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“O réu e o rei”

Leia, a seguir, a introdução de “O réu e o rei”, em que o escritor relembra o dia em que seu livro anterior foi banido.

Do G1

“São Paulo, sexta-feira, 27 de abril de 2007.

Eram 13h40 quando eu e Roberto Carlos entramos na sala 1-399 do Complexo Judiciário Ministro Mário Guimarães, 20ª- Vara do Fórum Criminal da Barra Funda, zona oeste da cidade. Pela primeira vez ficaríamos frente a frente desde que ele movera dois processos contra mim na Justiça: um na área cível, outro na criminal. O artista me acusava de invadir sua privacidade, usar indevidamente sua imagem e atingir sua honra, boa fama e respeitabilidade. A prova estaria no livro Roberto Carlos em detalhes, escrito por mim e publicado pela editora Planeta em dezembro de 2006. Além da imediata proibição da obra, o cantor pedia uma alta indenização em dinheiro (chegou a requerer multa diária de 500 mil reais) e minha condenação a uma pena que, segundo seus advogados, poderia ultrapassar dois anos de cadeia.

Nosso encontro no fórum era uma das etapas do processo criminal: uma audiência de conciliação convocada pelo juiz Tércio Pires. Inicialmente, o magistrado marcara a sessão para sexta-feira, 13 de abril — conforme chegou a ser publicado no expediente judiciário. Roberto Carlos solicitou, porém, a mudança de data. Como o próprio artista admite, tem superstição com o número 13, e sempre que possível o evita. Consta que ele não marca nada de muito importante nessa data, não se senta em poltrona 13 de avião, não anda em carro que tenha 13 na placa e deseja construir prédios sem o 13º- andar. A data da audiência foi então reagendada para uma outra sexta-feira, 27 de abril. Contrariando previsões meteorológicas, fazia calor naquela tarde.  Evitei meu traje habitual, de maior informalidade, e fui para a reunião de blazer e calças cinza, camisa e sapato social preto. Roberto Carlos compareceu vestido de Roberto Carlos: calça jeans, terno azul e tênis branco.

No dia anterior, o cantor tinha feito um show fechado em São Paulo, exclusivo para convidados do Banco Bradesco. Pouco antes da meia-noite, enquanto ele encerrava a sua apresentação com o célebre ritual de oferecer flores às fãs, eu entrava sozinho no ônibus que me levaria de Niterói, onde moro, à capital paulista. Durante a viagem, me lembrei dos anos de pesquisa para o livro, quando por várias vezes fiz aquele mesmo percurso para encontrar personagens da história de Roberto Carlos. Foi em São Paulo, por exemplo, que entrevistei Paulinho Machado de Carvalho, que o contratou para o programa Jovem Guarda na tv Record; o maestro Chiquinho de Moraes, que comandou seu primeiro show no Canecão; e Marcos Lázaro, seu primeiro grande empresário. Como das outras vezes, desembarquei no Terminal Rodoviário do Tietê no início da manhã, com tempo suficiente para chegar sem atropelos ao local da audiência.

Um esquema especial de segurança tinha sido montado para garantir a tranquilidade do cantor no fórum da Barra Funda. Desde o meio-dia, grades e faixas de proteção eram vistas ao redor da área interna onde ele iria circular. Além disso, um destacamento de doze policiais militares foi requisitado para acompanhá-lo ao local. Roberto Carlos se dirigiu ao fórum a bordo de um Escort
preto, um dos carros de sua coleção que mais usa, especialmente em São Paulo. “Máquinas fotográficas e celulares com câmera estão nas mãos de quase todos os funcionários-fãs que abandonaram o trabalho para tentar ver o ‘Rei’”, relatou o site G1. Ele chegou acompanhado da secretária Maria Carmosina da Silva, a Carminha, e de seus seguranças pessoais, e foi recepcionado pelos policiais no estacionamento. Dali foi direto para uma entrada pelos fundos do
prédio, evitando os fãs e jornalistas que já o aguardavam na porta principal. Sorridente, acenava para as pessoas, enquanto era conduzido a um dos elevadores que, por dez minutos, ficou reservado exclusivamente para ele.

Logo depois eu entrei no outro elevador, que subiu com lotação máxima. Um dos passageiros, um moreno alto, usava algemas e, segundo comentários, estava ali porque participara de uma chacina na periferia de São Paulo. Também me contaram que naquele mesmo fórum o coronel Ubiratan Guimarães tinha sido julgado pela morte dos 111 presos no tenebroso episódio do
massacre do Carandiru. E que anos depois ali também estiveram Suzane von Richthofen e os irmãos Cravinhos, autores do bárbaro assassinato do casal Von Richthofen. Só aí tive a dimensão do que estava acontecendo comigo. Eu nunca tinha sido processado por alguém e jamais havia frequentado fóruns de Justiça, muito menos criminal.

Cercado pelos policiais, Roberto Carlos caminhou por um cordão de isolamento que ia da porta de saída do elevador até a entrada da sala 1-399, no terceiro andar. Um grande número de jornalistas já se concentrava ali na expectativa de obter alguma declaração. Passei rápido por eles, prometendo conversar depois. Roberto Carlos também não falou com a imprensa. A nos
esperar na sala estavam o juiz Tércio Pires, dois representantes do Ministério Público e uma escrevente. O cantor entrou acompanhado de sua secretária e de dois advogados, ficando os seguranças do lado de fora. Comigo entraram os advogados da editora Planeta, o diretor-geral da empresa, César González, e o editor Pascoal Soto — ambos também réus no processo criminal.

O juiz mandou então fechar a porta da sala e deu início à audiência. E ali, pelas cinco horas seguintes, seria reduzido a pó um trabalho de quinze anos de pesquisa. Todo esse tempo de investimento, de madrugadas acordado diante de um monitor, diante de livros e escritos, recortes de jornais e revistas, ouvindo e transcrevendo inúmeras fitas cassetes, escrevendo, tudo foi por água abaixo naquela sala.

A proibição e a apreensão do livro Roberto Carlos em detalhes são consideradas graves agressões à liberdade de expressão. Por isso, muitos reagiram de forma contundente contra o resultado daquela audiência no fórum da Barra Funda. Outros, porém, concordaram com a atitude de Roberto Carlos, apoiando a censura. A polêmica se estabeleceu definitivamente, ocupando os principais veículos de comunicação do país e até alguns no exterior, sendo citada em reportagens no Le Monde e no New York Times.

Advogados, políticos, artistas, acadêmicos, jornalistas e pessoas do povo comentaram o caso. Do escritor Paulo Coelho ao ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci; do jurista Saulo Ramos ao então ministro da Cultura, Gilberto Gil; passando por Hebe Camargo, Caetano Veloso, Marisa Monte, Ruy Castro, Nelson Motta, Carlos Heitor Cony, Maria Bethânia, Elio Gaspari, Zeca Pagodinho, Zuenir Ventura e vários outros que manifestaram publicamente a sua opinião, contra a proibição do livro ou a favor dela. A polêmica ocupou também diversos espaços públicos: do plenário do Congresso Nacional aos salões da Academia Brasileira de Letras; dos auditórios de renomadas universidades às mesas dos mais humildes botequins. Nunca o debate em torno da proibição de uma obra alcançou tamanha repercussão no Brasil.

O caso, portanto, já é de conhecimento do grande público. O que não se sabe até agora são os detalhes, os bastidores, as muitas informações em torno da pesquisa, da publicação e da proibição de Roberto Carlos em detalhes. Como foi travada essa disputa judicial? Quais as artimanhas nos autos do processo? O que aconteceu de fato naquela audiência? E mais: como surgiu a ideia do livro? Qual o processo de construção de uma biografia? Quais os caminhos que percorri durante a pesquisa? Como foram as tentativas de entrevistar Roberto Carlos? E afinal: por que o cantor teria ficado tão furioso com o livro? Quais os recursos usados por seus advogados para obter a proibição da obra? O que dizem as personalidades que se manifestaram contra Roberto Carlos ou a favor dele? E quais os meus argumentos de defesa?

Das acusações dirigidas a mim no processo judicial, algumas foram explicitadas em entrevistas pelo próprio Roberto Carlos, como esta: “A minha história é um patrimônio meu, quem escreveu este livro se apropriou deste meu patrimônio e usou este patrimônio em seu próprio benefício”. Ou seja, alega que eu seria um usurpador da história alheia, como se a história de uma figura pública não pertencesse também à coletividade nem fosse de interesse geral. Neste novo livro, conto a minha história, falo da longa e intensa relação com o meu objeto de estudo que resultou naquela biografia, que acabou me tornando réu de dois processos. É a história de um brasileiro, vindo do interior, filho de trabalhadores, fã de Roberto Carlos, que contra todas as adversidades estudou, chegou à faculdade, pesquisou e escreveu sobre o maior ídolo da nossa música popular. Esta é a minha versão sobre um polêmico acontecimento que já não pertence apenas a mim ou a Roberto Carlos, mas sim à história da luta por maiores liberdades públicas no Brasil”.

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