RIO – Lídia Silva de Freitas profere visões pouco aceitas entre alguns profissionais da informação, mas que nem por isso deixam de ter o seu valor. Os motivos podem vir de sua formação acadêmica ou mesmo de sua visão ideológica, sobremaneira alinhada ao pensamento marxista. Suas grandes preocupações recaem sobre temas que vão dos lugares de memória à (in)visibilidade do bibliotecário. A propósito, foi este último tema que a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) tratou no décimo terceiro Encontro dos Estudantes de Biblioteconomia, Gestão e Ciência da Informação. “Se ficarmos buscando a atual invisibilidade social e tratando de uma maneira muito individualizada, acabamos não pegando o que acho fulcral, que é o nosso lugar nas políticas de memórias”, disse ela. Nesta entrevista, Lídia fala um pouco de suas pesquisas, de suas experiências na área de documentação e de seu encanto pelas questões políticas, econômicas e sociais.

Chico de Paula: A senhora poderia falar um pouco da sua trajetória acadêmica?
Lídia Silva de Freitas: É um prazer conversar com a Revista Biblioo. Fiquei surpresa que ela exista há tantos números e eu ainda não conhecia. Mas parabéns pela Revista. Minha trajetória começa na graduação de Ciências Sociais que cursei na Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. Comecei a trabalhar com documentação no estágio que fiz no Museu do Índio com documentação arquivística do antigo Serviço de Proteção ao Índio [SPI]. Depois de cinco anos fui para o Centro de Documentação do Cadernos de Terceiro Mundo, onde tinha uma documentação sobre os países do terceiro mundo absolutamente inédita no Brasil. O mais significativo foi trabalhar com documentação muito sensível. Eram documentações que garantiam o direito à terra ao índio, questões culturais… Então cada dia era um de nós que sonhava com o Centro de Documentação pegando fogo [risos]. Quando comecei a trabalhar no Cadernos de Terceiro Mundo, além de estar tratando uma documentação bastante importante, tinha uma documentação específica com discussão política sobre o papel da informação na sociedade nos dias de hoje e disputas internacionais sobre informação. Ao mesmo tempo em que me encantava trabalhar com documentação, me encantava também as questões políticas, econômicas e sociais que envolviam aquele trabalho com a documentação e com a informação em geral. É engraçado que dois anos depois de terminar a graduação eu voltei para fazer o mestrado na primeira turma do mestrado de Ciências Sociais da UFRJ. Estava muito insatisfeita porque ninguém queria trabalhar questões do meu interesse, que era exatamente documentação e informação. Quando soube que existia o mestrado do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), larguei o mestrado de Ciências Sociais e fui fazer em Ciência da Informação porque estava me interessando e me apaixonei até hoje. Dou aula na Universidade Federal Fluminense [UFF] para essa área há vinte anos e trabalhei treze anos como documentalista.

C. P.: Uma das coisas que mais sensibilizou a senhora na trajetória acadêmica foi a questão do índio. Como a senhora tem visto a possibilidade de demolição do Museu do Índio próximo ao Maracanã?
L. F.: Comecei a estagiar naquele prédio. O que acho impressionante é, primeiro, deixar chegar do jeito que ficou. O abandono já era uma preparação para isso. Uma variável que não colocam no jornal e não é à toa, é que aquele prédio foi criado pelo Marechal Rondon para ser o Museu do Índio. Então só por isso ele já tinha que ser tombado. A trajetória histórica daquele acervo e a política indigenista, aquele prédio foi construído para isso. É impressionante como os jornais focam somente na questão arquitetônica, na localização e não fala na trajetória histórica do prédio.

C. P.: E as políticas públicas em relação a questão indígena, elas têm sido observadas pelo governo ou existe um descaso em relação a isso?
L. F.: Um descaso completo. A não demarcação das terras a não ser quando se torna um escândalo, isso é uma das decepções desse governo. A questão agrária como um todo, além da questão indígena estão em um ritmo que não se esperaria para esse governo. É mais uma decepção sobre isso. Agora na nossa área acho muito interessante a discussão quando trabalham com bibliotecas de populações de oralidade, que é a discussão de constituição de acervo, de formas. Até que ponto é uma violência simbólica ou não à educação comum, a forma como é feito nos grupamentos indígenas. Acho muito importante, inclusive algumas listas que, de vez em quando, levantam questões sobre qual é o trabalho do bibliotecário entre os índios. Não tive tempo de me aprofundar como gostaria, mas já visualizei algumas discussões interessantes.

C. P.: Agora falando especificamente do assunto que a senhora proferiu na palestra aqui na UFF por conta do Encontro Regional dos Estudantes de Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação (EREBD). Quais as informações e aspectos importantes a senhora destacaria a respeito do trabalho que apresentou?
L. F.: Se ficarmos buscando a atual invisibilidade social e tratando de uma maneira muito individualizada, acabamos não pegando o que acho fulcral, que é o nosso lugar nas políticas de memórias, tanto para quem nos emprega, quanto para os usuários ou especialmente os não usuários, aquele que a cultura dele não está ali, sua memória não está ali. Então é esse lugar nas políticas de memória que explica essa invisibilidade. Acredito que não tem solução pela via individual ou de uma mudança de comportamento. Faço aquela provocação horrorosa: “como ele é dinâmico, nem parece bibliotecário!”. Ou o marketing profissional, que realmente as profissões – que está muito claro a sua função social – não precisam de nenhum marketing profissional, todo mundo está vendo. Se nós trabalhássemos também com memória da população, com a cultura popular, além das outras que já trabalhamos, não haveria dúvida de qual seria a função social desse profissional.

C. P.: Essa iniciativa de cunho mais individual não é a solução. Então qual seria a solução?
L. F.: Essa análise política de qual é o lugar nas políticas de memória desse profissional. Acho que é uma reflexão sobre a sua técnica: estar a serviço do que? Que outros graus de liberdade decisória ele poderia ter? E que política de memória é essa que ele está trabalhando? Que saímos refletidamente do monopólio da cultura erudita, para agora a cultura ou informação empresarial, sem jamais ter passado por uma ampliação real da base dessa memória que trabalhamos e não é á toa. O vizinho não vai saber mesmo e não é para saber.

C. P.: E as instituições? Sobretudo as universidades, elas têm formado os profissionais com uma visão mais crítica ou isso ainda é muito deficiente?
L. F.: Eu temo que ainda não esteja com uma visão crítica. Um ou outro pesquisador, um ou outro professor, que é muito claro no Brasil quem são eles e louvo muito essas iniciativas. Mas o discurso dominante… A minha análise do doutorado e as pesquisas que eu sigo sobre os discursos que dominam nossa área efetivamente são os discursos do apagamento da cultura em geral e o discurso que não acho que vai somar para nossa visibilidade. Acho que vamos acabar ficando com o colarinho cada vez mais azul.

C. P.: Qual a importância dos estudantes terem tomado a iniciativa de discutir essa questão?
L. F.: Achei ótimo. Fico super emocionada. Acho uma homenagem incrível. Os estudantes e alunos nem fazem ideia do diploma que recebi com esse convite. Inclusive acho que esse encontro deveria ter sido mais apoiado pela UFF, porque são os estudantes que podem fazer uma reflexão mais independente e levantar questões que não estão cristalizadas. Eu fico muito emocionada.

 

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