Vinte de novembro foi instituído como o dia da consciência negra e dia nacional de Zumbi, em 2011, pela lei nº 12.519. A data já figurava no calendário escolar desde 2003, pela lei nº 10.639, que versa sobre a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. Em outubro deste ano, o projeto de lei para tornar a data feriado nacional foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e rejeitado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviço, e aguarda análise do plenário. Em diversas cidades, em que leis municipais asseguravam o feriado de 20 de novembro, houve revogação da lei, com alegação de inconstitucionalidade por parte das entidades ligadas ao comércio e à indústria.
Em que pesem os prejuízos que todos os feriados causam em empresas e indústrias, cabe refletir sobre a rejeição exclusiva (de empresários, mas também, em muitos casos, de juristas, empregados e estudantes) em relação ao dia da Consciência Negra como data de celebração, valorização, reflexão e luta por igualdade racial. Em que medida a rejeição ao dia da Consciência Negra não está diretamente associada à fobia do brasileiro não negro em falar sobre o racismo tão presente em nossa sociedade? A negação do dia da Consciência Negra como data de reflexão faz emergir e revelar o déficit de empatia pela população negra, afetada intensa e cotidianamente pelos efeitos do racismo e da desigualdade racial, que se revelam em ironias depreciativas sobre consciência negra, Zumbi dos Palmares, genocídio da juventude negra, racismo antinegro associado à intolerância religiosa, e sobre a escravização de africanos e seus descendentes.
A celebração da consciência negra também me instiga a refletir sobre o meu trabalho como editor e a dificuldade, ainda presente, de inserção de autores negros brasileiros e seus textos às cadeiras criativa (escritores, ilustradores), produtiva (editores, livreiros) e mediadora (bibliotecários, mediadores, professores) como também às organizações sociais, escolas, prefeituras, eventos, prêmios e demais segmentos. Pesquisa da UNB, A personagem do romance brasileiro contemporâneo, coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, sobre romances publicados no Brasil entre 1965 e 2014 teve como um dos resultados a informação de que mais de 70% dos romances publicados foram escritos por homens, 90% deles brancos.
Os personagens retratados se aproximam da realidade dos escritores. Cerca de 60% são protagonizados por homens, sendo 80% deles brancos e 90% heterossexuais. Se compararmos com pesquisas recentes sobre a inserção do negro no mercado de trabalho, e em outras esferas da vida social, percebemos que o meio literário reflete as mesmas desigualdades raciais (e outras) presentes na nossa sociedade; não por ausência de escritores negros, frise-se. Lançado em 2011, o livro Literatura e afrodescendência no Brasil: uma antologia crítica, organizado pelo professor Eduardo de Assis Duarte, da Faculdade de Letras da UFMG, reuniu perfil biográfico e bibliográfico de 100 escritores negros brasileiros.
A pesquisa contou com 61 pesquisadores de diversas instituições. Para Duarte (2017) “da mesma forma como constatamos não viver no país da harmonia e da cordialidade construídas sob o manto da pátria amada mãe gentil, percebemos, ao percorrer os caminhos de nossa historiografia literária, a existência de vazios e omissões que apontam para a recusa de muitas vozes, hoje esquecidas ou desqualificadas, quase todas oriundas das margens do tecido social.” Além de literatura e afrodescendência, encontramos informações sobre a quantidade e a variedade de autores negros no Dossiê da Literatura Afro-brasileira (UFMG), que contém 263 nomes. Outras iniciativas também são fontes importantes de informação sobre autores negros, como o site “Escritoras negras da Bahia”, da jornalista Calila Mercês.
Muitos escritores negros que leio atualmente publicaram seus livros após 2011, o que nos leva a crer que a continuidade da pesquisa descobriria um grande número de autores negros contemporâneos. Em sua maioria, estes autores, assim como os outros autores negros que se lançaram na carreira como escritores antes deles, publicam em editoras pequenas, ou custeiam suas próprias publicações, situações também vividas por autores como Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Lima Barreto (1881-1922). Sobre Lima, Beatriz Rezende, autora de Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, nos informa que “Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado em folhetins do Jornal do Commercio entre agosto e outubro de 1911.
Em livro só apareceu em 1916, editado pela Revista dos Tribunais, graças à boa vontade de Félix Pacheco e pago pelo próprio autor: ‘Tomei dinheiro aqui e dali, inclusive do Santos (Noronha Santos), que me emprestou 300 mil-réis, e o Benedito imprimiu-o’. Parte do dinheiro fora obtida em empréstimos de agiotas do Ministério da Guerra, onde trabalhava.” De Carolina Maria de Jesus é bastante ilustrativo o poema publicado no jornal Folha da Noite, em 1958: “Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida. Digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida. Digam ao povo brasileiro que meu sonho era ser escritora, mas eu não tinha dinheiro para pagar uma editora.” Segundo Tom Farias, autor do livro Carolina: uma biografia (no prelo), em relação ao livro Pedaços da fome: “Carolina bancou a edição com o pouco dinheiro que vinha recebendo das traduções do seu livro no exterior. O mesmo já havia ocorrido com Provérbios, também financiado pelos parcos recursos financeiros de Carolina”. Embora tenha feito grande sucesso com a publicação de Quarto de despejo, os livros seguintes de Carolina não encontraram o mesmo interesse por parte do mercado editorial.
Voltando à pesquisa da UNB, podemos refletir sobre quais temas, abordagens e perspectivas interessam ao meio literário. Que país se pretende ter representado nos livros literários? Para Dalcastagnè “Desde os tempos em que era entendida como instrumento de afirmação da identidade nacional até agora, quando diferentes grupos sociais procuram se apropriar de seus recursos, a literatura brasileira é um território contestado. Muito além de estilos ou escolhas repertoriais, o que está em jogo é a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo, de se fazer visível dentro dele.” Se a literatura que vem sendo mais publicada reflete a realidade e a vivência dos seus autores, ao promover o que o escritor Allan da Rosa nomeou como Apartheid Editorial, o corpus da literatura brasileira se torna incompleto, o que dialoga com a afirmação da escritora Conceição Evaristo: “Se não lemos todos os passos criativos da nação, estamos lendo uma nação em pedaços, estamos lendo uma nação incompleta.”
Mesmo não tendo sua produção literária associada à literatura negra, a literatura de Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo está associada a uma literatura periférica/marginal, que continua encontrando espaços de veiculação e resultando em sucessos editoriais, como, por exemplo, Cidade de Deus, de Paulo Lins. Para Heloísa Buarque de Holanda “é da tradição da série literária brasileira, uma atenção significativa aos temas da miséria, da fome, das desigualdades sociais e, ultimamente, da violência urbana. É da nossa tradição cultural, o engajamento político e o compromisso social do intelectual, neste caso, do escritor, o que, talvez, expresse a lógica da verticalidade da estrutura das nossas relações de poder e, portanto, a facilidade de agenciamentos e composições patronais entre classes sociais no Brasil. O fato é que o escritor sempre foi o sujeito do discurso sobre o pobre e o excluído da sociedade brasileira. Para a pesquisadora, Paulo Lins nos surpreendeu com uma variável totalmente imprevista nos nossos círculos literários: o pobre tem voz e pode até escrever; e mais ainda: escrever um livro de sucesso de público e de crítica.”
Compreendendo que assim como o best-seller Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, Cidade de Deus também não apresenta características da literatura negra, voltamos à questão da carência de espaços privilegiados de veiculação dos textos da literatura negra. Para Paulo Lins, autor de Cidade de Deus “a literatura negra brasileira ainda não caiu na graça do mercado editorial oficial”. Talvez, um bom ponto de investigação esteja nas demarcações conceituais da literatura negra. A literatura negra vai questionar as relações de poder e, principalmente, apresentar as subjetividades de homens e mulheres negras que tradicionalmente vêm sendo representados pela literatura brasileira de forma reduzida, equivocada e estereotipada.
Segundo a escritora Miriam Alves “a expressão literatura negra só passou a ser usada no Brasil com regularidade a partir da década de 1970. […] Ao ser assumida pelos escritores negros brasileiros, somou-se também a denúncia da hipocrisia da ‘democracia racial’ e seus mecanismos, nada sutis, de discriminações raciais em todos os níveis de ações sociais, inclusive a seleção excludente envolvendo quais autores devem ser lidos, quais conteúdos de textos devem fazer parte dos programas escolares e a indicação de leituras nos veículos especializados, nos quais quase nunca figuram autores afrodescendentes com conteúdo que questionam a propalada harmonia entre as raças no Brasil.”
Trata-se de um recorte da literatura brasileira como bem explica a pesquisadora Simone Ricco “a gente quer falar de literatura brasileira, mas de um recorte dela, o que está sendo produzido na literatura brasileira contemporânea e destacando a produção literária negra, e muitos não sabem o que está acontecendo, não conhecem os autores, não têm ideia de como é o texto e ficam presos, muitas vezes, associando a literatura negra a um texto mais panfletário, e muitas vezes não é o que acontece, a militância acontece de uma forma bem mais literária e bem menos panfletária.”
O desinteresse do mercado editorial pela literatura negra, talvez, em medidas não similares, seja o mesmo desinteresse de parcela da sociedade brasileira em promover o debate sobre a desigualdade racial no Brasil, assim como o desinteresse de valorizar a humanidade de negros e negras. É fruto de uma questão ideológica, que está no centro das relações de poder em nosso país. No entanto, frente a este cenário excludente, vozes literárias negras encontram formas criativas e de resistência para divulgar seus textos, seja em impressões artesanais, autopublicações, Internet e publicações em editoras independentes, como também, atentas aos mecanismos de exclusão, expõem as desigualdades do mercado de produção cultural literária e editorial, um campo de produção formado por autores, editores, livreiros, distribuidores, jornalistas, críticos, produtores culturais e leitores.
Além de personalidades importantes no século XIX, como o escritor, editor abolicionista Paula Brito (1809-1861), e no século XX, como Abdias Nascimento, com o Teatro Experimental do Negro, fundado na década de 1940, e o coletivo Quilombhoje, fundado no final da década de 1970, criadores dos Cadernos negros ̶ publicações periódicas que apresentam a obra de escritores negros, porta de entrada de diversos autores no mundo literário ̶ a resistência literária dos autores negros foi marcada mais recentemente por questionamentos sobre a pouca representatividade de escritores negros em eventos literários, mercado cultural crescente no Brasil e importante para a divulgação do autor e de sua obra, e em eventos internacionais, em que delegações de escritores são convidados.
Em 2013, um grupo com 43 escritores negros assinou uma carta de repúdio em relação à ausência de autores negros na feira do livro de Frankfurt; o escritor Paulo Lins foi o único escritor negro convidado. Em 2015, a escritora Conceição Evaristo, única escritora negra a fazer parte do Salão do Livro em Paris, afirmou “Sei que meu caso chama a atenção porque não é muito comum uma escritora brasileira negra participar de uma feira internacional. A gente fica como fruta rara. E não é que não tenhamos autoras negras. Geni Guimarães, Miriam Alves, Ana Maria Gonçalves, Lia Vieira são só algumas.” O ano de 2016 ficou marcado pela campanha Vista nossa palavra, Flip, que denunciava a ausência de escritoras negras no maior evento literário do país.
No ano seguinte, com a mudança de curadoria, vimos uma proposta ser implantada pela jornalista Josélia Aguiar, a de trazer diversidade para as mesas do evento, mas pautando-se pela qualidade literária das obras dos autores convidados. A fala da escritora Conceição Evaristo no evento foi bastante emblemática para se pensar a presença negra na literatura atual: “Nós não vamos abrir mão do que foi conquistado, nós vamos continuar afirmando que subalterno pode falar. […]. Se a gente pensa que o espaço da literatura, o espaço da criação literária, o espaço do discurso literário é um espaço de criação, de revelação e de identificação nacional, a nossa identificação não pode mais ficar fora da literatura brasileira.”
2017 vem se destacando como um ano de maior presença dos escritores, tradicionalmente excluídos, em evento literários com programações instigantes, dos quais eu destaco a Flipoços – Festa Literária de Poços de Caldas, que teve a curadoria de Gisele Corrêa, por ter incluído em sua programação a participação de um grupo significativo de escritores negros moçambicanos e a Flica – Festival Literário de Cachoeira, que contou com a curadoria do escritor e jornalista Tom Correia, que valorizou a presença de escritores negros e indígenas.
O fato é que com os avanços dos meios de comunicação e informação, e a popularização das redes sociais, as possibilidades de divulgação dos textos literários, muitas vezes, independem de editoras para que eles se tornem conhecidos; por outro lado, nos últimos anos ocorreu o avanço nas tecnologias de produção do livro, possibilitando tiragens mínimas e o surgimento de novas editoras, dedicadas a promover a diversidade no mercado editorial. Outro fator importante foram as políticas públicas que possibilitaram que mais pessoas negras e pobres alcançassem níveis superiores de escolaridade; esse público busca também se reconhecer na literatura que consome e nos escritores que a escrevem, e soma-se ao grupo dos fundadores dos movimentos negros dos anos 1970, que segundo Joel Rufino dos Santos, em O Saber do negro, “são filhos do boom educacional dos anos 1970, em que houve uma proliferação de faculdades particulares estimulada pelo Estado como solução para a crise ’de vagas no ensino superior’”.
Para o autor, “os jovens que fundam, nos anos 1970, entidades negras de luta contra o racismo são invariavelmente dessa geração.” Estes públicos produzem e consomem conteúdo e fortalecem o discurso por maior representatividade negra na literatura brasileira, torna os temas e as perspectivas dos negros sobre si e sobre o mundo temas de interesse para negros e não negros e torna frágeis as alegações de que não há interesse do consumidor para estas obras. A Flip 2017, que promoveu maior inclusão de autores negros em sua programação, aumentou em 30% a venda de livros; segundo dados da Livraria da Travessa, na lista dos 10 títulos mais vendidos, além da biografia Lima Barreto: triste visionário, oito títulos foram de autores negros. Figura em quarto lugar na lista do site Publishnews, sobre os livros mais vendidos deste ano, até o momento, o livro Na minha pele, de Lázaro Ramos.
Então, nesta semana nacional da consciência negra, proponho a reflexão sobre como possibilitar que os textos de autores negros que mais ampliam o debate sobre consciência racial, que mais enriquecem, por meio da literatura, as visões sobre ser negro no Brasil, encontrem seus leitores, enriquecendo imaginários, ampliando a quota de humanidade e empatia sobre o negro, garantindo a representatividade, e, em uma visão mais ampla, façam parte do repertório literário brasileiro que mais é divulgado.
Um esforço será necessário, por parte dos elaboradores das políticas do livro, em inserir a promoção e o fomento de uma literatura produzida por escritoras negras e escritores negros em suas metas; por parte de editores, de enfrentar ideias preconcebidas sobre esta literatura, suas concepções frágeis sobre a realidade das relações raciais no Brasil e ter iniciativa em conhecer estes textos e editá-los; de livrarias e distribuidores, em se interessar pela divulgação e comercialização destas obras; dos produtores e curadores de eventos literários, em querer entender que estes autores enriquecem os debates quando falam sobre literatura e não sobre a “condição do negro no Brasil”; de bibliotecários e professores, em buscar esta literatura, conhecê-la e divulgá-la; e das instituições do livro, em buscar soluções abrangentes para que as editoras pequenas que mais editam autores negros (assim como a literatura produzida por mulheres, indígenas e LGBTIs) negociem suas consignações com padrões (percentuais de desconto, prazos etc.) diferentes dos das grandes editoras.
Será benéfico para a ampliação dos debates sobre consciência negra no Brasil. Estamos em um momento rico, em que duas gerações dos movimentos negros dividem o mesmo tempo; saber olhar para este hoje fará um grande diferencial. Os leitores aguardam ansiosos, vamos ao encontro deles!
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