Por Julia Cagé do Observatório da Imprensa
Nunca existiram tantos produtores de informação quanto hoje. Paradoxalmente, a mídia nunca esteve em situação tão difícil. Alguns observadores afirmam que os próprios meios de comunicação são responsáveis pela situação preocupante em que se encontram devido a seus inúmeros erros e à incapacidade de se adaptarem ao novo mundo. Meu diagnóstico é relativamente diferente: a mídia não conseguiu o modelo econômico adequado porque foi incapaz de compreender a natureza da crise e, consequentemente, continuou a reagir com reflexos desatualizados. A maior parte do debate se dá em torno da “morte do impresso”, mas o que importa não é o meio, e sim, a mensagem. As questões mais importantes – a qualidade do conteúdo e a estrutura organizacional – foram omitidas.
Mas se a mídia do futuro depender de investidores ricos para seu financiamento, há muitos perigos pela frente. Em parte, foi o acordo de propriedade do publisher italiano Carlo Caracciolo que mergulhou o jornal Libération na crise em que se encontra hoje. Por isso é que é preferível que as empresas jornalísticas se organizem como fundações, e não como sociedades anônimas: numa fundação, os herdeiros não podem dispor como quiserem do capital herdado. O investimento é irrevogável e, portanto, permanente.Resumindo: a questão não é se a mídia deveria ser subsidiada, e sim, se lhe deveria ou não ser concedido um status favorável, em termos legais e de tributação, em reconhecimento à sua contribuição à democracia – um status comparável àquele de que gozam, há muito tempo, muitos outros participantes na economia do conhecimento. Alguns observadores veem o interesse de investidores bilionários – como Jeff Bezos, Pierre Omidyar e John Henry – como o prenúncio de uma nova idade do ouro: os jornais voltariam a contar com recursos e funcionários.
Com muitos veículos jornalísticos atualmente atolados na crise, tornou-se imperativo pensar em novos modelos para a mídia. Aquele que proponho baseia-se em financiamento coletivo [crowdfunding] e poder compartilhado [power-sharing]. Espero que possa servir como um novo gabarito econômico e legal para a mídia do século 21 – um modelo que combina alguns aspectos de sociedades anônimas com os de fundações. Chamemos a essa nova entidade uma organização de mídia sem fins lucrativos [nonprofit media organization – NMO].
Deveria o poder ser proporcional às ações de capital?
Para começar, é útil relembrar alguns erros do passado, como a experiência de jornais que se tornaram empresas públicas. Tornar-se público provou ser um erro tanto para os jornais quanto para a democracia. Nos primeiros cinco anos depois que o Chicago Tribune se tornou uma empresa pública, os lucros aumentaram 23% ao ano, enquanto a receita bruta tinha um aumento de apenas 9%; esse desempenho foi conseguido cortando as despesas drasticamente. A busca de maiores lucros não afetou apenas jornais, mas também veículos de rádio e televisão (algumas emissoras de televisão têm margens operacionais de 50%) e a obrigação de produzir informação local de qualidade caiu consideravelmente.
Para falar francamente, ações de empresas jornalísticas não deveriam ser negociadas publicamente. Isso é particularmente verdadeiro em se tratando dos Estados Unidos, onde as empresas públicas têm responsabilidade fiduciária para com seus acionistas, para maximizar os lucros. Essa obrigação legal entra em conflito com a responsabilidade moral de “servir o bem-estar geral” (como consta da Declaração de princípios da Sociedade Americana de Editores de Jornais). De forma semelhante, pois as universidades têm uma responsabilidade moral de ensinar e envolver em pesquisa, é difícil imaginá-las como empresas publicamente negociáveis visando a maximizar os lucros.
Nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Irlanda e na Alemanha as empresas jornalísticas vêm experimentando uma porção de fórmulas inovadoras há muitos anos. Surgiram muitas organizações jornalísticas sem fins lucrativos. O maior conglomerado de mídia da Alemanha, a Bertelsmann – maior da Europa e uma das maiores empresas de mídia do mundo –, é propriedade da Fundação Bertelsmann. Essa estrutura não impediu, de forma alguma, o crescimento da Bertelsmann. Com 110 mil funcionários, a Bertelsmann ocupa um espaço significativo na França, na Europa e nos Estados Unidos, onde é a acionista majoritária da Penguin Random House, a maior editora do mundo.
O status de fundação não determina, por si só, como as empresas de mídia são administradas. Deveria o poder ser estritamente proporcional às ações de capital? Se assim fosse, que poderes compensatórios poderiam existir? Numa sociedade anônima típica, quem detém a maioria das ações também tem a parte do leão das ações com direito a voto. Isso é um problema porque um acionista dominante pode pôr a empresa a serviço de seus interesses econômicos ou políticos, e não do interesse público.
Limitações devem-se a uma capitalização inadequada
Examinemos alguns modelos existentes de organizações jornalísticas sem fins lucrativos para ter uma ideia mais clara de suas vantagens e limitações. Um dos mais antigos jornais independentes possuídos por uma fundação é o Guardian, um pilar da imprensa britânica. The Guardian é propriedade do Guardian Media Group que, por sua vez, é controlado pela Scott Trust, uma fundação sem fins lucrativos cuja missão, desde 1936, tem sido a de garantir a independência do jornal. Na França, o Ouest-France, principal jornal em termos de circulação, é propriedade de uma organização sem fins lucrativos desde o início da década de 90. Com esse status legal, o jornal conseguiu evitar qualquer tentativa hostil de assumir seu controle.
Entretanto, é nos Estados Unidos, onde a filantropia é a regra, que encontramos o maior número de organizações jornalísticas sem fins lucrativos. Uma das mais conhecidas é a ProPublica, que Herbert e Marion Sandler criaram em 2008 com a doação de vários milhões de dólares. O site, de jornalismo investigativo, já ganhou dois prêmios Pulitzer. Entre os empreendimentos mais bem-sucedidos encontramos o Tampa Bay Times, que pertence ao Instituto Poynter, uma entidade sem fins lucrativos, o Texas Tribune, o Christian Science Monitor e, naturalmente, a Associated Press, uma das principais agências de notícias do mundo e a mais antiga cooperativa.
Poderia ser dito que as entidades sem fins lucrativos seriam uma solução para a atual crise da mídia? Apesar dos casos excepcionais acima citados, a maioria das empresas jornalísticas sem fins lucrativos é muito pequena. A maioria dessas organizações se envolve num tipo de jornalismo segmentado, especializando-se em áreas de assuntos estritamente definidos.
Embora esse tipo de publicações traga uma lufada de ar fresco bem-vindo ao debate democrático e, até certo ponto, preencha a lacuna deixada pelos cortes de custos na mídia tradicional, elas não parecem capazes de substituir os atuais jornais, principalmente porque a maioria delas é de sites na internet, que sofrem das mesmas limitações dos websites dos jornais. Em média, a visita ao website de uma publicação sem fins lucrativos dura menos de dois minutos, metade do tempo, em média, de uma visita a um jornal tradicional norte-americano e muito menos do que o tempo gasto para ler um jornal impresso tradicional. Essas limitações não estão intrinsecamente vinculadas ao status de fundação das organizações em questão, mas devem-se, em grande parte, a uma capitalização inadequada.
Ampliação da redução de impostos seria um passo em frente
As fundações merecem crédito por terem colocado os leitores novamente no centro do quadro… No entanto, não foram capazes de envolver os leitores em seu financiamento. Com exceção doVoice of San Diego, que lançou uma das maiores campanhas de financiamento coletivo conhecidas até hoje (a Bigger Voice Fund), as empresas jornalísticas levantaram pouco dinheiro dessa maneira. Em geral, as fundações dão preferência a grandes doações por parte de pessoas ricas, empresas ou outras fundações – e não a pequenas contribuições individuais. Isso cria dois tipos de problema. Em primeiro lugar, tornam-se vulneráveis à excessiva influência de um pequeno número de pessoas, criando um risco para a democracia. E em segundo lugar, tornam-se igualmente vulneráveis a uma recessão econômica e, portanto, financeiramente frágeis.
Um outro ponto merece ser enfatizado: as leis tributárias que dizem respeito às fundações são extremamente complexas nos Estados Unidos e na França e isso coloca limites rigorosos para o desenvolvimento de mídias alternativas com base em fundações. Para uma operação jornalística sem fins lucrativos, é muito difícil, nos Estados Unidos, atender aos critérios da Seção 501(c)3 do código tributário (1) , que deve ser atendido por qualquer organização que procure a isenção de impostos e evitar o pagamento do imposto de renda empresarial.
Atualmente, as autoridades francesas estão avaliando a possibilidade de ampliar o status de fundação para as organizações jornalísticas e espera-se que isso seja aprovado. Uma possibilidade seria declarar a manutenção do pluralismo da imprensa como missão no interesse público. De qualquer maneira, é extremamente importante que comecemos a pensar na mídia como parte de um ecossistema muito maior, o setor da economia que produz conhecimento.
Meu objetivo não é propor melhoramentos específicos na legislação francesa ou norte-americana. Ao invés disso, é argumentar que a ampliação da redução de impostos concedida aos fundos para doações na França e às organizações enquadradas na Seção 501(c)3 do código tributário norte-americano significaria um importante passo em frente. A simplificação do atual sistema de contribuições para a mídia incentivaria doações privadas e tornaria a assistência do Estado mais eficiente. Mais importante ainda, a reorganização das empresas jornalísticas como fundações tornaria possível estabelecer doações de capital permanentes. As doações a fundações são irrevogáveis e o sistema de investimentos irrevogáveis tornaria possível garantir a independência das empresas jornalísticas no longo prazo.
Alívio de impostos e democratização de capital
O tipo de organização jornalística sem fins lucrativos que estou propondo combina as virtudes de vários tipos legais. Goza das vantagens de uma fundação (estabilidade de financiamento e capacidade de ter como objetivo a informação como bem público, e não como maximização do lucro às custas da qualidade) e das de uma sociedade anônima (propriedade diversificada, reposição da categoria das lideranças e tomada de decisões democrática, desde que o poder dos maiores acionistas seja adequadamente restrito). A organização de mídia sem fins lucrativos que estou propondo é um modelo híbrido. Em parte, é inspirado no modelo das grandes universidades internacionais, que combinam atividades comerciais e não comerciais.
O modelo de organização de mídia sem fins lucrativos encaixa-se entre os dois extremos de uma fundação e uma sociedade anônima. Assim como uma fundação, pode aceitar doações ilimitadas. Em meu modelo, essas doações deverão ser isentas de impostos, como são atualmente as doações às fundações. Mas também deverão ser compensadas pelo direito de voto numa empresa: uma doação a uma organização de mídia sem fins lucrativos é uma contribuição ao seu capital e, portanto, traz direitos “políticos”, como qualquer outro investimento.
Em países como os Estados Unidos, onde os subsídios à mídia são insuficientes, o modelo da organização de mídia sem fins lucrativos também poderia fornecer uma maneira nova e extremamente eficiente para o governo aumentar sua contribuição para a saúde da mídia. O modelo da organização de mídia sem fins lucrativos oferece inúmeras vantagens. Combina os benefícios do modelo sem fins lucrativos com a governança democrática, trazendo um maior número de pequenos acionistas e permitindo os grandes investimentos muitas vezes necessários. Os grandes investidores abrem mão de seu poder de tomar decisões, mas em contrapartida recebem milhões em reduções de impostos.
Alívio de impostos em troca de democratização e estabilização de capital: este sistema resolve as contradições inerentes envolvidas em conceder subsídios aos meios de comunicação de propriedade de empresas altamente lucrativas ou em permitir que a imprensa seja controlada por pessoas ricas.
Capitalismo, crowdfunding e democracia
A solução que estou propondo pode parecer radical. Mas esta nova entidade legal – a organização de mídia sem fins lucrativos – é tudo ou nada. Uma simplificação drástica do atual sistema de subsídios à imprensa na França, uma estrutura legal e fiscal mais acomodada para a mídia nos Estados Unidos, uma ampliação do valor agregado da redução de impostos para jornais online na Europa (onde atualmente a redação de impostos só é disponível para jornais impressos) e, de uma maneira mais geral, uma concessão às empr3esas jornalísticas do mundo inteiro de um acesso mais fácil ao status de fundação e aos benefícios das contribuições privadas – todas essas medidas ajudariam.
O que deve ser reconhecido é que a mídia jornalística fornece um bem público, assim como o fazem as universidades e outros contribuintes à economia do conhecimento do século 21. Por esse motivo, ela merece um tratamento especial por parte do governo. Pouco a pouco, os governos avançaram no sentido de permitir que as empresas jornalísticas funcionassem como entidades não lucrativas e, consequentemente, pudessem solicitar doações. Ao mesmo tempo, tornaram mais difícil adquirir o status de entidades não lucrativas porque ainda não adotaram completamente a ideia da informação como um bem público.
No atual panorama da mídia não é difícil encontrar um bom número de organizações em dificuldade que poderiam ser salvas se adotassem o modelo da organização de mídia sem fins lucrativos. Na França, por exemplo, o modelo da organização de mídia sem fins lucrativos poderia ter permitido que os funcionários do diário regional Nice Matin (então sob administração judicial) comprassem o jornal sem ter que ceder os direitos de propriedade ao Corse-Matin ou delegar a administração do jornal a outras pessoas (o que foi feito por ordem do tribunal em novembro de 2014).
Se o jornal nacional Libération fosse uma organização sem fins lucrativos, uma terça parte dos funcionários não teria que ter saído em 2015 devido a problemas vinculados às propriedades do barão de imprensa Carlo Caracciolo. Uma vez que os investimentos numa organização de mídia sem fins lucrativos são irrevogáveis, os herdeiros de Caracciolo não teriam podido vender suas ações e, dessa forma, pôr em perigo todo o sistema, ao transferirem o controle para investidores externos, com pouco interesse em informação de qualidade.
Nos Estados Unidos, quantas demissões de jornalistas poderiam ter sido evitadas se seus empregadores tivessem sido uma organização de mídia sem fins lucrativos do tipo daquela que estou propondo? Quantos jornais poderiam ter sido comprados, ao invés de terem sido obrigados a fechar as portas? O jornal Sentinel, de Milwaukee, que até o ano 2000 era propriedade de seus empregados, poderia ter optado por ser uma organização de mídia sem fins lucrativos, ao invés de se ter tornado público. Poderia ter atraído junto a seus leitores – dedicados à qualidade amplamente reconhecida de seu jornalismo investigativo – o apoio financeiro necessário, assim como junto a seus empregados, que poderiam ter recebido reduções de impostos em contrapartida a seus investimentos, ao invés de terem sido obrigados a ver suas ações despencarem na Bolsa de Valores. E.W. Scripps, que comprou o jornal em 2015, já fechou outros jornais que também comprou, como o Cincinnati Post, The Albuquerque Tribune e o Rocky Mountain News.
O modelo da organização de mídia sem fins lucrativos também incentivaria a criação de jornais e de sites de notícias online. Sob o novo modelo, seria mais fácil para eles levantar financiamentos junto a seus leitores, ao mesmo tempo que pediriam investimentos de investidores externos sem medo de perder o controle (porque o direito de voto desses grandes investidores externos seria limitado). Os veículos jornalísticos sem fins lucrativos já existentes também poderiam ser ampliados.
As dificuldades que a mídia enfrenta são tão grandes que não há tempo para esperar. Uma opção tem que ser feita. Novas tecnologias, como a internet, abriram o caminho para a democratização do capitalismo – da qual, o financiamento coletivo [crowdfunding] é um indício. Mas meras doações não bastam: os contribuintes deveriam receber direitos de voto e poder político como incentivos ao investimento e como meio de reafirmar o controle sobre o nosso destino coletivo. Capitalismo, crowdfunding e democracia: essas são as palavras de ordem para o futuro.
(1) Os interessados em detalhes dos critérios da legislação norte-americana relativa a instituições sem fins lucrativos podem obtê-los aqui
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