O termo colorismo foi usado pela primeira vez pela escritora Alice Walker, conhecida no Brasil pelo romance A cor púrpura, adaptado para o cinema, em 1985, por Steven Spielberg. No ensaio em que a escritora reflete sobre o colorismo, If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like? (Se o presente parece com o passado, como será o futuro?), publicado no livro In Search of Our Mothers Garden (1982), a escritora afro-americana elabora um conceito sobre uma realidade vivenciada por negros afro-americanos e que, na realidade brasileira, atravessa toda a nossa história e é facilmente comprovável em nossa atualidade: quanto mais escura for a pele do indivíduo, com maior força recairá sobre ele todas as atitudes negativas que sujeitos negros enfrentam, cotidianamente, em uma sociedade racista, que não resolveu seu passado colonial e escravista. Em síntese; quanto mais escura a cor da pele, mais racismo se sofre.
“A população mista do Brasil deverá ter pois, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro.” (João Baptista de Lacerda – médico e antropólogo, 1911).
Cerca de cem anos antes do livro de Walker, em 1883, o inglês Francis Galton criou o termo eugenia e em pouco tempo suas ideias (de que existem raças humanas superiores e que é possível melhorar a qualidade genética de uma determinada população) ganharam outros territórios. No Brasil, o pensamento eugenista foi consensual nas defesas da tese do branqueamento e da imigração europeia como forma de transformação positiva da sociedade brasileira.
O pensamento eugenista no Brasil nas primeiras décadas do século XX foi tão abrangente ao ponto de nortear políticas de imigração que facilitavam o vinda de imigrantes europeus para o país na mesma medida em que outras leis proibiam a entrada de africanos nesta complexa e triste nação. Muitos escritores e intelectuais em intensidade de envolvimentos diferentes defendiam este pensamento, documentado, por exemplo, nas cartas de Monteiro Lobato para seus amigos, ou mesmo em seu romance O presidente negro (1926).
“A escrita é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos no Brasil, ‘work’ muito mais eficientemente.” (Monteiro Lobato)
O escritor Machado de Assis viveu entre 1839 a 1908, suas obras mais célebres foram publicadas a partir da década de 1880, contemporâneas dos movimentos abolicionistas, da abolição da escravatura, da proclamação da primeira República e da fundação da Academia Brasileira de Letras. Sua morte, em 1908, ocorreu em um período pós-abolição, de intensificação do racismo científico, em que o negro liberto era visto como um problema para os governos brasileiros. A imagem real de Machado de Assis, assim como de outros intelectuais negros de sua época, não se encaixavam aos moldes de um pensamento que julgava como superior a intelectualidade de pessoas brancas. Solução: embranquecê-los.
Após a morte de Machado, o escritor José Veríssimo publicou um artigo no Jornal do Comércio em que afirmava “Mulato, foi de fato um grego da melhor época”. O escritor e político Joaquim Nabuco indignado pela afirmação de José Veríssimo, escreveu uma carta para o jornal em defesa da memória do grande escritor em que diz “O Machado para mim era um branco, e creio que por tal se tornava [sic]; quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego. O nosso pobre amigo, tão sensível, preferiria o esquecimento à glória com a devassa sobre suas origens”.
Fato é que conjecturas sobre como Machado de Assis reagiria ao ver seu retrato enegrecido, talvez não nos sirva como o objeto de reflexão útil para se pensar o tempo presente. No entanto, entender as causas e os efeitos do branqueamento de figuras ilustres da história brasileira nos ajuda a entender as feridas ainda abertas das relações raciais brasileiras e a intensificar nossas movimentações em prol da equidade racial. “Se o presente parecer com o passado, como será o futuro?”, nos indaga Alice Walker citada na introdução desta matéria.
Para que o futuro não se pareça com o passado, a Faculdade Zumbi dos Palmares e a Agência Grey, produziram a campanha Machado de Assis Real. Denominada pelos idealizadores como uma errata histórica, a campanha adaptou a imagem do escritor Machado de Assis e solicita que a foto seja colada nos livros antigos sobre a foto a antiga branqueada e que editoras façam uso da imagem em novas publicações.
Na programação paralela da edição 2019 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), dois livros serão lançados com a imagem da campanha. Machado de Assis: contos e crônicas é uma coletânea que reúne textos em que o autor aborda com sua sagacidade peculiar a questão racial no Brasil com textos populares do autor, como o conto/novela O alienista.
Para o professor da University of New Mexico, Paulo Dutra, pesquisador das relações raciais em Machado de Assis, e que apresenta esta coletânea, “trocadas as fotos das capas dos livros, resta agora substituir a apriorística leitura das personagens machadianas como se fossem brancas. Um dos possíveis resultados de tal esforço seria a garantia de interpretações ainda mais ricas e produtivas para o entendimento tanto da sua obra quanto do Brasil oitocentista. Essa, sim, tarefa muito mais complicada devido ao fôlego do processo de branqueamento simbólico que vergasta tanto a população quanto os meios acadêmicos.”
O livro Machado de Assis: contos e crônicas será lançado no dia 13/07 (sábado), na Casa Poéticas Negras, e vai contar com a participação do escritor Henrique Rodrigues, autor do livro Machado de Assis: o Rio de Janeiro de seus personagens (Pinakotheke – 2008) e da professora e pesquisadora Simone Ricco, autora e organizadora do livro Vértice: escritas negras (Malê – 2018).
Outro livro a ser lançado durante a Flip é o romance O homem que odiava Machado de Assis, ousada e instigante ficção de José Almeida Júnior, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura com o romance histórico, Última hora (Record – 2017). Na mistura de história e ficção de O Homem que odiava Machado de Assis, José inventa o personagem Pedro Junqueira, que alimenta uma rivalidade com Machado de Assis. O livro será lançado na Casa Submarino, no dia 12/07, às 16 horas. José Almeida ainda participa da mesa Elementos históricos em romances históricos e não históricos na Casa Cadeia Literária, no dia 13/07 (sábado), às 16 horas.
Considerando algumas reações negativas que a imagem da campanha Machado de Assis Real vem recebendo, é possível refletir que ainda reverberam em nosso tempo ecos de pensamentos que já deveriam estar ultrapassados e, além disso, que os debates atuais sobre o colorismo são de grande relevância para provocar estranhamentos e ampliar as sensibilidades sobre como as percepções das distinções humanas raciais (mesmo que já descartadas como relevantes à luz da biologia) ainda modelam os relacionamentos sociais, visto que, o ódio em relação as pessoas com tonalidades mais escuras da pele se presentifica até mesmo em relação aos nossos mortos.
Por outro lado, graças a campanha, aos movimentos negros e as novas sensibilidades, podemos esperançar novos tempos, em que gerações saberão, sem dúvidas ou questionamentos, que o maior escritor brasileiro foi um homem negro. Nesta entrevista para à Biblioo, José Almeida Júnior conversa sobre sua formação como leitor, as pesquisas que realizou na elaboração do romance O homem que odiava Machado de Assis e o Instinto de nacionalidade na Literatura brasileira.
Serviço
Evento: Lançamento de O homem que odiava Machado de Assis, de José Almeida Júnior.
Dia: 12/07, 16h
Local: Casa Submarino, Rua Marechal Deodoro, 340. Centro Histórico de Paraty
Evento: Escritas Negras: Machado de Assis e Vértice, com Henrique Rodrigues, Francisco Jorge e Simone Ricco.
Dia: 13/07, 15h
Local: Casa Poéticas Negras. Rua Marechal Santos Dias, 22. Centro Histórico de Paraty.
Evento: Elementos históricos em romances históricos e não históricos.
Dia: 13/07
Local: Casa Cadeia Literária Largo de Santa Rita. Centro Histórico de Paraty.
*De modo a contemplar melhor os nossos leitores, a entrevista que se seguia a esse texto foi desmembrada e agora pode ser liga clicando aqui.
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