A escritora Miriam Alves estreou em publicações individuais em 1983 com o livro de poemas Momentos de busca, uma produção independente como alguns outros que publicaria nos anos seguintes. Na mesma década de 1980 ingressou no, já mítico, coletivo Quilomboje, em São Paulo, e militou pela literatura negra publicando e levando sua voz literária para os mais diversos espaços.
Suas participações em eventos são verdadeiras aulas-espetáculo em que se escuta a poesia “lâmina afiada” de Miriam e se aprende sobre o conceito de literatura negro-brasileira, elaborado por uma geração de escritores que, a partir do final da década de 1970, passaram a modificar a cena literária brasileira.
Mesmo aparecendo de forma esporádica nas antologias que buscaram mapear, investigar e refletir sobre a literatura brasileira contemporânea do final da década de 1970 até os dias atuais, este grupo de escritores continuou produzindo suas obras e formando seus leitores de forma criativa e independente.
Após a publicação de Momentos de busca (1983), Miriam Alves publicou Estrelas no dedo (1985), o livro de contos Mulher mat(r)iz (2011), pela editora Nandyala, e o elogiado romance Bará na trilha do vento (2015), pela Ogum’s Toques Negros.
Nestas décadas, desde a sua estreia, a escritora participou dezenas de antologias e ainda se dedicou a refletir sobre a literatura negro-brasileira no indispensável livro BrasilAfro Autorrevelado: literatura brasileira contemporânea (2010), publicado pela Editora Nandyala.
Nesta semana, Miriam aguarda o lançamento, na programação paralela da Flip, do romance Maréia, fruto de dois anos de escrita e muita pesquisa. Em Maréia, Miriam nos apresenta a história de duas famílias brasileiras, uma formada por personagens negros e outra por personagens brancos.
A partir da relação dos personagens podemos exercitar o que talvez seja o grande desafio da sociedade brasileira: pensar como se deram e ainda se dão as relações raciais no Brasil, para que um dia possamos, fora da ficção, modificá-las.
O lançamento de Maréia ocorre no dia 12/07 (sexta-feira), na Casa Poéticas Negras, que fica localizada na Rua Marechal Santos Dias, 22, Centro Histórico, Paraty. Nesta entrevista a escritora comenta sobre o processo de criação de Maréia, suas influências literárias e a cena literária para a autoria negra. Confira!
Qual foi sua inspiração inicial para escrever Maréia?
Foram vários pontos de inspiração. Eu tinha em mente falar dos mundos paralelos vivenciado pela população branca e a população negra, da discrepância das experiências que se dá no território de brasilidade, a partir de fatos da história nacional.
Fui aos poucos montando o argumento, procurei imprimir as intensidades emocionais das personagens brancas, e das personagens negras com paralelismos, ou seja, ponto de vista divergentes.
Como você iniciou a formulação do romance?
Para dar conta do que me propus, optei pela dramaticidade de como a sociedade lida com o invisível. Sim o invisível mesmo. A criança estadunidense é relatada nos filmes e romances como tendo um amigo invisível, com o qual se relaciona até determinada idade.
No Brasil são diversas as formas de vivenciar esse invisível, que faz parte do cotidiano, que às vezes é tratada como doença mental. Eu optei por ficcionar as duas formas. Uma das personagens, branca, enlouquece por estar vendo coisas e ouvindo vozes. E a outra, personagem, negra, se relaciona de forma sensível e artística, criando música.
Fui construindo o argumento, fazendo pesquisas sobre as grandes navegações e a descoberta dos novos mundos, em fontes alternativas. Assisti filmes, recorri as jornais da época escravocrata, e li a partir de minha percepção de mulher negra.
Como foi esse exercício de escrever personagens não negros? E, aproveitando, como você vê a representação dos negros na literatura escrita por autore(a)s branco(a)s?
A experiência dessa escrita foi intensa e interessante, um mergulho na psiquê do outro, tem personagens brancas narrando na primeira pessoa. Descobri a razão do incomodo, que me angustiava, advindo das histórias da colonização contadas nos livros, de forma heroica, o que foi violência. Bem como, a banalização do supliciamento do corpo negro no período escravocrata e pós-escravocrata.
Reforçada com frequência nos romances de leitura obrigatória, para a escolarização de crianças, adolescentes e nas formações acadêmicas. Como a personagem Bertoleza do livro O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, animalizada e brutalizada, me causou pesadelos, só para citar um exemplo, têm vários.
Fiquei pensando e relembrando no que ouvi, quando fui assistente social, numa rede pública de saúde em São Paulo. As mulheres que trabalhavam em empregos domésticos, relatavam a partir de suas perspectivas as intimidades das casas dos patrões, são vozes que nunca me abandonaram.
Acredito que fiz exorcismo literário, porque ao me denominar escritora de Literatura Negra Brasileira, percebi que o pensamento da branquitude está arraigado em nossas ações, até na hora da criação.
Maréia também é um livro sobre memória. Gostaria que você comentasse um pouco sobre o uso de algumas palavras em Iorubá no livro.
Maréia é um livro de memória, enquanto processo de reconstrução de identidade, não é só um recordar. É uma construção, um invento, a partir de pesquisa e dados de realidade. As palavras em Iorubá foram usadas para determinar um território, mostrar que o Brasil não é um país de uma língua, ou linguagem só.
O Ioruba é falado nos terreiros de candomblé, muitas vezes de forma fluente, para se relacionar com o invisível sagrado. É falado também na umbanda, não de forma tão fluente, mas utilizando-se alguns termos, fora aqueles que denominam os Orixás. É utilizado na fala do universo gay, como demostrou a questão, que caiu na prova do Enem.
Uma narrativa arquitetada, a partir de itans [palavra Iouruba que significa “história” ou “mito”], muitos dos quais transmitidos oralmente, outros busquei em livros de pesquisadores brancos, descartando a visão do colonizador. Apliquei a minha interpretação de quem vivencia essa cultura, não só como escritora, mas como parte de minha realidade. Quando trabalhava no argumento, cheguei a sonhar com algumas passagens, que fazem parte da narrativa. Maréia foi uma experiencia complexa que me deixou feliz.
Quais são suas grandes influências literárias? Elas surgiram como referência em alguns momentos da construção da narrativa do romance Maréia?
Minhas influências literária são várias, escritores negros e brancos, brasileiros, portugueses, franceses e atualmente alguns dos países do continente africano. Os estilos, as intensidades narrativas, me apaixonam e me aborrecem, quando se trata de retratar as personagens negras, no caso dos brancos.
Nesse romance em especial, me pautei em Edgard Allan Poe, um escritor que aprecio pelo lado soturno. Alfredo, personagem branco, um dos condutores da narrativa, lê e se relaciona de forma intensa com o poema o Corvo. Quando eu escrevo é uma entrega, um entrelaçamento com que eu li, vivi, ouvi, sonhei. Ou imaginei lendo um livro, vendo um filme, ouvindo uma conversa no ônibus, assistindo um concerto musical.
Por exemplo, a personagem Maréia surgiu quando eu ouvi a musicista Mariana Perb tocando violoncelo, fechei os olhos e vi tanta luz, comecei a construir a personagem, queria falar dessa luminosidade.
“Gosto de pensar que Literatura Negra é um movimento literário, temos diversidades de escritas e de tratamento estético. É algo revolucionário, não cabe nas caixinhas de denominações que colocam. É mais amplo. Existe vários fazeres dentro da Literatura Negra. Por isso é Literatura, não é isso ou aquilo somente. É literatura. E o que é literatura?” – Miriam Alves
No Brasil ainda temos poucas romancistas negras. Como você vê esta situação? Sua opção por escrever romances, além de ser estética, também é política?
Na verdade, uma opção estética-política, que já fiz ao entrar para o Quilombhoje Literatura, em 1983, e afirmar que faço literatura negra. A opção por escrever romance me dá possibilidade de trabalhar várias perspectivas numa narrativa. É apaixonante. As pessoas, que posso chamar de meus leitores, dizem que eu escrevo de forma diferente, como contista, como poeta e como romancista.
Encaro como elogio, essas formas e outras, são ferramentas, ou melhor, veículos que se usa para comunicar o que se quer. Escrever narrativa longa exige tempo, eu passei dois anos fazendo Maréia. Costumo dizer nas minhas palestras que é como uma monografia, uma dissertação ou uma tese. Escolhe-se um tema, um enfoque, pesquisa-se, abandona-se alguns caminhos, tira os excessos.
Na verdade levei dois anos e três meses até a concretização do produto, que é o livro. Nós escritores negros temos demandas de realidade de vida, que exige tempo para cumprir. Sendo mulher, somos cobradas para aquelas funções da casa, do lar e dos filhos, nós que cuidamos disso.
Como escritora, não podemos, simplesmente, dizer: “vou pegar um avião, ir para Paris desenvolver uma ideia”. Nós ainda fazemos no intervalo de uma coisa e outra. No romance, para Maréia ser o que é narrado, as mulheres negras mais velhas cuidam dela. Dona Deía, avó, Tânia, mãe, e Caciana, tia, se ajudam mutuamente.
Pensando em sua atuação no Grupo Quilombhoje desde a década de 1980, em que você vê que avançamos na luta pela igualdade na literatura brasileira e em que ainda estamos empacados?
O Quilombhoje Literatura foi fundado por cinco homens, entre eles o escritor Luiz Silva, Cuti. Eu cheguei depois, lancei meus primeiros poemas nos Cadernos Negros 5, em 1983. Avançamos muito, um dos aspectos mais importantes é estarmos agora falando de literatura negra. No começo era algo impensável para uma literatura brasileira com pensamento branco hegemônico se chamando de universal. São 41 anos, a partir do lançamento dos Cadernos Negros 1.
Gosto de pensar que Literatura Negra é um movimento literário, temos diversidades de escritas e de tratamento estético. É algo revolucionário, não cabe nas caixinhas de denominações que colocam. É mais amplo. Existe vários fazeres dentro da Literatura Negra. Por isso é Literatura, não é isso ou aquilo somente. É literatura. E o que é literatura?
Miriam, a literatura é um terreno fértil para este encontro com a cultura negra, com a religiosidade de matriz africana e até mesmo com uma cosmovisão de povos africanos?
A literatura é um terreno fértil para a imaginação, para o encontro, desencontro, denúncias, memórias, invenções, que se pode usar como fio condutor da narrativa. A cultura negra, como outra maneira de interpretar o mundo, o cotidiano, com certeza é um amplo e fértil terreno.
Acho que por isso que eu amo a literatura, é um território de liberdade para criar. A recepção vai dizer se consegui ser livre ou não, porque o texto se completa no outro, que se apropria, interpreta e reinterpreta.
Quais são as suas expectativas em relação ao seu novo romance e o lançamento na Flip.
Confesso, foi o meu sonho, depois descartei como um sonho burguês. Mas a partir da reviravolta, que teve há dois anos, com a contestação de Giovana Xavier, que chamou a festa literária de “arraial da branquitude” e ocasionou a presença de Conceição Evaristo, o sonho voltou mais forte.
A Flip passou a ser uma vitrine para os nossos livros, certo que em atividades paralelas, mas uma vitrine. Quando entenderem que Literatura Negra Brasileira é Literatura Brasileira, o negro é um cidadão brasileiro, que inclusão em paralelas, é reclusão, talvez meu sonho se complete.
Maréia, por Fernanda Miranda*
“…Estamos sempre a deslizar, como navegadores, num mar onde as ondas se entrecruzam, nos levando para lá e para cá. Não é deriva, minha velha, são coordenadas do tempo…”. De frases poéticas assim é feito o solo de Maréia, um romance que alinha temporalidades, experiências, memórias, heranças, afetos e direitos em uma encruzilhada de ritmos, ritos e histórias pareadas. As águas assumem o fio narrativo bifurcado da trama, promovem o encontro de forças que movimentam uma comunidade de mulheres negras; constitui o resíduo salgado e incontornável que demarca a herança de quem domina, atravessando os tempos. Passado, presente e futuro são instâncias das mesmas águas, e os navegantes se encontram nos reflexos cultivados por relações familiares. Maréia navega no fluxo das narrativas atlânticas, este arquivo profundo que a nós todos tão profundamente atinge e explica.”
*Fernanda Miranda, doutora em Letras pela USP, sua tese rastreia o romance de autoras negras brasileiras publicados do século XIX ao XXI.
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