Em agosto de 2019 proferi uma palestra em um evento da Biblioteca Pública Municipal de São Leopoldo (RS), cujo título foi “Acesso à informação e mediação de leitura em um contexto de censura: reflexões por meio da literatura”. A proposta era a seguinte: olhar para alguns processos históricos de censura pelo prisma da literatura. Então, se o período era Idade Média: tome este O Nome da Rosa; Segunda Guerra? A Bibliotecária de Auschwitz; Distopia? Tá na mão o Fahrenheit 451.
Enfim, a ideia era muito simples e essencialmente “coisa de bibliotecária”: mediar leituras, indicar livros que abordassem censura de livros e assim entrelaçá-los com contextos que, de alguma forma, pudessem tocar e alcançar aquele público. Obviamente, um público bastante amistoso, já que estava lá para me ouvir falar exatamente sobre isso. O mais interessante foi que surgiram muitos outros livros nas vozes dos participantes e saímos todos cheios de “dicas de leitura”.
Volto um pouco, então, para a minha motivação em montar este pequeno e despretensioso material: Um general na biblioteca, conto de Ítalo Calvino. Neste conto o Estado, muito fervoroso em questões militares, decide sitiar e avaliar (para censurar) a maior biblioteca do país e todos os seus livros.
Não quero dar spoiler sobre o final do conto, mas preciso dizer que nesta situação quem salva a pátria (ou pelo menos, a biblioteca) é o bibliotecário, cujo nome é Crispino, que faz seu trabalho de mediação e serviço de referência com maestria, mostrando que o acesso à leitura e à própria história podem promover transformações incríveis em pessoas e países.
Na história de Calvino os livros censurados seriam aqueles que “[…] contivessem ideias contrárias ao prestígio militar.” Já o livro que menciono no título, Index Livrorum Prohibitorum, da Igreja Católica, nascido em 1559, primeiramente expurgava livros protestantes, como forma de eliminar a “concorrência”, mas logo passa a proibir também livros que atentem contra a moral.
Desta forma, ao longo dos cerca de 400 anos que o Index vigorou e se atualizou, diversas obras que você, leitor, provavelmente leu estiveram proibidas: Os Miseráveis, do Victor Hugo; O segundo sexo, de Simone de Beauvoir; Madame Bovary, de Gustave Flaurbert; além de obras completas de autores como Émile Zola e Balzac, por exemplo; sem mencionar livros mais “comprometedores”, como A História da Inquisição, de Philipp van Limborch.
Avançando alguns séculos, nem Freud pôde explicar a queima de livros que os nazistas fizeram em 1933, teria dito ele: “Que progressos estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, se contentam em queimar meus livros”. Já aqui no Brasil, pela mesma época Getúlio Vargas queimava livros do Jorge Amado e José Lins do Rego por “propagarem o Credo Vermelho”.
Algumas décadas depois, durante a Ditadura Militar, houve cada vez mais censura, nas artes e na imprensa. Inclusive, deixe-me contar que, enquanto pesquisava para montar a palestra, encontrei na biblioteca onde eu trabalho um livro de 1975 (Censura e liberdade de expressão, de Coriolano Fagundes) que explicava todas as vantagens (sic) de uma sociedade com censura, afirmando, por exemplo, que: “[…] a censura, contrariamente ao pensamento corrente, é filha da democracia e não da ditadura.”
E ainda, ao longo do livro, procura comprovar como a censura foi inestimável em todas as épocas e em todos os países, afinal, é necessária para que se evitem maus costumes, ofensas à dignidade nacional e outras obscenidades. Minha parte favorita é quando o autor afirma que: “Na Idade Média, com a Inquisição, quando havia perfeita aliança entre a Igreja e o Estado, a censura teve seus dias áureos, estimulada pelo surgimento da Imprensa.” [faltam caracteres para problematizarmos tudo que essa frase representa].
Obrigada, Chico Buarque e demais artistas, que souberam usar as palavras de modo mais inteligente que os censores podiam compreender, assim tivemos Cálice e Apesar de você, para dar apenas alguns exemplos.
Depois desse ponto, minha palestra se voltava para as distopias como Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, onde quem lê literatura e poesia é considerado “selvagem”; ou o já mencionado Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, no qual os livros eram queimados; e finalmente chegando ao Conto da Aia, da Margaret Atwood, em que todo material de leitura ou escrita é proibido, às mulheres.
Seja na ficção, seja na história, a censura segue um mesmo modus operandi: o censor tem seus motivos e explicações, sempre imbuído da posição de salvador e protetor. Ora é a religião que se sente ameaçada, ora é a moral. E quanto mais se cultua a se admira a atividade do censor, mais a censura se propaga e se manifesta em diferentes escalas.
Não muito tempo atrás, um museu de Porto Alegre recebeu a exposição chamada Queer Museu. Não só a exposição foi censurada por aqueles que acreditam que manifestações Queer ou LGBTQIA+ são essencialmente promíscuas e “devemos proteger nossas crianças”, como o livro da exposição foi censurado em bibliotecas públicas aqui do estado por membros das Câmaras de Vereadores.
É importante lembrar que um vereador não pode sobrepujar tecnicamente um servidor público de carreira, as quais seriam as bibliotecárias, que tiveram de defender a obra e resistir, sem subtraí-la de seus acervos.
Ano passado, uma polêmica se instaurou na nossa bolha biblioteconômica quando um boato surgiu de que uma bibliotecária da cidade de Nova Hartz (interior do RS) teria censurado a participação na Feira do Livro a obra Enfim, capivaras da Luísa Geisler. A informação foi apurada pelo CRB-10 e se constatou que a censura partira (mais uma vez) de um vereador, e para piorar, nem bibliotecária o município tem (tramita processo!).
O Conselho pôde então isentar nossa classe desta culpa e repudiar a proibição, mas o livro permaneceu censurado e a participação da escritora no evento foi vetada. Há aí uma perda que não se recupera, não necessariamente em relação de acesso ao livro, pois ele se tornou ainda mais popular (eu mesma comprei o e-book, pois não poderia aguardar a entrega), mas ao fato de que permitimos que isso aconteça.
Outro caso famoso foi com o HQ Vingadores: a cruzada das crianças. Por causa do beijo entre os heróis Wiccano e Hulkling, que são namorados, o prefeito do Rio de Janeiro queria a retirada do livro da Bienal, pois seria impróprio para crianças. Aí, me parece, que além da habitual interpretação errônea que muitos fazem acreditando que quadrinhos da Marvel ou da DC são a mesma coisa que Turma da Mônica, logo, são para o público infantil, houve alguma confusão com o fato da palavra crianças constar no subtítulo.
Embora ainda não tenhamos chegado em Rondônia, quero aprofundar um pouco neste caso, sobre a nossa função como bibliotecárias(os). Num universo tão vasto de gêneros literários e formas de narrativas, temos de saber diferenciá-las e valorizá-las cada uma a seu modo, já dizia Ranganathan.
Não podemos, portanto, colocar todos os HQ do mundo no mesmo saco e esperar que eles atendam a todos os perfis de leitoras e leitores. Assim, um HQ da Marvel não necessariamente é para criança, mas mesmo que fosse, um beijo é um beijo, não há nenhuma justificativa para a sua censura, senão a homofobia, que em grande parte dos casos, atende pelo nome de fundamentalismo religioso.
Eis então que em 2020 surge o index de Rondônia, o qual estaria proibindo, entre outros: Machado de Assis, Caio Fernando Abreu, Mário de Andrade, Rubem Fonseca, Edgar Allan Poe… e por aí vai. Aderindo ao estilo do index original, proíbe inclusive toda a obra de Rubem Alves. A justificativa: são inadequados às crianças e jovens. Mais uma vez, a atitude de proteger.
A administração do estado volta atrás e diz que eram fake News, mas houve evidências de que a tentativa de censura foi real. Lamentavelmente, no dia que iniciei a escrita deste texto, vejo a notícia de censura de livros pelo governo estadual de São Paulo, sendo que estes seriam do projeto (que custa zero ao estado) de remição de pena pela leitura. Justificativa? De que havia um livro inadequado na lista, mas não foi informado qual.
Assim, percebo, alarmada, que se minha palestra fosse hoje, menos de um ano depois, eu teria muitos mais casos do presente para exemplificar a censura de livros. Observei na última semana, entretanto, um movimento de colegas bibliotecárias e bibliotecários enaltecendo as obras censuradas, divulgando-as e dizendo: venham para a biblioteca que aqui tem!
Sim, aqui tem que ter cultura, liberdade, democracia e resistência também. A ideia de biblioteca não pode estar dissociada da ideia de democracia. É preciso que deixemos muito transparente em nossas atividades e posturas profissionais que governantes não ditam nosso fazer profissional, quem dita é nossa ética e juramento. Nem sempre é fácil, por isso, se eu pudesse dar um conselho, seria: nos inspiremos no bibliotecário Crispino.
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