A adoção do modelo de gestão de instrumentos culturais por meio de organizações sociais (OSs) parece se apresentar como uma tendência em todo o país. Esse cenário tem enfrentado uma série de críticas de movimentos e profissionais que acusam os governos de privatizar estes espaços. É, por exemplo, o que está acontecendo em São Paulo, onde diversos seguimentos sociais se colocaram contrários ao anúncio da prefeitura da capital de entregar a gestão da sua rede de bibliotecas a uma destas organizações.
No estado do Rio, por mais de três anos o Instituto de Desenvolvimento e Gestão, uma organização social da cultura, gerenciou as bibliotecas-parque (unidades Manguinhos, Rocinha, Niterói e Centro) até que no final do ano passado resolveu desistir da empreitada após inúmeros desencontros com a administração pública.
Com vistas a conhecer e avaliar de forma mais consistente este modelo de gestão, verificando qual a sua contribuição (ou não) para o acesso à cultura, o economista Luiz Fernando Zugliani pesquisou a aplicação desta modalidade de administração nas bibliotecas-parque. Os resultados do seu trabalho, uma dissertação de mestrado defendida na Fundação Getúlio Vargas, mostram, segundo ele, que existem aspectos positivos neste modelo, como a obrigatoriedade de celebração de um contrato de gestão, entre o estado e a organização do terceiro setor, e a possibilidade de captação de recursos via lei de incentivos fiscais, sendo estes diferenciais em comparação com a com a administração pública clássica.
Mas apesar disso, o pesquisador assevera que no caso do estado do Rio a hipótese de melhoria dos serviços públicos de cultura, baseada nessa tese, não prosperou. Isso porque “além da óbvia resposta ancorada na crise fiscal […], o elemento humano da gestão, e não só as ferramentas que o modelo oferece, tiveram peso decisivo na equação da efetiva prestação dos serviços”. Zugliani é mestre em História, Política e Bens Culturais, servidor da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e um dos autores do projeto de lei que resultou na criação da lei das OSs no estado do Rio.
Nesta entrevista concedida à Biblioo ele fala sobre sua pesquisa e faz avaliações sobre este tema tão polêmico.
Você realizou recentemente uma pesquisa sobre o modelo de gestão do IDG, uma organização social, sobre as bibliotecas-parque do Rio. A que resultados você chegou?
A pesquisa buscou verificar qual a contribuição das organizações sociais para o acesso à cultura, a partir da experiência das Bibliotecas Parque do estado do Rio de Janeiro. Para tanto, empreendi investigações bibliográficas, documentais e de campo, com os usuários. Mas também introduzi narrativas pessoais, uma vez que coordenei o processo de elaboração do Projeto de Lei das Organizações Sociais de Cultura do estado, marco que, inclusive, inspirou a edição de leis semelhantes para outras áreas do governo.
Inicialmente, faço uma contextualização dos direitos culturais no Brasil, focalizando a construção desses direitos. Depois, apresento como o Estado brasileiro estruturou a máquina pública para assegurar a prestação de serviços públicos de cultura, entrelaçando o tema com as principais reformas administrativas ocorridas nas décadas de 30, de 60 e, a última, de 90, do século passado. A ênfase, contudo, recai na terceira, que, por meio do Plano Diretor de Reforma do Estado de 1995, alavanca a edição de leis de OSs por parte de estados e municípios. No estado do Rio de Janeiro, o modelo é consagrado pela Lei n. 5.498/09, depois de um difícil debate na ALERJ, reforçando o caráter controverso que reveste o assunto, polêmica, aliás, que tem origem na Lei Federal n. 9.637/98.
Para a pesquisa de campo, defini uma categorização de direitos culturais para, a partir da percepção dos usuários, verificar se o modelo de gestão propicia a realização da cidadania cultural. No período estabelecido para aplicação dos questionários, no final de 2015, que contemplaria os quatro equipamentos, as Bibliotecas Parque da Presidente Vargas e a de Niterói simplesmente encontravam-se fechadas, segundo o IDG, por falta de recursos. Mesmo sem entrar na parte analítica da pesquisa, percebe-se, de pronto, que o modelo em si não constitui uma panaceia – muito longe disso. A subtração total dos respectivos serviços públicos nesses espaços, ainda que temporariamente, além da ruptura de expectativa da população, revela graves fragilidades dessa moldura institucional.
Nessa esteira, as condições gerenciais propiciadas pela configuração institucional das OSs, nas áreas de compras e contratação de pessoal (sem concurso público), a liberdade para captar recursos no mercado e para formação de parcerias, entre outras, que conformam o mantra dos que apoiam esse modelo, não encontraram eco na postura dos agentes envolvidos nesse processo, notadamente aqueles que vestem a camisa estatal, porém evidentemente não restrito aos representantes da cultura.
Ainda que a justificativa do estado para o insucesso da implantação de duas OSs – uma destinada à gestão do Parque Lage e da Casa França-Brasil e outra, às Bibliotecas Parque – possa tentar ser sustentada pela profunda crise fiscal por que passa o Rio do Janeiro, tal realidade aduz, de forma inequívoca, uma contradição com a base teórica que deu luz às OSs no Brasil. Isso porque, baseadas nas experiências dos EUA e da Grã-Betanha, elas são erguidas justamente como uma das soluções que o Estado tem que adotar para enfrentar o problema fiscal, porquanto o pressuposto da cooperação do Estado com o Terceiro Setor traria mais eficiência aos serviços públicos, com a injeção de outros recursos que não os advindos do Tesouro.
No caso do estado do RJ, portanto, a hipótese de melhoria dos serviços públicos de cultura, baseada nessa tese, não prosperou. Mas por quê? Além da óbvia resposta ancorada na crise fiscal, porém, frise-se, muito relevante, o elemento humano da gestão, e não só as ferramentas que o modelo oferece, tiveram peso decisivo na equação da efetiva prestação dos serviços.
Na sua opinião, a gestão de bibliotecas por meio de organizações sociais é um modelo satisfatório de administração destes espaços culturais?
Como disse, o modelo de organizações sociais, por si só, na gestão de bibliotecas ou de qualquer outro equipamento cultural, não gera nenhuma garantia de qualidade na prestação de serviços públicos. As pessoas envolvidas no processo, tanto pelo lado do Estado como das organizações contratadas, essas, sim, têm o condão de fazer a diferença, isto é, de viabilizar as esperadas entregas à sociedade.
Mas o modelo possui, sim, aspectos positivos. A obrigatoriedade de celebração de um Contrato de Gestão, entre o Estado e a organização do Terceiro Setor, surge como uma grande vantagem desse formato institucional quando comparado com a administração pública clássica. Por estar expressamente previsto no ordenamento jurídico das OSs, a exigência de formalizar, por meio de instrumento próprio, a contratualização de resultados, com a definição de metas a serem alcançadas, promove um senso de responsabilidade objetiva no contexto da gestão, fato somente visto em casos raríssimos no âmbito da administração direta e indireta – como em algumas agências reguladoras, cuja lei de criação assim estipula. Essa mecânica, não utilizada pela gestão pública tradicional, enseja várias discussões importantes baseadas em temas como controle social e transparência, e constitui-se numa interessante vantagem comparativa.
Outro ponto favorável a se destacar diz respeito à possibilidade de captação de recursos via lei de incentivos fiscais. A abertura legal para a OS obter esses recursos acarreta oportunidades não dispensadas aos organismos públicos convencionais, e pode produzir um orçamento agregado àquele que o Estado se compromete a repassar pelo contrato. Teoricamente, isso é salutar e recomendável, visto que funcionaria como combustível adicional ao fluxo financeiro estatal, com incremento de metas.
Mas lidar com essa vantagem não é trivial. Geralmente os recursos incentivados são previstos no contrato de gestão na forma de metas financeiras, compondo o montante orçamentário da OS. Por consequência, embasam as metas físicas. Como são apenas intenções, caso as captações não se realizem, há um impacto direto na prestação dos serviços acordados. Além disso, muitos gestores entendem que os recursos incentivados devem ser encarados como substituição ao orçamento público, o que é um grave equívoco. Impõe-se levar em consideração, também, que as bibliotecas públicas recebem olhar diferenciado da maioria dos apoiadores em relação a outras atividades culturais consideradas mais atraentes do ponto de vista empresarial.
Quanto aos procedimentos administrativos relacionados a aquisições de bens e serviços, recrutamento e contratação de pessoal e execução orçamentária, que se afastam das práticas burocráticas do Estado e tendem a se assemelhar com as da iniciativa privada, mesmo que, em tese, se prestem a agilizar as operações gerenciais, precisam integrar um debate mais ponderado, dado as inúmeras vertentes que essas “facilidades” assumem no terreno da gestão pública. Em outras palavras, a burocracia do Estado não pode levar toda a culpa por resultados que carecem de efetividade.
Assim, diante de tantas variáveis, não é possível afirmar se o modelo de OS é satisfatório à gestão de bibliotecas. Existem exemplos, em São Paulo, que sinalizam experiências exitosas. Mas nada impede que entidades vinculadas ao aparelho estatal produzam gestões de excelência. Tudo vai depender de como é trabalhado o planejamento das correspondentes ações, mas também, e principalmente, da capacidade dos atores envolvidos na condução das etapas de execução, supervisão e avaliação dessas ações.
Uma das principais críticas recebidas por este modelo de gestão é o fato de promover uma espécie de terceirização de toda a mão de obra. Como você avalia esta questão?
O modelo não determina que a OS tenha que terceirizar totalmente a sua mão de obra. A TVE/RJ, por exemplo, quando sua gestão foi repassada a uma OS vinculada ao Governo Federal (a ACERP), contava com servidores públicos da extinta Fundação Roquete Pinto, mas também com funcionários contratados pelo regime celetista. Ou seja, havia um quadro funcional misto. O problema disso, embora legalmente aceitável, é que gera um ambiente com inúmeras distorções salariais. Como a tarefa de equalização esbarra em questões sobretudo financeiras, onerando o contrato de gestão, a resolução do assunto adquire contornos de complexidade, com severas dificuldades de superação. Evidentemente, o corolário disso tudo resulta em insatisfação nos vários níveis da instituição, e, claro, baixa no desempenho coletivo.
A reboque desse quadro misto, há também outro relevante aspecto. Isso porque, na medida em que ocorre a extinção de um órgão público para dar lugar a OS, os servidores concursados que pertencem às carreiras dessas instituições passam a compor um circuito em que o Estado tende a percebê-los como de menor importância, principalmente nos momentos em que são reivindicados e discutidos reajustes salariais ou melhorias de benefícios. Objetivamente, há um enfraquecimento político expressivo dessas categorias, inclinado ao alijamento. Mas esse é outro assunto passível de inúmeras discussões, e vem daí um dos maiores receios dos servidores públicos, na forma de rejeição ao modelo, que se encontram ou podem vir a se encontrar nessa situação.
Há situações, entretanto, em que a parceria entre Estado e o Terceiro Setor, sob o formato de OS, pode ser muito interessante para a melhoria da eficiência de determinado serviço público, comportando a ideia de terceirização de toda a mão de obra. Programas de elevado interesse de um dado segmento social, envolvendo o eixo da cultura, bem como espaços compreendidos pelo Estado como necessários à execução de políticas públicas do setor, podem ter na OS a melhor solução para a prestação de bons serviços e a realização da cidadania cultural. Entretanto, é crucial que, mesmo nesses casos, o Estado se obrigue a construir ferramentas, com vistas a empregar rigoroso acompanhamento e fiscalização dos serviços e recursos, a fim de que sejam coibidos eventuais desvios.
No Rio, em São Paulo e em outros estados, o número de OSs assumindo a administração de espaços culturais vem crescendo. Como você avalia esse cenário? Isso é uma tendência nacional?
O modelo de OS se proliferou pelo país, figurando em leis estaduais e municipais. Antes mesmo de a Lei Federal 9.637/98 ser editada, o estado do Pará já havia adotado os conceitos e diretrizes propagados pelo Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE de 1995 e instituiu as Organizações Sociais no ordenamento jurídico, por meio da Lei nº 5.980, de 19/07/96. Igualmente, na sequência, os estados da Bahia, do Ceará e do Maranhão aprovaram a Lei nº 7.027, de 29/01/97, a Lei nº 12.781, de 30/12/97 e a Lei nº 7.066, de 03/02/98, respectivamente, demonstrando o potencial do projeto que, mais tarde, seria revelado pelas leis editadas em várias unidades da federação, apesar de embargos políticos e ideológicos que o modelo viria a enfrentar a partir da legislação federal, datada de maio de 98. Hoje existem 22 unidades da federação que possuem leis versando sobre essa configuração institucional, sendo que 20 delas com possibilidade de parceria na área cultural. E isso não é pouco.
Voltando no tempo, convém salientar que, poucos meses após a Lei Federal de OS entrar em vigor, foi ajuizada, em 27/11/98, pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1923/DF, com o objetivo de obter a suspensão de todos os efeitos da referida lei, bem como aqueles decorrentes do inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93 (redação dada pela Lei nº 9.648/98). Os autores da Ação sustentaram que normas constitucionais tinham sido infringidas por conta da aludida lei e, no rol dos artigos que consideravam violados, apontaram também os artigos 215 e 216, exatamente aqueles que dizem respeito aos direitos e deveres do Estado envolvendo a área cultural.
Também defenderam os signatários da Ação que se tratava de “um processo de privatização” dos aparatos públicos, por meio da transferência, para o “setor público não estatal”, dos serviços nas áreas de ensino, saúde e pesquisa, entre outros”. Ressaltaram que, “em termos práticos”, esse projeto caminhava para a “verdadeira feudalização ou apropriação clientelista e patrimonialista dessas entidades”.
A iniciativa dos citados partidos políticos de atacar o marco legal das OSs passa a criar, evidentemente, certa desconfiança em relação aos próximos passos do projeto. E mais: com a entrada do PT no comando do país, em 2003, naquele momento ideologicamente contrário à solução consagrada no PDRAE, viu-se submergir a hipótese de expansão do modelo no âmbito federal.
Mas por que, então, 80% das unidades da federação, diante do questionamento de inconstitucionalidade, aderiram fortemente ao projeto? Impende realçar duas respostas. Primeiro porque o ambiente político dos estados não recebe, necessariamente, influência peremptória de tudo que paira na esfera federal, mormente sob o prisma ideológico. Ou seja, o sistema federativo propicia espaços decisórios independentes, que guardam consonância muito mais com a conveniência e as necessidades do governo local do que com os arranjos políticos costurados pelo governo central. Em segundo, e aí está o mais acentuado motivo da opção pelas OSs, são as vantagens que norteiam a gestão dos serviços sociais, justamente aquelas que foram objeto de contestação da citada ADI.
Porém, é no estado de São Paulo que as OSs adquirem considerável vulto, tornando-se um ícone da experiência no país, com mais de uma década desde a celebração do primeiro contrato de gestão, em 2004. Cabe notar, entretanto, que a implantação de OSs na área da cultura em São Paulo surgiu, inicialmente, por outras motivações. Uma delas: propiciar a regularização de profissionais que foram contratados de forma inadequada frente às normas do setor público. Ou seja, uma adesão juridicamente conveniente e imperativa.
Apesar da “cesta de vantagens” proporcionada pelo modelo de OS, o tema reside mesmo é na arena dos conflitos. Além daqueles já consignados anteriormente relativos à contratação de pessoal, compras, planejamento e orçamento etc., existe a questão da possibilidade de captação de recursos via lei de incentivo fiscal – em todos os níveis de governo -, fato que provoca debates acalorados sobre a sustentabilidade das instituições culturais.
Após dezessete anos, o Supremo, na sessão plenária do dia 16/04/2015, decidiu, em caráter final, pela validade da prestação de serviços públicos não exclusivos por organizações sociais em parceria com o poder público. É certo que o STF introduziu algumas exigências não previstas na Lei nº 9.637/98. Mesmo antes da decisão final do STF pela constitucionalidade, verifica-se que contratos de gestão vinham sendo celebrados pelo governo petista, contrariamente à postura original, seja por intermédio do MEC ou do MCT, o que demonstra, ainda que de forma muito tímida, que há interesse de setores do governo federal na aplicação do modelo de OSs, ou que pelo menos em casos específicos ele vem sendo admitido.
Recentemente, no âmbito do MinC, a Secretaria do Audiovisual divulgou o resultado definitivo do Edital nº 07/2016. A Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) foi selecionada como Organização Social (OS) que irá gerir as atividades da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Cria-se um precedente no Sistema Federal de Cultura.
A despeito da conjuntura jurídica gerar um horizonte mais tranquilizador, com perspectivas mais otimistas para os que fazem apologia desse mecanismo de gestão, a realidade dos embates nos campos acadêmico, corporativo e sindical, e, por exemplo, da experiência do estado do RJ na área cultural, torna difícil prever, em larga escala, o quão frutíferos serão os mandamentos advindos da teoria da Nova Gestão Pública, especialmente quando se intenciona examinar a relação entre deveres e direitos sob a ótica de seus resultados e efetividade. A tendência de expansão tem conexão com essas variáveis.
De todo modo, a democracia inspira ações conscientes e inconscientes dos cidadãos, numa linha progressiva que expõe a elevação do nível de percepção do significado de cidadania, com inexoráveis reflexos nas arquiteturas organizacionais e seus processos de trabalho. Independentemente de modelos genéricos e pré-estabelecidos, precisa o setor cultural, integrado pelos agentes estatais e pelos respectivos grupos de interesse, estudar e conceber mecanismos de gestão e estruturas institucionais que sejam mais apropriados às suas especificidades, mas também, e principalmente, que vão ao encontro das expectativas da sociedade brasileira.
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