Por Miguel Martins de Carta Capital
Ministro defende participação do Estado em megaprojetos com previsão de reembolso aos cofres públicos e propõe fundos setoriais como o do audiovisual
Crítico à evolução da política de incentivos tributários, Juca Ferreira, ministro da Cultura, considera a Lei Rouanet perversa. “Ela é injusta, provoca concentração, discrimina e não é capaz de se realizar em todo o território brasileiro”.
Nem por isso está satisfeito com a decisão do TCU de vetar a captação de recursos por meio de renúncia fiscal a projetos com potencial de lucro. “Pode resultar em arbitrariedades.”
Na entrevista a seguir, Ferreira expõe suas críticas à legislação e defende a participação do Estado como parceiro de megaprojetos, com a previsão de reembolso aos cofres públicos em caso de lucro.
O ministro propõe ainda a criação de fundos setoriais semelhantes ao do audiovisual para outras áreas culturais e a reestruturação da cadeia produtiva da música brasileira.
Um dos principais objetivos de sua gestão, diz, é promover a desconcentração regional dos incentivos ficais, 80% deles destinados atualmente à Região Sudeste.
“Quando começamos a construção dessa política, alguns cineastas do Rio de Janeiro e São Paulo diziam que cinema é indústria e deve se concentrar em uma região, mas a criatividade não é industrial, precisamos que o povo brasileiro se veja na sua diversidade.”
CartaCapital: O Tribunal de Contas da União recomendou o fim dos incentivos fiscais para projetos culturais “lucrativos” ou “autossustentáveis”. Como o senhor avalia a decisão?
Juca Ferreira: Vejo pontos positivos e negativos na decisão do TCU. Não gosto das intervenções dos órgãos de controle sobre quem tem a responsabilidade de gerir as políticas públicas. Deveria haver uma negociação. Eles chegaram a consultar o ministério, mas na gestão da ministra Ana de Hollanda, em 2011, quando este processo foi instalado.
A decisão do TCU manifesta, porém, um incômodo com uma das distorções da Lei Rouanet. O financiamento pela legislação acaba capitalizado por quem menos precisa e deixa de patrocinar diversas áreas culturais importantes para o Brasil.
Esse lado da sensibilidade eu prezo muito, mas eu questiono a forma de levar essa recomendação à prática. Tenho certeza de que terei de consultar o tribunal a todo o momento.
CC: É possível estabelecer um critério objetivo para determinar se um evento ou obra tem potencial lucrativo?
JF: O lucro faz parte da atividade cultural. No capitalismo, tudo está regido pela lei da mercadoria, inclusive a cultura. O pequeno produtor que investe 2 mil reais em uma atividade certamente pensa em retorno. O lucro não é prerrogativa dos grandes eventos.
Se queremos construir um desenvolvimento cultural do País nas condições históricas que vivemos, temos de valorizar a existência de pequenas, médias e grandes empresas culturais. Não podemos demonizar as grandes. O Estado tem a responsabilidade de desenvolver as três esferas.
Não podemos ter preconceito com artistas consagrados, que têm público, e financiar apenas o que não são conhecidos. Temos de assumir a complexidade da realidade cultural. Os grandes artistas fazem parte e, diria, são até cabeça de ponte de uma perspectiva de desenvolvimento cultural do País.
Não tenho qualquer preconceito com a Claudia Leitte. Ela retirou o projeto de sua biografia, portanto minha disposição de vetá-lo não precisou ser aplicada.
CC: Após 25 anos de Lei Rouanet, como o senhor avalia a política de incentivos fiscais?
JF: A lei Rouanet é perversa. Só se aplica a quem tem condições de dar retorno de imagem para as empresas que se associam. O dinheiro é público, mas quem define em última instância é o setor privado.
Não tenho nenhum problema com as empresas, tenho problema com a lei. Ela é injusta, provoca concentração, discrimina, não é capaz de se realizar em todo território brasileiro.
CC: Atualmente, os incentivos fiscais superam os investimentos diretos do MinC.
JF: Hoje chega a 80% do que se gasta em Cultura. A lei foi criada no auge do neoliberalismo, em meio às teses de que o Estado é um “lobo mal” a ser afastado do setor, como se a relação com os artistas, entendidos como a “chapeuzinho vermelho”, fosse ser sempre perversa. A ideia era repassar a tarefa ao mercado, pois ele saberia melhor o que fazer.
Todos os grandes teóricos do capitalismo assumiam, contudo, que o Estado é importante para regular a atividade econômica. No caso da cultura, mais ainda, pois ela é formada por bens simbólicos trocados, vendidos e comprados, são expressões culturais de segmentos da sociedade.
Por essa complexidade do conteúdo, o valor de uso de toda produção artística é mais relevante que seu valor econômico. Mas o valor econômico, de troca, não é desprezível, ao contrário.
Um dos grandes problemas da crise brasileira é que todo nosso desenvolvimento está concentrado em exportações de commodities, agrícolas e minerais. Exportação não dá para sustentar um País, é preciso diversificar a economia brasileira e entrar em áreas de alto valor agregado. A economia cultural é uma delas.
CC: Então, os investimentos diretos do Estado em Cultura devem aumentar?
JF: É necessário. A Lei Rouanet como está estruturada não cumpre o que propõe. Ela não desenvolveu um capitalismo cultural, uma economia da cultura. Privilegiou uma camada de intermediários, com foco na produção de projetos e em sua aprovação nos departamentos de marketing das empresas.
Os números são muito contundentes. Apenas em 2014, os produtores de Rio de Janeiro e São Paulo captaram mais do que o Norte e o Nordeste juntos desde 1991, quando foi criada a Lei Rouanet. No Norte, os incentivos não chegam a 1% ao ano, no Nordeste, nem 5%.
Queremos que os recursos para a Cultura sejam transferidos antes para um fundo nacional, administrado por sua vez por fundos setoriais de cada segmento cultural, à semelhança do que ocorre atualmente no setor do audiovisual. Para cada um dos novos fundos, haverá comissões com participação da sociedade.
CC: Eles funcionariam da mesma forma que o fundo setorial do audiovisual, financiado por contribuições de integrantes da cadeia produtiva?
JF: Cada área tem sua grade de critérios. A música é totalmente diferente e problemática em relação ao cinema, e tem precisado de investimentos pesados.
Vou lhe contar uma história sobre os setores. Fui participar de um debate sobre Lei Rouanet na Assembleia Legislativa do Ceará. Fui recebido por uma orquestra de jovens de periferia, regida pelo mesmo maestro há muitos anos. Ele tocou grandes compositores estrangeiros, Beethoven etc.
Após a apresentação, o mastro pediu a palavra. “Ministro, essa lei não é boa. Eu tenho um patrocínio há três anos, precário, mas tenho conseguido manter a orquestra. Aí resolvi homenagear Luiz Gonzaga, e agora não posso ter 100 % de renúncia fiscal para meu projeto, pois só a música erudita tem direito à renúncia integral.”
Música popular pode ser uma atividade popular com grande importância, e certos projetos de cultura erudita podem ter pouca relevância. Critérios previamente definidos como este são um escândalo.
CC: Como o Procultura quer modificar a relação com os megaprojetos?
JF: O Procultura cria possibilidades como não demonizar o investimento com potencial lucrativo: o ministério entra como parceiro, investidor. A depender do lucro do projeto, o percentual do investimento público inicial vai ser exatamente o percentual de retorno para o Estado.
Para se ter uma ideia, a cinematografia americana, de 100 mil filmes, 10 estouram, 30% são rentáveis e o resto tem problemas. A previsibilidade que o TCU imagina na cultura não existe. Eu teria de montar um instituto para prever taxa de lucro e investimento para cada empreendimento.
Um órgão definir previamente esse potencial abre a possibilidade de uma gestão subjetiva e pode resultar em arbitrariedades a partir de avaliações pouco consistentes. O Procultura trata de outra maneira: se for um empreendimento de alto valor lucrativo, vai haver uma parceria.
CC: O projeto quer estimular a desconcentração de capital cultural entre os pequenos, médios e grandes produtores?
JF: Não se pode definir assim, de forma abstrata. No caso da música, por exemplo, temos um nível de produção altíssimo.
Em uma conversa com o Gilberto Gil, ele me disse que seria muito mais difícil para ele, Caetano e outros emplacarem hoje, pois há pelo menos uns 50 músicos com o mesmo padrão de criatividade. Ou seja, a música brasileira não está em crise. O que está em crise é o sistema de promoção e venda da música brasileira.
A cadeia produtiva da música está desestruturada. Hoje um menino de escola primária tem condições de vender conteúdos musicais para os colegas com pen drive, há grande reprodutividade. A internet modificou o panorama e as majors não se modificaram.
Hoje, a coisa mais difícil é a afirmação dos músicos, é tudo muito imediatista, vem muito das ações dos produtores e de um ou outro curador. Na música, é preciso investir naquilo que não é conhecido, é preciso montar uma estrutura de difusão, de promoção, de festivais para dar visibilidade a essa música.
E precisamos pensar em todas as áreas, inclusive no mercado internacional. Se exportarmos nossos artistas para o mercado de língua portuguesa, ibero-americano e latino-americano, teremos o terceiro maior mercado de cultura do mundo.
CC: Os artistas independentes sofrem muito com a desagregação dessa cadeia produtiva.
JF: Vamos dar um passo importantíssimo. Estamos trabalhando com os músicos no sentido de regulamentar o direito autoral na internet. A regulação nacional não é suficiente, estamos dialogando com países da América Latina, Caribe, Europa e a Unesco. Hoje, temos duas economias de música: uma grande, na internet, e uma média, que são os shows. Marisa Monte me disse: “eu lhe dou todos os meus CDs, pois eles não têm importância econômica alguma. São cartões de visita”. Por isso, precisamos focar na internet.
CC: O Procultura quer promover a desconcentração regional dos incentivos ficais. Hoje 80% deles concentram-se na região Sudeste. Por outro lado, um pouco de concentração não é inevitável, como no caso do cinema?
JF: Concentração é parte da realidade. Há áreas mais desenvolvidas, com infraestrutura maior, que possibilitam o surgimento de mais artistas, mas 80% em dois estados é um escândalo.
Não se trata de igualitarismo burro. O Estado tem obrigação de corrigir as distorções sociais. Quando começamos a construção dessa política, alguns cineastas do Rio e São Paulo diziam que cinema é indústria e deve se concentrar em uma região, mas a criatividade não é industrial, precisamos que o povo brasileiro se veja na sua diversidade nas telas de cinema.
Hoje tem produtor em todo o Brasil, o cinema cearense, pernambucano e brasiliense estão bombando. A concentração burra é tão burra quanto a tentativa de um igualitarismo abstrato.
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