Por Rosa Ruela, do Visão.
Imagine um site onde pessoas verdadeiras são “emprestadas” a “leitores”. E onde cada “leitor” se senta frente a um refugiado, um obeso, um desempregado ou um doente bipolar que lhe conta a história da sua vida (há mais estigmas para todos os gostos). Agora, pode parar de imaginar. Esse site existe, chama-se Human Library e já “abriu” em vários países.
Nicosia, Chipre, 7 de fevereiro. Num café com sofás e mesas e cadeiras desirmanadas estão sentados oito refugiados. Um deles é Ibrahim Yonga, de 18 anos, que fugiu do grupo jihadista Boko Haram, nos Camarões, a bordo de um barco de pesca. Deixou os pais e irmãos para trás, temeu outra vez pela vida no alto-mar e acabou a receber os primeiros socorros num navio. Agora, vive no campo de refugiados Kofinou, no lado sul da ilha dividida, com mais outras 400 pessoas que esperam resposta a um pedido de asilo. E já consegue contar tudo isto sem lhe tremer a voz.
À sua frente, está Theano Stellaki, uma cipriota já nos 60 anos, que dirá a um jornalista da AFP ter ficado “muito emocionada” com o relato do rapaz. “Ouvimos estas histórias todos os dias na televisão, mas é diferente sermos confrontados com elas diretamente.”
Perto de Ibrahim e Theano, estão palestinianos, congoleses e sudaneses, todos a contarem a alguém o que lhes aconteceu antes de chegarem a Chipre. E entre uma mesa e outra cirandam voluntários da ONG cipriota que abriu esta “biblioteca humana” durante uma tarde. Fazem as vezes de “dicionários humanos”, prontos a ajudar na tradução.
Numa das paredes do café vê-se um quadro onde estão cartões com os “títulos” dos oito “livros” disponíveis para serem “emprestados”. Os “leitores” têm meia-hora para cada “livro” e já sabem que o tema é comum a todos. Em Chipre, há mais de 8 mil refugiados, lembra a propósito uma das voluntárias, Margarita Kapsou.
À chegada, receberam um papel com o código de conduta – pede-se-lhes para “tratar os ‘livros’ com respeito”. Afinal, eles estão ali “a partilhar experiências especiais e sensíveis”, diz Margarita. Mas ninguém prepara os “leitores” para ouvir histórias tão duras.
“Senti-me agarrado pela força das histórias”, admite Jeremy, um professor de ténis francês a viver em Chipre, também entrevistado pela AFP. “São tão intensas que, depois de dois ‘livros’, preciso de descansar.”
Um dos livros humanos da tarde era Kamal, um sudanês de 42 anos, que a certa altura tirou o boné para mostrar a cicatriz deixada por uma bala. Refugiou-se há 16 anos em Chipre e conta pela primeira vez a sua história a desconhecidos. “Faz-nos bem partilhar o que vivemos, é melhor do que guardar tudo para nós”, dirá. “A palavra é uma forma de libertação.”
Não é, porém, a primeira vez que se organiza uma “biblioteca humana” em Chipre. Já houve outras na ilha desde que o movimento Human Library nasceu, na Dinamarca, em 2000.
“Como é que devemos entendermo-nos se não temos a oportunidade de falar uns com os outros?” A pergunta resume bem como quatro amigos dinamarqueses se lembraram de criar a primeiríssima “biblioteca humana”, que funcionou durante o Roskilde Festival, em Copenhaga.
A inauguração foi um êxito. Oito horas vezes quatro dias deram para cinquenta “temas” diferentes, cinquenta estereótipos ou estigmas com que os “leitores” eram confrontados ao vivo e a cores.
Nesse verão, Ronni Abergel, o seu irmão Dany e os amigos Asma Mouna e Christoffer Erichsen perceberam que tinham acabado de criar alguma coisa maior do que eles próprios. Maior ainda do que o movimento não-governamental Stop the Violence, nascido depois de um amigo comum ter sido agredido brutalmente numa saída à noite, em 1993.
Agora, quase dezasseis anos depois da primeira “biblioteca humana”, o movimento chegou a várias cidades e continentes. O objetivo mantém-se inalterável: confrontar o estigma, estereótipos e preconceitos através de uma conversa não conflituosa e amigável. E nasceu um novo lema: “Dont’ juge a book by its cover” (não julgue um livro pela sua capa).
No site da Human Library Organization, propõem-se “livros” para todos os gostos: uma refugiada, um soldado com Stress Pós-Traumático, uma vítima de abuso sexual, um sem-abrigo, uma poli-amorosa, um muçulmano, uma doente bipolar, um desempregado… E uma espreitadela à sua página no Facebook devolve uma agenda diversificada q.b. para promover a mudança social: nos próximos trinta dias, há “livros” para emprestar no Canadá, Estados Unidos, Polónia e Dinamarca. Apostamos que o “título” refugiados vai repetir-se.
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