Museu de Arte do Rio (MAR) mantém em sua guarda uma extensa coleção que em sua maior parte foi doada da coleção pessoal de Paulo Herkenhoff, ex-diretor cultural da instituição. Além desses locais, outras instituições também possuem alguns exemplares como o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e o Museu de Arte Moderna (MAM), ambos do Rio.

Um grande desafio para os bibliotecários é como tratar descritivamente um livro de artista de modo acessível para o público. Como instigar a curiosidade desse material através de um catálogo online, apenas com a descrição?  Como descrever algo que não se consegue definir?  Retomando Lavoisier, poderíamos dizer que livro de artista é uma nova forma que a arte assumiu, incorporando o livro, para se reinventar.

Trata-se de uma obra de arte sim, porém de um tipo diferente ao que estamos acostumados a idealizar, pois seu contato com o público se dá de forma mais direta e permite uma maior interação do espectador com a obra, afinal de contas não deixa de ser um livro. Como já dizia Ranganathan, “os livros são para serem usados”: eu singelamente ainda acrescentaria a este caso usados e apreciados, como arte.

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