Muita gente tinha o Chico como colega de profissão, como ativista dos direitos humanos, como figura política, como amigo. Eu tinha tudo isso e mais: o tinha como chefe.
O Francisco se tornou meu chefe por minha culpa. Houve um pequeno hiato entre mudanças de chefias e eu sugeri que ele fosse indicado como novo chefe. Fui até a sua biblioteca, então a Biblioteca de Obras Raras, tentar convencê-lo a assumir o posto de chefe da minha biblioteca, a Biblioteca do Centro de Tecnologia. Não precisou de muita lábia, ele já estava pronto para o chamado e consentiu.
Na biblioteconomia eu só tinha tido chefes mulheres até então. Creio que o Francisco nunca tinha sido chefe de nada anteriormente, mas ele sempre assumiu o papel de liderança por onde passou. Certa vez eu perguntei, onde tu aprendeu isso: na Renovação Carismática em Lago da Pedra. No fundo ele já vinha ponderando sobre a chance de se tornar um chefe e quando a oportunidade surgiu não titubeou.
Eu e o Francisco e demais jovens da nossa geração, que aproveitaram a chance de ingressar na universidade e no serviço público, graças aos primeiros governos do Lula e do PT, entramos no funcionalismo com uma mentalidade bem menos autoritária do que aquela que fazia parte da cultura da administração pública até os anos 1990. Assumir a chefia para nós significaria a tentativa de instituir essa mudança de cultura a partir do chão da, no nosso caso, biblioteca.
Desde o início nós nos dividimos entre as funções essencialmente gerenciais, que ele fazia (lidar com a burocracia, com o predial, com gestão da equipe) e as funções de biblioteconomia, que eu fazia (gestão de acervo e usuários). Essa parceria funcionou perfeitamente bem na medida que cada um se envolvia somente com as coisas que gostava, ele a política e eu o pragmatismo.
O perfil do Francisco chefe é o do tato muito apurado para lidar com os subordinados, que obviamente a partir daquele momento, passaram a ser tratados como pares compondo um sistema estritamente horizontal. Mas toda vez que se fez necessário reivindicar algo com as dinastias superiores, ele fazia com extrema articulação e capacidade de convencimento. Como bom advogado, Francisco sempre enxergou como vital a necessidade de documentar rotinas e estabelecer políticas baseadas no papel, vale o que está escrito. Essa ideia de que uma reunião poderia ser apenas um e-mail para ele nunca colava, porque nada substitui o registro formal presencial e a oportunidade de estar face a face com os colegas.
Em determinado momento ele enveredou para as camadas mais profundas da estrutura institucional, ocupando cargos de representantes dos técnicos administrativos (e não somente dos bibliotecários) tanto na sua unidade como de toda a universidade. Por mais que eu soubesse que ele era só uma andorinha incapaz de fazer verão, sempre lhe disse o quanto era importante esse percurso para gente tomar conhecimento dos bastidores da empresa. Nós sempre reclamamos da falta de dinheiro e investimento no nosso setor. Agora ele sabia identificar exatamente que não somente o dinheiro sempre existiu, mas para onde ele ia, e porque esse caminho nunca contemplava a nossa biblioteca.
Eu me dei por vencido desde o princípio, minha proposta era que ele fizesse um mandato de no máximo 4 anos, para poder traçar metas e instituir uma cultura de rotatividade entre os próprios colegas, que eventualmente se tornaram chefes momentâneos. Ele ficou no posto mais do que isso, mas eu nunca questionei, porque diferente de déspota, sempre houve a abertura necessária para outras pessoas participarem da democracia representativa. Ninguém nunca se ofereceu para assumir aquele pequeno rojão que é a Biblioteca do CT.
Ao passar desses anos na chefia eu percebi que ele sentia o desgaste, a responsabilidade inglória de lutar contra os males do Brasil cordial, das castas, da elite acadêmica. Sem dúvida, esse envolvimento teve impacto em sua saúde. Eu sempre tentei tranquilizá-lo, de que ele podia dormir leve, ciente de que havia feito o melhor com o melhor que possuía. Mas não adiantava, ele sempre reclamava de insônia.
A cada fim de ano Francisco me confessava que queria parar com tudo e recomeçar no Maranhão. Quis largar a Biblioo, quis largar a Biblioteconomia, quis largar o Rio de Janeiro, quis largar o partido político. Mas ano após ano ele encontrava forças e motivos para recomeçar e fazer o que sempre fez. O Francisco sempre lutou pelo coletivo.
Eu sinto falta do meu chefe. Todos os dias, ao passar por sua sala e entender que ele não está mais lá, não poder dar um bom dia e iniciar um small talk sobre o Corinthians, sobre a última mancada do governo, sobre as goteiras da biblioteca, sobre o “carteiro” que era nosso código para mulheres bonitas, ou sobre o próximo projeto de biblioteconomia, que atabalhoados, a gente nunca conseguia concretizar.
Francisco tinha o desejo de escrever um livro sobre administração de bibliotecas, como testemunho da sua experiência à frente da Biblioteca do CT. Ele me perguntou se seria uma boa ideia, e eu disse que sim, pois me recordava que havia poucos livros sobre esse tema, e que ofereciam uma visão mais bibliotecária do que gestão propriamente. Dei como exemplo o livreto das professoras Alba Costa Maciel e Marília Alvarenga, a gente poderia fazer uma versão atualizada. Ele rascunhou um sumário e me mandou. Tá lá, no meu google drive. Ele deu o nome “Administrando uma biblioteca universitária”.
Eu não vou concluir esse livro. Mas me dá uma satisfação enorme olhar para trás e lembrar que por um período da minha vida eu trabalhei com um cara extremamente consciente da coisa pública, da responsabilidade com seus colegas e com os cidadãos a quem servia e que era o maior gente boa. Esse cara é o Francisco e ele é o meu chefe.
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