“A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. Este é um trecho de um poema do escritor inglês John Donne, que viveu no século 16. Hemingway, quatro séculos depois, fez de um pequeno recorte o título de um famoso livro seu.
Nossos sinos dobram pelo que ganha sentido em nossas vidas, pelo que nos arrebata. E nós que temos a convicção de que literatura é linha e fio de tecer humanidade – “nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço de continente, uma parte de terra firme” – insistimos e resistimos à ideia de que literatura é artigo de última necessidade. Ao contrário, é luxo de primeiríssima necessidade, como tantas vezes disse Silvia Castrillon. É linha e luxo para fazer de nós menos ilha e mais continente, como dizia Donne. A literatura acorda, refina e fortalece nossa empatia, demonstram estudos de neurociência.
E eu, que sou o desaguadouro de tantas vozes potentes e anteriores a mim, e também contemporâneas e amigas, como Nilma Lacerda, Percival Leme Britto, Beth Serra, Silvia Castrillon, Graça Castro, Fabíola Farias, Bartolomeu Campos de Queirós… Eu pensei um dia, lá atrás, que seria preciso derrubar as fronteiras individuais para desaguarmos em oceanos por continentes.
Pensei que, claro!, jovens bebendo direto da fonte da boa literatura, por meio de leitura em voz alta e ideias compartilhadas com leitoras(es) maduras(os) e generosas(os), poderia ser uma experiência de conexão e arrebatamento; uma experiência tecida com tempo e cuidado para criar raízes profundas na mente e no corpo, que caminham de mãos dadas na tecitura do nosso ser. Sair de si e ao mesmo tempo conectar-se consigo mesma(o), expandindo fronteiras no encontro com o outro mediadas(os) pela literatura; aprendendo a se ouvir e ouvir o outro; acordando memórias, ampliando horizontes e derrubando preconceitos.
Nasceu assim o projeto Leitores Sem Fronteiras! Ambicioso de si mesmo. Convicto de que uma vez estabelecido o vínculo e o sentido com a leitura literária jovens leriam, para si, entre si, para outras tantas gentes, num crescendo, expandindo e reivindicando para si, para elas e para eles, a fonte renovável de mais experiências literárias: leitoras e leitores sem fronteiras reivindicariam para si as bibliotecas, nas escolas, abertas à comunidade, desaguando na comunidade. Leitoras e leitores sem fronteiras. Escolas sem fronteiras. Bibliotecas sem fronteiras. Leituras sem fronteiras.
Eu semeei essa ideia desde 2012. Ou seria uma garrafa com bilhete que lancei ao mar? Foi no mesmo ano em que pensei na Campanha Eu Quero Minha Biblioteca, cuja nau eu piloto até hoje com a firme determinação de partilhar informações preciosas sobre como mobilizar a gestão pública para que recursos públicos sejam planejados e efetivados para qualificar e criar bibliotecas em escolas, preferencialmente abertas à comunidade. Eu sei que você sabe, mas sempre vale repetir: 69% das escolas públicas brasileiras ainda não têm bibliotecas[1].
Concordei imediatamente quando ouvi de Percival que “a biblioteca é imprescindível em uma proposta de escola onde faz sentido estudar”, porque “não nos interessa que as pessoas leiam, mas que aprendam e se construam como pessoas em relação à vida”.
A ideia simples – promover o engajamento de jovens com suas trajetórias leitoras, com especial enfoque para a literatura, incentivando a criação de Clubes de Leitura – encontrou no ICE Brasil – Instituto de Corresponsabilidade pela Educação o grande parceiro para sua realização. A convicção de que a literatura é fundamental na educação integral de crianças e jovens teve eco para a proposta de educação que viabilizam por meio da Escola da Escolha, na qual o protagonismo e a construção do projeto de vida de jovens têm lugar central.
Começamos pequenos e cuidadosos, em 2017, como devem ser as iniciativas promotoras de envolvimento humano, com a formação literária mediada por encontros em ambientes virtuais de jovens egressos da Escola da Escolha. Como nenhuma andorinha sozinha faz verão, convidei um grande leitor, também escritor, para compor e mediar a jornada formativa, Reni Adriano.
A experiência ganhou escala em 2018 e integrou a grade curricular de dezenas de estudantes do ensino médio de escolas públicas Brasil adentro: Maranhão, Mato Grosso, Acre, Tocantins, Paraíba, Amapá, Rio Grande do Norte, Rondônia. Com a escala ampliou-se a equipe de leitoras. Chegaram Gisele Sodré, Luana Peixoto, Rosana Baú, Silmara Gonzaga, Maíra Lacerda.
Lendo e falando sobre o que liam, experienciando alargamento de referências cognitivas, de empatia, fortalecendo a razão intelectual e a razão sensível. As fronteiras do pensamento e do sentir se ampliavam enquanto a distância geográfica tornava-se desimportante, se desfazia, porque nestes momentos viviam no mesmo tempo e espaço, no mesmo texto. Estar nesta jornada semanal foi vital. Como todo e qualquer processo educativo, a construção de cultura leitora se pauta na construção de vínculo, na permanência das experiências, no tempo que apura e fortalece as referências e a aprendizagem.
O pacto com as(os) estudantes que participaram da jornada de encontros virtuais semanais era que partilhassem as leituras e ampliassem as reflexões com outras(os) jovens da escola por meio da criação do Clube de Leitura ICE/LSF, que funcionaria do jeito e no momento que considerassem melhor, sendo protagonistas nestas e em outras leituras. O cuidado partilhado era que os Clubes fossem espaços de fala abrangente e de escuta atenciosa, de hospitalidade, de diálogo.
Seguimos em frente em 2019 com a convicção de proporcionar com a literatura uma ponte para construção e travessia de humanidades e abertura de amplas perspectivas de mundo, para além do senso comum e superficialidades que trafegam em todas as mídias. E ao seguir nesta jornada demos mais um passo na direção de tornar verdade a máxima de Antonio Candido: “Numa sociedade justa o respeito aos direitos humanos e fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”, o que de certa forma anuncia que nada e nem ninguém vive em vão.
Revelam as pesquisas que leitoras(es) de ficção são menos propensas(os) a tirar conclusões rápidas, com base em informações insuficientes e incompletas, para satisfazer sua necessidade pessoal de “apropriar-se” de um assunto. E como isso é importante na construção de um projeto de vida e no fortalecimento do protagonismo responsável, sobretudo em tempos em que é visível o tantão de gente propensa a deixar-se levar por informações falsas, as famosas “fake news”, que levam concretamente à morte de pessoas, da democracia, da nossa humanidade comum!!!
O que a jornada representou para estudantes? Escute direto da fonte:
“Participar da jornada de formação dos Leitores Sem Fronteiras sem sombra de dúvidas foi algo incrível, uma experiência única em minha vida! Como ponto principal destaco a interpretação de texto, que foi um ponto de perceptível evolução na minha jornada, além de aprender a ver tudo na vida com outros olhos, ver todas as faces da história. Nas formações, Reni, meu formador, sempre me incentivou a falar minha opinião, confesso que na maioria das vezes ficava calada, mas juro que aprendi a formular opiniões sinceras e que realmente falam de mim. O ponto baixo é que está acabando, sinto que poderia durar mais para poder aproveitar tudo que a formação tem para oferecer”.
O que esta jornada significou para o ICE? Com a palavra Juliana Zimmerman, vice-presidente do Instituto:
“O Leitores Sem Fronteiras se aproxima da Escola da Escolha em 2017 com uma proposta alinhada a um desejo antigo de incentivar de forma ainda mais potente o protagonismo dos jovens na dimensão de sua formação leitora. Sendo Projeto de Vida a centralidade da Escola da Escolha, a literatura como processo de autoconhecimento e um olhar crítico sobre seu entorno dá elementos importantes para os estudantes estabelecerem sua jornada de forma mais autoral e empática. A experiência de qualidade de leitura, discussões e partilha que o LSF trouxe evidências ao ICE da relevância de contínuo investimento na formação dos estudantes como leitores críticos e protagonistas. A avaliação das formadoras e equipes escolares também trouxe o reconhecimento de que a qualidade dos encontros era até mais importante que a quantidade de participantes. Os indicadores de processo olhados com atenção demostraram a importância de atitudes como o reconhecimento de professor(as)es em relação à melhora do desempenho da escrita de quem passou pelo Clube LSF e a capacidade de estudantes de romperem a timidez e se mostrarem mais eloquentes em uma roda de conversa”.
Como disse, uma jovem protagonista egressa da Escola da Escolha, Juany Diegues, a incrível leitora sem fronteiras que integrou o grupo do projeto piloto em 2017, aqui estamos para “continuarmos juntos e encarar o mundo com coragem poética”.
[1] Fonte: Qedu.org.br
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