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Henrique Rodrigues: o direito à literatura

Henrique Rodrigues é um dos mais profícuo escritores da atualidade. Foto: Luiz Ackermann

Conheci o escritor Henrique Rodrigues na antologia Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro (Casa da Palavra, 2004).  Em 2005, como bibliotecário do Sesc e colaborando com os processos de triagem do Prêmio Sesc de Literatura (que Henrique coordena), pude lhe conhecer pessoalmente e perceber o quanto ele respirava literatura.

No ano seguinte, Henrique lançava o livro de poemas A musa diluída (Record, 2006) e, sempre empolgado e atuando no incentivo à leitura literária, nos anos seguintes cursou mestrado e doutorado em Literatura na PUC-Rio, lançou diversos livros (infantis, juvenis e um romance), organizou publicações, participou de outras, e vem nestes anos tocando uma série de ações realizadas pelo Sesc, que influenciam, em certa medida, muito do que se reflete e se lê sobre literatura no Brasil.

Do escritor, gosto da capacidade de perceber o ridículo da vida, da ironia – “último refúgio do oprimido”[1] – que faz uso, da fluidez e da sensibilidade.  Do produtor cultural literário destaco o comprometimento na luta por garantir o direito à literatura, principalmente em um tempo em que algumas asserções de Antonio Candido no ensaio O direito à literatura (1988), “É verdade que a barbárie continua até crescendo, mas não se vê mais o seu elogio, como se todos soubessem que ela é algo a ser ocultado e não proclamado”, parecem não mais repousar em terrenos tão seguros, principalmente diante de uma crescente onda de haters diversos, sempre de prontidão para atacar a arte, a cultura e as liberdades individuais.

Neste mesmo ensaio, Antonio Candido afirma que “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”, e que, uma sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos humanos, sendo um direito inalienável à fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis.

Das pessoas que pude conhecer nos mais de quinze anos trabalhando com mediação da leitura, não seria exagero dizer que Henrique Rodrigues, seja escrevendo livros, seja movimentando a cena literária brasileira, como poucos, encarna estas precisas palavras do mestre Antonio Candido.

Encerro este ciclo de entrevistas para a Biblioo com escritores da literatura brasileira contemporânea conversando com Henrique Rodrigues sobre censura aos livros, lugar de fala na literatura, literatura juvenil, o romance O próximo da fila e as ações do Sesc na área da literatura.

Agradeço os editores da Biblioo, Chico de Paula e Rodolfo Targino, pelo espaço, desejando que estejamos solidários e fortes em 2019, para continuarmos pensando a literatura, as relações e os afetos, como leitores críticos neste novo ciclo. Confira a entrevista.

Eu imagino que seu trabalho no Sesc lhe dê uma visão privilegiada da cena literária brasileira atual. O que você vê de mais interessante nesta cena?

Sim, trabalho há quase 20 anos com literatura, e mais da metade desse período foi atrás do balcão do Sesc Nacional. De certo modo, isso me confere uma perspectiva ampla sobre a cena literária do Brasil nesse intervalo. Tem sido interessante acompanhar de perto os movimentos chegando, se adaptando ou mesmo desaparecendo. O mais relevante disso tudo é ver como as formas de expressão literária no Brasil são diversificadas e muito vivas, ainda que muita gente ainda se atenha ao que sai publicado nos meios de comunicação do Sudeste, como se a qualidade precisasse ser atestada e validada por um grande jornal ou prêmio do Rio ou de São Paulo.

Gostaria que você comentasse brevemente sobre a atuação do Sesc nas áreas de leitura, literatura, livros e bibliotecas, incluindo o apoio para eventos importantes como a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty e a Flup – Festa Literária das periferias.

O Brasil se conhece pouco – o que não se restringe à literatura. Por isso é que, quando trabalhamos nos próprios projetos do Sesc ou participamos de outros eventos, como Flip, Flup, Bienais do Livro etc., seguimos as diretrizes institucionais de abrir espaço para essas diversidades. O mesmo se dá na rede de 365 bibliotecas fixas e móveis, que o Sesc mantém em todos os estados, cujo acervo é constantemente atualizado.

Eu considero o “Arte da Palavra” um dos projetos literários mais bacanas que existem no Brasil.  Como surgiu a ideia do projeto e como você o avalia?

Além da diversidade, a política cultural do Sesc também apregoa o intercâmbio como um pilar. Há tempos queríamos criar um circuito literário nacional, mesmo porque não existe hoje nenhum outro em âmbito público ou privado, infelizmente. Mas talvez em função dos resultados positivos que vimos obtendo com o Prêmio Sesc de Literatura, que depois de 15 anos é o concurso mais desejado entre os autores inéditos no país, tivemos a oportunidade de criar essa rede que é o Arte da Palavra.

É um projeto bastante democrático, cuja curadoria se dá entre os especialistas em Literatura do Sesc de todo o país, e vem criando uma rede muito bonita de trocas. São mais de 80 artistas da palavra (escritores de verso e prosa, rappers, contadores de histórias, slammers, repentistas, cordelistas, oficineiros) circulando em mais de 700 atividades ao longo do ano em todos os estados. É um projeto que vai para o seu terceiro ano, ainda em construção e constante avaliação, mas que já disse que chegou para ficar.

Falando agora do escritor Henrique Rodrigues. O seu romance O próximo da fila (2015) fala de um período (primeiros anos da década de 1990) muito diferente do que vivemos agora e ao mesmo tempo muito parecido.  Hoje, temos uma geração de jovens pobres e de jovens negros que ingressou na faculdade, mas muitos outros jovens ainda continuam tendo poucas oportunidades.  Você acha que o país mudou em relação as realidades dos jovens pobres?

Capa do livro “O próximo da fila” (Record, 2015). Imagem: divulgação

Quando escrevi o livro, não fazia ideia de que iria ter uma relação irônica com o momento atual, em que determinados fantasmas iriam sair da tumba e nos assombrar novamente. O jovem pobre precisa de oportunidade, de espaço e voz. Creio que as conquistas sociais das últimas décadas não vão se diluir do nada – o acesso ao ensino superior é um ponto que não pode ser mexido.

Já temos um Estatuto da Juventude em vigor, e uma geração muito mais atenta e consciente do que aquele final de anos 1980 e início dos 1990. O Brasil é ainda muito desigual em vários aspectos: é racista, machista e homofóbico, além de muito besta. Os jovens pobres, que estão entre esses grupos discriminados, precisam de toda atenção e espaço, pois são eles que têm o viço, a demanda e a criatividade para melhorar o país.

Você considera O próximo da fila um romance de formação?  Quais outros romances de formação que conseguiram captar sua atenção? O livro toca também no tema envolvimento com a leitura, como você pensou a inserção desta temática no livro?

Sim, pensei em “O próximo da fila” como um romance de formação, o bildungsroman. A ideia era trabalhar o Brasil adolescente, recém-saído da ditadura, tendo que crescer sem estar preparado, metaforizado num atendente de lanchonete de um bairro pobre. Dos nossos, O Ateneu do Raul Pompéia e o Miramar do Oswald são do que mais gosto, mas não fui tão tocado por romances de formação como influência para essa escolha. A leitura como elemento de descoberta faz parte do enredo, uma vez que a literatura é uma forma importante de olhar para o mundo e para si.

Edição especial da Revista Época, “É tudo mentira”, da qual Henrique foi um dos convidados. Imagem: divulgação

Recentemente você participou da edição especial da Revista Época, É tudo mentira, com um texto muito inspirado. Poderia comentar um pouquinho sobre esta edição da Época e sobre o seu conto?

A Época quis fazer algo similar à New Yorker, que publicou ensaios de 12 escritores sobre a posse do Trump. Sob coordenação do jornalista Mateus Baldi, a edição trouxe uma turma muito boa para escrever sobre essas estranhas eleições de 2018. Achei por bem fazer um texto de humor, que é a melhor lente para a reflexão sobre assuntos sérios, e coloquei os candidatos como crianças na escola brincando de dança das cadeiras, cada uma com suas características. No fim das contas, a luta pelo poder acaba se resumindo a isso mesmo. Já disse o Millôr: “o político é um gaiato / que prefere a versão ao fato”.

Ana Maria Machado, José Mauro Brant, Luiz Puntel e Kiusam de Oliveira são alguns autores que viram recentemente seus livros serem atacados e censurados ou por pais ou por políticos.  Muitas vezes atacados por pessoas que não tem nem mesmo o hábito da leitura literária. Como você vê estas atitudes?

Em todos os lugares brotam indivíduos bem-intencionados dispostos a salvar as criancinhas inocentes de crápulas pervertidos como escritores e demais artistas. Esse movimento de censura já acontece há alguns anos, baseado na suposta proteção da “família brasileira”, que ninguém sabe ao certo dizer o que é. Mas é algo extremamente nocivo, calcado na ignorância, uma das maiores doenças culturais brasileiras, que assola parte da população e dos seus dirigentes.

No caso da literatura e a censura por pais e escolas, muitas vezes se dá por pais que não leem nada, incapazes de entender recursos até rudimentares de criação artística. E o pior é quando as redes particulares assinam embaixo para não perder clientes e as públicas não conseguem explicar ou defender a produção literária como um elemento libertador.

Um tema bastante atual na literatura brasileira é o da representatividade. Como você percebe a disputa por espaços na cena literária?

A cena literária brasileira, como sempre foi, é um espaço pequeno, habitado por poucos, em geral uma elite econômica ou pelo menos de classe média. Felizmente, isso tem mudado nos últimos anos, em que artistas oriundos de outras classes têm conseguido espaço e reconhecimento – mesmo porque, pelo que tenho visto, a classe média passa por certa crise criativa, mas isso é assunto para depois.

Hoje as minorias sociais articulam novas formas de circulação dos seus textos…

É muito bom ver coletivos literários, editoras pequenas e as minorias em geral furarem o bloqueio cultural e conseguirem se expressar. Aliás, acho que o movimento mais importante da literatura hoje no Brasil é a pluralidade de saraus com jovens falando poesia.

E acredito que um próximo passo seria ampliar as possibilidades de trocas – em geral um grupo se expressa buscando afirmação identitária apenas para o seu grupo, e talvez em algum momento o diálogo seja um ponto de conquista. Senão acabamos como nos Estados Unidos, onde branco só fala com branco, negro com negro, latino com latino, asiático com asiático e por aí vai. Quando fiz intercâmbio lá achei isso estranhíssimo: cada grupo tinha sua festa, por exemplo, e não podia ir na do outro.

“Quem cria literatura deve ter total liberdade, e cabe aos leitores e mediadores de leitura (professores, bibliotecários, pais e outros agentes) fazer com que essas liberdades entrem em diálogo.”  – Henrique Rodrigues

Neste sentido de uma ampliação das possibilidades de divulgação e expressão literária, como você vê o debate sobre o lugar de fala na literatura?

O “lugar de fala” é um conceito importantíssimo em vários aspectos das ciências humanas, uma vez que desloca a perspectiva estabelecida pelo homem branco rico e colonizador. Mas em criação literária é preciso ter certo cuidado para não se utilizar o termo como um clichê cerceador, senão vira um tiro no pé. Por exemplo, há quem defenda que nenhum homem pode (!) escrever uma história na perspectiva de uma mulher, pois não tem “lugar de fala”. Ou que um ou uma artista não poderiam criar personagens que fujam diretamente do seu fenótipo. Ou faixa etária. Ou cidade onde vive.

Essas perspectivas são exatamente o oposto da literatura, que é um espaço estético onde é possível ser o outro. Quem cria literatura deve ter total liberdade, e cabe aos leitores e mediadores de leitura (professores, bibliotecários, pais e outros agentes) fazer com que essas liberdades entrem em diálogo.

O tesouro na sombra da árvore é seu título juvenil.  Eu fico sempre com a impressão que no Brasil se produz pouco literatura juvenil. Como você vê a produção literária para essa faixa de idade?

A chamada literatura infanto-juvenil (ou LIJ) nos últimos anos foi mais puxada para o infantil, e altamente dependente das adoções escolares e vendas para governos. Temos uma produção riquíssima para crianças. Mas há de fato uma lacuna entre o que se pensa como criação literária para jovens. Acredito que também seja pelo fato de o próprio protagonismo juvenil ser recente. E na verdade me parece que é a galera que mais está lendo no país – seja literatura de fantasia, pop, fanfiction, terror e uma série de novos formatos – sem falar que escrevem muito também. E a grande surpresa é que lá pelo final da década de 1990 diziam que a tal internet iria acabar com o livro. Foi justamente o contrário.

Quais seus próximos projetos literários?

Devo lançar um infantil novo e outro livro juvenil feito em parceria. Também estou trabalhando num novo livro de poesia que deve sair em breve e num romance novo que deve ser mais para frente.


Último lançamento

Lançado em 2017, em versão português-francês no Salão do livro de Paris,

Capa de “O pé de meia e o guarda-chuva” (Malê, 2017). Imagem: divulgação

conta a história de um pé de meia, que, ao se ver perdido do seu par, tem um encontro com um guarda-chuva, também esquecido. Este encontro transforma o destino dos dois.

O livro conta com ilustrações do premiado Walther Moreira Santos e é o sétimo livro infantil de Henrique Rodrigues, que também publicou livros juvenis, de poesia e romance.

Para o autor “o livro surgiu da necessidade de trabalhar, num formato de apólogo e de abordar o desafio que todos temos de lidar com o próximo, que é – e que bom que é – diferente de nós.” O autor fala de dois objetos que vivem se perdendo: um guarda-chuva e um pé de meia.

Outros livros

A musa diluída (Record, 2006), Versos para um Rio Antigo (infantil, Pinakotheke, 2007), Machado de Assis: o Rio de Janeiro de seus personagens (juvenil, Pinakotheke, 2008), O segredo da gravata mágica e O segredo da bolsa mágica (infantil, ambos pela Memória Visual, 2009) e Sofia e o dente de leite (infantil, Memória Visual, 2011), Alho por alho, dente por dente (com André Moura; infantil, Memória Visual, 2012), do romance O próximo da fila (Record, 2015 – publicado na França em 2018, “Au suivant”, Anacaona Editions), Palavras pequenas (infantil, Bazar do Tempo, 2016), O pé de meia e o guarda-chuva (infantil, Malê, 2017) .

É coautor do livro Quatro estações: o trevo (independente, 1999) e participou das antologias Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro (Casa da Palavra, 2004), Dicionário amoroso da Língua Portuguesa (Casa da Palavra, 2009), Escritores escritos (Flâneur, 2010), Humor Vermelho vol. 2 (Vermelho Marinho, 2010), Brasil-Haiti (Garimpo, 2010), Amar, verbo atemporal (Rocco, 2012) e Vou te contar: 20 histórias ao som de Tom Jobim (Rocco, 2014).

É organizador e coautor de Como se não houvesse amanhã: 20 contos inspirados em músicas da Legião Urbana (Record, 2010) e O livro branco: 19 contos inspirados em músicas dos Beatles + bonus track (Record, 2012) e “Conversas de botequim: 20 contos inspirados em canções de Noel Rosa” (com Marcelo Moutinho. Mórula, 2017).


[1] O último refúgio do oprimido é a ironia e nenhum tirano, por mais violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia. Não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade. (Millôr Fernandes. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr, 1973)

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