O acervo de uma instituição de memória é importante, porque é sua razão dela existir, mas sem um bom corpo técnico e investimentos, nada é possível. A afirmação é de Maria Fernanda Curado Coelho, ex-coordenadora de Preservação da Cinemateca Brasileira. Graduação em Cinema, Rádio e TV pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), pós-graduada em Museologia pelo Instituto de Museologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP) e mestre em Ciência da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Maria Fernanda trabalhou na Cinemateca de 1979 a 2015, quando se aposentou, conservando uma profunda experiência com acervos audiovisuais.
Atualmente ela desenvolve dissertação de mestrado na pós-graduação (máster) “Arte, Museo y Gestión del Patrimonio Histórico”, na Universidad Pablo de Olavide – Sevilha, Espanha. Desde 2008 é professora convidada da pós-graduação da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, no Núcleo de Gestão de Arquivística, onde empreende esforços para formar profissionais qualificados para lidar com este tipo de material, mesmo que o mercado esteja fechado para absorvê-los. “Como absorver essa mão de obra altamente especializada no momento em que a Cinemateca, que é o maior acervo do Brasil, não tem nenhum técnico dentro de sua casa?”, questiona.
Nesta entrevista concedida à Biblioo, Maria Fernanda explica que o Brasil não tem a tradição de investir de forma permanente na Cultura. “Em geral um governo investe muito e outro não investe nada. E a gente, nos últimos tempos, tem uma sequência de pequenas tragédias que se somam numa grande tragédia”, explica ela se referindo aos “sinistros”, especialmente incêndios e alagamentos que atingiram, nos últimos anos, não só a Cinemateca Brasileira, como uma série de outras instituições culturais do Brasil, como foi o caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro, consumido pelas chamas e pelo descaso político em 2018. Confira a baixo a íntegra da entrevista.
Você foi coordenadora de Preservação da Cinemateca Brasileira de 2000 a 2008 e em 2014. Poderia, por favor, nos contar um pouco sobre esta sua experiência com um dos acervos audiovisuais mais importantes do Brasil?
A Cinemateca Brasileira é sim um dos principais acervos audiovisuais do Brasil, junto com outros que possivelmente guardam uma parte bastante expressiva da história do cinema brasileiro. A Cinemateca tem no seu acervo tudo que restou do cinema mudo brasileiro, por exemplo. Tem muita gente que nem sabe que o Brasil produzia filmes, na época, silenciosos, mas produzia sim. Acho que as lembranças mais remotas da maioria das pessoas vão até a década de [19]50, com [a Companhia Cinematográfica] Vera Cruz [que produziu e distribuiu filmes entre 1949 e 1954], com Tico-tico no fubá [filme brasileiro de 1952], o Cangaceiro [filme brasileiro de 1953].
A Vera Cruz também está na Cinemateca. É um acervo que esteve lá desde a década de [19]70, então é um acervo bastante preservado. Mas, o acervo da Cinemateca é um acervo bastante representativo da história do cinema brasileiro. Ele congrega filmes de ficção, documentários, tem muitos filmes domésticos, tem bastante cinejornais, alguma coisa de publicidade e propaganda, [que] não é a principal coleção. Ela tem realmente bastante especificidade na cinematografia de ficção do cinema brasileiro que, em geral, é o que domina, o que a gente tem notícias, que sai na mídia e o que aparece mais.
Estes grandes acervos, em geral, têm este tipo de perfil, de filmes de ficção, de filmes que foram lançados, documentários, mas muito dos filmes que foram para o mercado. E atualmente a gente está numa tendência bastante forte de desenvolver acervos regionais, o que é interessantíssimo, mas acho que esse é um segundo tema para essa entrevista.
Eu gostaria de explorar um pouco mais sobre a sua experiência com este tipo de acervo. O que que você viu, como testemunha ocular, durante todos estes anos na Cinemateca, que seria importante destacar, especialmente para quem não conhece a instituição e os acervos que estão lá guardados?
Antes de mais nada, acho que sempre que a gente vai falar de preservação de audiovisual, a gente tem de reconhecer que a gente trabalha com um objeto que é muito frágil, uma película cinematográfica, uma fotografia, uma fita de vídeo, esses suportes analógicos, eles, em geral congregam, no mesmo objeto, materiais orgânicos e inorgânicos, o que implica num equilíbrio muito delicado. Então em qualquer desequilíbrio dessas camadas, das várias camadas, que são como sanduiches, que tem esses suportes, implica, necessariamente, num processo degenerativo.
E, no mundo analógico, quando você perde o suporte, você perde a obra. Então ter controle sobre a materialidade significa não perder conteúdo. No mundo digital essa materialidade não se perde, mas ela assume outras características. Dessa forma você tem o mesmo arquivo e pode ter em “n” suportes diferentes, que você tenha a mesma obra. E, de qualquer forma, uma outra coisa importante da gente perceber, é que quando a gente trabalha com uma arte industrial, no desenvolvimento da nossa cultura, a gente trabalha com uma arte de reprodução. Então tudo que se faz em audiovisual, é reproduzido. A gente filma com um material, ou grava com um material, a gente edita com outro material, que já é uma duplicata, faz cópia de difusão, que já é uma outra duplicata.
Então a gente tem várias gerações da mesma obra, o que compensa um pouco a fragilidade. Se você perde um material, você pode ter a mesma obra em outro material. Então dentro deste contexto, o acervo audiovisual no Brasil precisa, necessariamente, de um clima estável para manter esse equilíbrio entre as várias camadas que falei que existem. E isso é exatamente o oposto o que a gente tem na mão em parte do nosso país. A gente tem um ambiente quente e úmido, com alterações bruscas. E tudo que o suporte audiovisual precisa é de frio, controle de umidade e estabilidade, não ter estas alterações bruscas.
No nosso caso, sempre implicou num investimento, necessariamente, de conservação para que não se perdesse o conteúdo. E isso é um investimento permanente. E um investimento permanente também não combina com a cultura do Brasil. O Brasil não tem a tradição de investir em Cultura permanentemente. Em geral um governo investe muito e outro não investe nada. E a gente, nos últimos tempos, tem uma sequência de pequenas tragédias que se somam numa grande tragédia. O governo [de Michel] Temer, a primeira coisa que fez foi acabar com o Ministério da Cultura [MinC], que voltou por causa da grita geral. Quando sobe o atual presidente [da República, Jair Bolsonaro], a primeira coisa que também faz é acabar com o Ministério da Cultura, que passou [como Secretaria Especial de Cultura] pelo [Ministério] da Cidadania e agora está no [Ministério] do Turismo. Isso nos mostra um pouco o que eles entendem por Cultura: mercado e ponto.
Quando a gente pensa, então, em acervo, que tem o objetivo de permanência de longo prazo, quer dizer, a gente não preserva para nada, a gente preserva para a geração atual e para as futuras… No âmbito museológico se fala de uma referência de cem anos. A gente tem a necessidade de criar condições para que essa informação, com a maior integridade possível, chegue aos cem anos. Então a gente tem material frágil, num clima inóspito e num contexto cultural em que não há investimento. Isso nos traz grandes dificuldades para poder dar essa longevidade ao audiovisual, que implica em ações diárias, em outras diárias, que somadas vão conseguir chegar numa preservação de longo prazo.
Isso é verdade em qualquer acervo, mas quando você chaga num acervo grande, como na Cinemateca Brasileira, como área de audiovisual do Arquivo Nacional, a Cinemateca do MAM [Museu de Arte Moderna] do Rio de Janeiro, que acho que são os maiores arquivos do Brasil, você enfrenta, claro, a questão da quantidade, e isso exige também uma equipe expressiva que nenhum destes arquivos tiveram exatamente. Quem está trabalhando com preservação de acervo audiovisual não escolheu um caminho fácil, mas escolheu um caminho fundamental, porque se a gente olhar a sociedade brasileira hoje, não só a sociedade brasileira, mas a cultura mundial hoje, se comunica muito pelo audiovisual. É um dos objetos de memória mais representativos da nossa era, então é fundamental que tenha sonhadores [risos] como a gente continuando a batalhar por ele.
“O Brasil não tem a tradição de investir em Cultura permanentemente. Em geral um governo investe muito e outro não investe nada.”
Você fez referência às “pequenas tragédias”, que eu acho que são “grandes tragédias”. Recentemente um galpão da Cinemateca sofreu um incêndio, um galpão onde estava uma parte do acervo da instituição. Você está aposentada, mas certamente conhece as pessoas lá e sabe da repercussão do fato. Que informações sobre isso, especialmente sobre o material que se perdeu, você tem?
Tenho algumas informações. Aquele galpão era um lugar usado de passagem, os acervos novos que chegavam estacionavam nele para receber o primeiro tratamento com identificação, estado de conservação e a partir disso era encaminhado para a sede principal na Vila Mariana ou Vila Clementino [bairros da Zona Sul de São Paulo]. É um projeto que se iniciou com uma reforma entre 2012 ou 2013 e que foi interrompida com a crise de 2013. Tinha duas câmaras climatizadas e uma delas guardava documentos em papel referentes a vida administrativa da Embrafilmes [sociedade de economia mista produtora e distribuidora de filmes extinta em 1990], do Conselho de Cinema e do Instituto Nacional de Cinema que são órgãos reguladores da atividade audiovisual e bastante coisa foi queimada.
Existe a possibilidade de salvamento de algumas coisas, mas isso implica em algumas ações que ainda não são possíveis de fazer porque a Defesa Civil tem que autorizar a entrada no prédio para qualquer finalidade, por causa do risco de desabamento do telhado. Sabemos que uma série de filmes foram queimados, que eram trabalhos de alunos e vieram da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Estavam aguardando processamento. Um grande lote de filmes doados pelo André Sturm, proprietário da distribuidora Pandora Filmes. Eram filmes estrangeiros, que o André já tinha finalizado o contrato de distribuição e então fez a doação para cinemateca. O incêndio vem chamar atenção para o processo de desmonte da Cinemateca que está acontecendo há algum tempo. Tem um ano que não tem um corpo técnico dentro da cinemateca. Tem um pessoal muito dedicado que conheço e tenho ido até lá para ajudar a recuperar o pouco que restou.
É um pessoal bastante dedicado, mas é o que está tratando da manutenção predial e foram contratados para isso. Não tem a formação técnica específica de audiovisual. Sem uma equipe de técnicos, com objetos que tem essa fragilidade natural que já falei aqui, um acervo que possui 250 mil rolos de filmes e obviamente entra em um processo degenerativo porque faz parte da nossa natureza, nada fica para a eternidade. Tem mais de 80 mil fitas magnéticas e arquivos digitais, a Cinemateca tem o único laboratório de restauração digital montado no Brasil, não está em funcionamento, mas o país não tem outro neste momento. É uma instituição bastante equipada, mas que neste momento se encontra impedida de trabalhar por falta de uma estrutura técnica.
Na sua fala me parece que se trata mais de uma questão política do que técnica, ou seja, uma questão política no sentido de que no Brasil não tem a preocupação com a preservação cultural. Não apenas com os acervos audiovisuais, como também com os acervos e a cultura de uma forma em geral. Em relação a política de preservação, a cinemateca possui ao longo de sua história uma política de preservação, existia instrumental para garantir essa iniciativa?
A Cinemateca vem dentro dessa circunstância que apresentei e desses suportes que são frágeis. Uma das questões principais é a climatização. Tem ambientes de guarda com o controle de umidade de maneira instável. A primeira área climatizada para guarda de acervo que a Cinemateca conseguiu construir é do ano de 1982. Depois disso, ela foi aumentando suas áreas de guarda climatizada, hoje a Cinemateca está com um contrato de manutenção e os equipamentos estão funcionando e essas áreas estão dentro dos parâmetros, mas pelo que percebi, em alguns meses algumas áreas ficaram sem funcionamento de equipamentos de climatização. Isso deixa rastro e temos o efeito. O sentimento que tenho… Porque não tenho como documentar e nem relatos, porque o pessoal que está organizando e colocando em ordem entrou em março deste ano e as chaves estão nas mãos do governo federal desde agosto de 2020.
São pelo menos oito meses que não tinha ninguém com foco da manutenção predial e muito menos com foco das ações de conservação e preservação do acervo de audiovisual. Tem área climatizada para papel, documentos especiais, película, vídeos, fotografias, tem áreas climatizadas com controle de umidade, temperatura e instabilidade há bastante tempo. É uma conquista histórica, porque a instituição precisa aprender a lidar com esse tipo de guarda especializada. A cinemateca vem aprendendo a lidar com isso e foi se sofisticando.
A Cinemateca Brasileira é uma instituição de referência porque teve tempo e equipe para trabalhar e apreendeu com seus processos apesar das interrupções. Ela tem hoje 75 anos e nunca teve as portas fechadas, teve crises profundas, mesmo porque não era órgão público até 1984, era uma fundação sem fins lucrativos, nunca fechou as portas, mas não teve ninguém do corpo técnico dentro dos seus muros. Essa tradição brasileira de que uma hora acha que quer saber de sua história e compreender sua sociedade para fazer escolhas e tem hora que acha não saber de nada e só o que vale é o futuro, tudo que se fez antes não tem valor. Somos uma sociedade que ainda não escolheu o caminho e toda instituição de memória sofre essa inconstância.
Quais são os elementos fundamentais que uma instituição deste tipo precisa ter para garantir sua preservação?
Vou te responder com base em Alfonso del Amo [García], que era diretor técnico da Filmoteca Espanhola, e que foi sempre uma referência para mim. Viajei dois dias e três noites de ônibus para ir até Buenos Aires [Argentina] para assistir o curso dele, que era de três dias e depois voltei mais três dias. É uma figura de referência nesta área e sempre terminava suas palestras dizendo: “o que faz um arquivo é seu acervo e seu pessoal, é o corpo técnico e o acervo”. Então, o acervo da instituição é importante porque é a razão dela existir. Ela só cumpre a sua missão, que é reunir um acervo pertinente dentro da missão que ela se propôs, conservar esse acervo o mais íntegro pelo maior tempo possível, conhecer profundamente esse acervo, que obras são essas e como elas conversaram na sociedade a seu tempo, como elas conversam ainda hoje, quais são as referências dessas obras e todo esse aprendizado seria devolvido a sociedade através de difusão, mostra pesquisa e portas abertas para quem quiser aprender.
Essa é a missão do arquivo e isso só acontece se tiver a técnica, não tem a menor possibilidade de a missão institucional acontecer se não tiver um corpo técnico. Então a primeira coisa é ter um corpo técnico, depois é ter instrumental de trabalho, investimento e instrumental de trabalho. Quando éramos uma equipe de dez pessoas no início da década de 1980, sofríamos muito para fazer o que tinha de ser feito. Sabíamos que não estávamos fazendo tudo, mas sabíamos escolher o que era prioritário naquele momento. Quando nos transformamos em uma equipe de 30 pessoas e viramos órgão público e passamos a ser uma instituição pertencente à [Fundação] Pró-memória [em 1984], que hoje é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), eles falaram “façam uma equipe mínima dessa instituição que agora vai ser pública”.
Triplicamos a equipe e sabíamos que não teríamos braços para fazer tudo que é necessário, mas teria a possibilidade de avançar nas prioridades que fossem estabelecidas de acordo com a análise da realidade. Cada um desses momentos que a Cinemateca – monta seu laboratório de restauração, ganha área climatizada, amplia sua equipe – cada um desses momentos a sociedade e o mundo do audiovisual percebem e passam a depositar mais obras na Cinemateca, então o crescimento do acervo tem saltos. Na minha dissertação de mestrado fiz um cálculo aproximado que de 1975, quando entra uma equipe com perfil técnico bastante conceituado, como Carlos Alberto de Souza, Cláudio Augusto Calil, José Carvalho Mota, Maria Rita Galvão e Silvia Bahiense, a princípio voluntariamente para fazer reerguer a Cinemateca em seus muitos suspiros, eles adotam um caminho mais técnico.
De 1975 até 2001, quando é inaugurado o primeiro prédio construído para ser guarda de acervo, a Cinemateca cresceu 7 mil itens por ano, só de suporte audiovisual, película e fita de vídeo. É um índice de crescimento bastante grande. A primeira coisa é ter corpo técnico, depois ter dinheiro para trabalhar e condições para construir os instrumentos de trabalho. Um corpo técnico bem formado que saiba fazer análise de realidade e um plano de conservação pertinente com suas possibilidades de trabalho.
Já que você está se referido aos quadros técnicos, tivemos uma intercorrência que foi a utilização de Organizações Sociais (OSs) no meio dessa trajetória toda. Em outras instituições culturais no Brasil, como aconteceu com as bibliotecas-parque do Rio de Janeiro, a história das OSs não funcionou bem. Como você avalia a entrada das OSs nesse circuito, de gerenciamento de trabalho com acervo da Cinemateca?
Sou extremamente crítica a este tipo de solução de gestão. Em 2014, quando me aposentei na Cinemateca, essa discussão não estava mais acontecendo, porque estava decidido que teria uma Organização Social para gerir a Cinemateca. Então começamos a estudar a possibilidade de ter uma Organização Social amiga, Sociedade Amigos da Cinemateca, que concorresse pelos editais e assumisse pela sua expertise. A lei federal de Organização Social e a [lei] paulista também dizem que não pode ultrapassar cinco anos com a mesma empresa na gestão de órgão público, porque não é feito para a cultura, mas sim genericamente. Se você tem um material frágil, que precisa de procedimentos permanentes para sobreviver, tem um objetivo de 100 anos, cria metodologias, que precisa ser repetida obrigatoriamente com coerência e consistência para preservar um material frágil que se ficar a 25ºC ou 70% de umidade relativa [do ar] ele não vai durar mais de vinte anos.
Para durar 100 anos precisa de várias pequenas ações, que somadas vão conquistar essa longevidade. Imagina uma metodologia com duração de 100 anos em que é preciso gerir de cinco em cinco anos e sempre com equipes diferentes. É um conflito de raiz. A Organização Social é um modelo de negócio de pensamento de curto prazo. Necessariamente o gestor que entra em um arquivo de memória com a melhor das intenções, ele tem cinco anos para trabalhar em um ambiente em que o Estado faz um contrato de gestão e te concede a metade ou menos do dinheiro que você precisa para fazer a manutenção do espaço, é o que está acontecendo no edital da Cinemateca Brasileira hoje.
O governo calculou R$ 22 milhões de manutenção por ano e deu R$ 10 milhões no edital, agora mudou um pouco chegando a R$ 14 milhões. O gestor que entra na cinemateca tem que completar a cada ano esses R$ 14 milhões em R$ 22 milhões. É responsabilidade dele trazer esse dinheiro e precisa de um patrocínio. Para isso, ele precisa aparecer na mídia, na sociedade e ter o patrocinador para disponibilizar o dinheiro. Obrigatoriamente vai ter que privilegiar as ações de difusão e muitas vezes não vai ter escolha entre conservar ou difundir. Esses dois temas parecem conflitantes, mas não são. A questão é como uma cidade ou cria viadutos ou galeria de esgotos. Quem criou galeria de esgotos não foi reeleito, quem criou viaduto foi porque apareceu. Essa imaturidade da nossa sociedade faz com que a gente julgue aparência e neste tipo de contexto a solução da Organização Social, por melhor que seja a intenção do gestor, acaba tendo que privilegiar a aparência porque assim não consegue recursos e o maior sucesso que vai ter duração de cinco anos. O próximo ou tem o mesmo espírito dele ou vai absolutamente querer o que abre muitos espaços, na minha opinião, para vaidades pessoais.
Um gestor de Organização Social tem toda liberdade para fazer coisas em que o brilho pessoal apareça ainda que sacrifique algumas questões da instituição que ninguém vai ver, como: catalogação e conservação. Faz uma climatização excelente como se pudesse mumificar aquele acervo e como se não precisasse fazer mais nada. Não precisa substituir embalagem, não precisa fazer revisão periódica e de funcionários para fazer uma descrição mais aprofundada como se está dando, para achar que está bom. Achou o filme do Glauber Rocha, mas daquele que filmou o interior menos conhecido não vai achar. Essa gestão através de Organização Social, dentro deste desenho, é incompatível com uma instituição que tem objetivos de longo prazo. Um tem objetivo de curto e outro de longo, eles não podem dar suporte um para o outro. O que tenho dito sempre que possível em lives e palestras é que pelo menos a gente deveria fazer um esforço para tentar interferir nesta lei de tendência de gestão via Organização Social para quando for trabalhar com acervo de memória, tinha que ter algumas cláusulas diferenciadas quando for trabalhar com instituições de memória.
“Essa gestão através de Organização Social, dentro deste desenho, é incompatível com uma instituição que tem objetivos de longo prazo.”
Uma questão que você começou a levantar no início da entrevista foi o processo de concentração e descontração do gerenciamento dos acervos audiovisuais. Me parece que a Cinemateca concentra bastante este trabalho, o que acaba gerando um certo risco, inclusive em relação aos sinistros. Se você tem muito material em um lugar e se tem uma grande tragédia, isso pode afetar um acervo muito grande. Qual sua visão em relação a esse processo de concentração e desconcentração do gerenciamento de acervos audiovisuais no Brasil?
Nossa história mostrou mais de uma vez que a concentração excessiva é perniciosa. Em 1957, Paulo Emílio Salles Gomes e Rudá de Andrade juntaram o máximo de filmes que podiam, eles estavam formando o acervo da Cinemateca e levaram para uma sala especial o que consideraram o filet mignon do acervo, porque queriam montar um documentário sobre a história do cinema brasileiro, que ainda não estava escrita. Esse lugar pegou fogo. O Carlos Augusto Calil dizia que o Paulo Emílio, naquele dia, dizia que “o que eu fiz, juntei o que tinha de melhor para queimar tudo junto”.
Certamente não são essas as palavras, mas é o sentimento que ficou no meu coração da narrativa que me fizeram. Tem várias maneiras de concentrar. Concentrar acervo implica em ter uma responsabilidade muito grande e necessidade de um investimento permanente. Para o nosso histórico nacional é uma temeridade. Concentrar obras de várias regiões do Brasil numa única região é outra temeridade, como a museologia descobriu há muito tempo. No início falei do surgimento de um esforço de desenvolvimento de acervos regionais, isso é importante porque essa capilaridade… A Cinemateca tem acervo de São José do Rio Preto, que eu cataloguei e lembro, tem acervo de várias cidades do interior dos estados e que não faz sentido pensar que um pesquisador de sua cidade, que está no interior do Paraná não tem que ser obrigado a ir até São Paulo pesquisar a sua história. Não faz sentido a concentração de dinheiro, porque uma instituição muito grande consome muito dinheiro.
A Cinemateca Brasileira foi deslocada do IPHAN e foi para a Secretaria do Audiovisual, quando ela faz esse movimento aplica muito dinheiro na Cinemateca e muito pouco em outros acervos do Brasil. A Secretaria do Audiovisual não tinha tanto dinheiro na época para trabalhar, a própria declarava que fazia sua política de preservação através da Cinemateca Brasileira, o que não acho construtivo. A Cinemateca cresceu muito, prestou grande serviços à sociedade, avançou bastante em seus processos internos e foi bastante consistente na democratização de seu aprendizado. Tinha um programa de estágios, que a gente recebia dois estagiários de outros arquivos por mês. Eram 15 dias com estagiários de fora em 15 dias sem e isso implica em um compromisso bastante grande. O que aconteceu é que quando a Cinemateca cresceu muito e chegou a ter mais de 150 funcionários e fez jus a essa equipe produzindo muitas coisas, outros acervos não tinha nem mesmo enroladeiras para fazer o primeiro exame e primeiro inventário.
Se pensarmos em termo de memória nacional, por estar privilegiando acervos grandes, estamos privilegiando o cinema comercial, deixando de lado o cinema regional, o doméstico, o experimental e outros tipos de manifestações audiovisuais que são igualmente importantes, mas que não tem no mercado. Tem um detalhe também: na grande maioria dos acervos das Cinematecas do mundo inteiro, os arquivos audiovisuais são depositários, eles não são proprietários. Você vai conseguir recursos para restaurar o cinema nacional porque rola dinheiro nesse meio e quase nada de acervos pessoais. Vai sendo criado todo um contexto e uma rede de decisões que acabam privilegiando um único tipo de expressão audiovisual e deixando de lado outros tipos que possivelmente acontece no regional e teria melhores condições de acontecer em ações mais locais.
Para finalizar nossa conversa queria te perguntar o seguinte: o Brasil tem se empenhado em formar quadros para lidar com esse tipo de acervo? Se sim, como isso tem acontecido?
Em termos de política de Estado não tem se empenhado. Em geral, os técnicos que temos hoje se formaram por iniciativa própria. Foram buscar sua formação através de cursos paralelos, de formação de fora do Brasil. O país não tem nenhum curso de formação de técnico de audiovisual, mas isso também é uma realidade mundial ou talvez latino-americana. Tem alguns lugares, como Argentina, que possui curso que privilegia esse olhar. O que tem acontecido são cursos de curta duração e inclusive a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual tem procurado realizar encontros e debates para levantar os pontos principais desse meio e um deles é a formação e o outro é que o técnico bem formado não consegue lugar para trabalhar. Como absorver essa mão de obra altamente especializada no momento em que a Cinemateca, que é o maior acervo do Brasil, não tem nenhum técnico dentro de sua casa? É uma situação muito controversa, porque vai formar gente para não conseguir trabalhar.
Tem algumas iniciativas que vão buscando formar. Sempre que posso, eu organizo um curso de gestão de acervo audiovisual na faculdade em que dou aula na pós-graduação. A gente faz uma formação livre e agora estou em parceria com uma escola de audiovisual, que vai voltar a ser semipresencial, que está realizando cursos de formação sequencial dentro de uma lógica didática, mas são todos cursos de curta duração, com oito aulas com carga horária de 16h. Dá para passar bastante coisa, mas para ser um bom técnico tem que colocar a mão na massa. Na teoria a gente aprende muita coisa, mas vai saber mesmo, o que é a realidade, pondo a mão na massa, e esse talvez seja o ponto mais frágil, porque é uma realidade no mundo inteiro que os técnicos dos arquivos audiovisuais se formam dentro do próprio arquivo, porque é difícil ter formação em qualquer parte do mundo. Isso não significa que uma formação não é bem-vinda, ela é extremamente bem-vinda.
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