Jurei nada fazer em julho. Não é que faltasse assunto quente no mundo dos livros. Basta consultar a agenda do Congresso para concluir que a literatura e as bibliotecas tiveram certo protagonismo no primeiro semestre. O que sei é que me lancei nos braços da mais genuína preguiça, invadido por uma lassidão apetitosa. A ideia era passar o mês inteirinho assim, embrenhado na poltrona verde da sala, devorando baldes de pipoca.

O fato é que num instante qualquer, a vadiagem foi ficando pesada. Aí fui navegar na Gallica, a minha biblioteca digital predileta. Entre um clique e outro, acabei sendo atraído por um livretinho cristão de meados do século XIX. Tratava-se de um catecismo em perguntas e respostas, destinado a apresentar as tentações e desventuras de leitores pecadores. Tudo me soava por demais familiar. Havia lido, no alvorecer das espinhas de adolescente católico, uma brochura amarela muito parecida.

Agora, barbado, viajei no catecismo francês. A narrativa era tremendamente clara e controversa, o que me fez alternar o riso e o franzido da testa. As divagações brotaram: presumi a energia da mão do escritor em delatar a literatura subversiva; imaginei sua alegria ao prever o número de almas supostamente salvas pelos seus bons conselhos. E fui sorrindo e franzindo.

Publicado num fascículo da “L’Ami du clergé paroissial” – revista enciclopédica criada em 1878, na cidade de Paris, e posteriormente publicada em Langres, destinada a completar e atualizar a formação do clero e a combater o espírito anticlerical principiado pela queda do Segundo Império e a proclamação da Terceira República Francesa –, o Catecismo pretendia ajudar os padres junto às crianças que receberiam o sacramento da eucaristia. Entre as interdições, as práticas de leitura mereciam atenção particular, como registra o próprio editor: “É impossível exagerar quando se trata da influência de maus livros.”

Strasbourg, Bibliothèque nationale et universitaire, 0523 detail of f. 230. St Augustine, De civitate dei in the French translation of Raoul de Presles. 14th century.

Acabei, assim, me lançando na tarefa de traduzir o texto clerical. E porque o fiz? Saudade elevada ao quadrado, talvez: nostalgia de traduzir algo divertido, como a época em que cursei Tradução na UnB, e melancolia pelo menino triste que partiu para sempre, leitor voraz de catecismos de capa amarela. Bem lá no fundo, suspeito que deixei a poltrona verde da sala para prestar um singelo tributo à leitura solteira e faceira, que saindo de casa sozinha, desacompanhada de qualquer adjetivo, inspira suspeitas de quem passa.

Afinal, é impressionante constatar como foi sendo atribuída à leitura um poder desmesurado, quase titânico. Sua força tem sido associada à própria natureza da palavra, insondável e ambígua, capaz de salvar e condenar, limpar e emporcalhar. Todos os mecanismos de fomento à leitura, incluindo as políticas públicas desenvolvidas pelos Estados Nacionais, gravitam em torno dessa crença coletiva.

Foi movido por ela que terroristas do ISIS explodiram, em 2015, a Biblioteca Pública de Mosul, destruindo dez mil livros e 700 manuscritos raros; essa mesma crença fez com que Dita Adlerova, menina checa de 14 anos, cuidasse, em segredo, de uma coleção de oito livros no bloco 31 de Auschwitz. A única diferença entre os dois é que terroristas se alimentam do medo, e a garota judia, da empatia. É essa distinção que justifica os seus atributos múltiplos: leitura libertadora ou opressora, leitura nociva ou curativa.

A censura transformada em catecismo ou em projeto de lei, por exemplo, nasce do pavor da possibilidade de catarse humana frente ao texto. Em outras palavras, medo de que, entre uma vírgula e outra, a leitura desencaminhe almas, contamine corpos, perverta desejos, destrua estruturas. Do outro lado, há quem atribua propriedades mágicas e terapêuticas ao texto. Entre as duas possiblidades, há um mar de possibilidades. O fato é que a leitura nunca esteve em território neutro, e seu ator principal, o livro, tampouco.

Esse desassossego milenar pelos supostos benefícios e malefícios da leitura deve, apesar dos riscos, suscitar diálogos a respeito do seu papel na sociedade contemporânea, incluindo o impacto do universo digital. Nesse sentido, a tradução que se principia a partir de hoje tem por fim visibilizar as intrincadas relações de poder da leitura, incluindo as tentativas de confiná-la em modalidades de utilitarismo. Bom final de férias!

OS MAUS LIVROS

Julie, responda pra mim: entre todas as árvores do Paraíso não havia duas muito particulares? 

Sim.

Quais eram?

A árvore da vida e a árvore da morte.

O que era a árvore da vida?

Era uma árvore cujo fruto nutria a vida e tornava o homem imortal.

E a árvore da morte?

Era aquela cujo fruto mataria aqueles que o comessem.

Você poderia me dizer a que se assemelha o bom livro que ensina a verdade e que propaga a virtude?

Ele se assemelha à árvore da vida.

Por quê?

Porque ele preserva no homem a mais preciosa de suas duas vidas: a vida espiritual.

E o mau livro, a que se assemelha?

Ele se assemelha à árvore da morte.

Por quê?

Porque tem o efeito de matar espiritualmente aqueles que têm a infelicidade de tocá-lo.

NATUREZA DOS MAUS LIVROS

O que é um mau livro?

É um livro prejudicial, perigo, capaz de engendrar o mal.

Se você comesse carne podre, estragada? 

Eu ficaria doente.

Se você tomasse veneno?

Eu morreria.

Se você lesse um mau livro?

Seria o mesmo que comer carne estragada e beber veneno.

Seria o seu corpo que ficaria ferido com essa má leitura? 

É a minha alma que ficaria doente e que, provavelmente, morreria.

Agora você entende o que é um mau livro?

É aquele capaz de produzir a morte espiritual.

OS DIVERSOS TIPOS DE MAUS LIVROS

OS LIVROS ÍMPIOS E IRRELIGIOSOS

Sem fé podemos ir para o céu?

Não. Escutamos a respeito dessa virtude: “Sem fé é impossível agradar a Deus”. “Aquele que não crê será condenado.”

Se fosse tirada a sua fé, isso te prejudicaria?

Isso me causaria muito dano, já que não chegaria ao Paraíso.

Existem livros capazes de tirar a fé?

Não existem apenas livros, mas, também, jornais e revistas capazes de tirar a fé de seus leitores.

Estes escritos contra a fé são chamados de livros impiedosos, irreligiosos. Sabe o porquê?

É porque a leitura desses livros, jornais, revistas, panfletos etc. destrói, na alma, a religião e o amor de Deus.

Esses tipos de escritos são difíceis de reconhecer?

Não.

O que contêm neles, normalmente?

A mentira diabólica que ousa contradizer o próprio Deus, negando as verdades reveladas;

Erros de toda sorte;

A zombaria e o sarcasmo ao abordar os ensinamentos da religião;

Um tom leve, brincalhão e sarcástico para as questões mais formidáveis para os destinos da raça humana;

Objeções tão antigas quanto o mundo e mil vezes refutadas;

Sofismas ridículos e desgastados;

No lugar da verdadeira ciência, uma multidão de preconceitos temperados com frases vazias e ocas;

Em vez da certeza da verdade, os “talvez”, os “que sei eu duvido”;

Isto é o que é mais frequentemente encontrado nos escritos de impiedade e irreligião.

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