A Seção de Bibliografia e Documentação da Biblioteca Infantujuvenil Municipal Monteiro Lobato, localizada na Vila Buarque, na capital paulista, abriga um dos mais importantes acervos do país em literatura infantil e juvenil nacional e possui exemplares únicos de diversos títulos, incluindo obras raras, o que a torna uma das principais referências para estudiosos desta área.
Dentre os seus cerca de 85 mil volumes que compõem os acervos de preservação, há o acervo Monteiro Lobato, com muitos trabalhos referentes à vida e obra de do escritor, com cerca de 10 mil itens. Este acervo é constituído de livros, fotografias, mobiliário, objetos pessoais e correspondências, a maioria doada pela família do escritor, que firmou compromisso de preservação com a instituição quando da doação.
É também nesta Seção que está o Acervo Histórico de Livros Escolares (AHLE). O AHLE, com aproximadamente 5 mil itens, é composto por cartilhas, manuais escolares de todas as matérias de ensino, antologias literárias e livros de referência de uso escolar, entre outros, do século XIX até a década de 1980 e abrange os cursos primários, os secundários, os de formação de professor e o ensino técnico.
O acervo de Bibliografia e Documentação conta com mais de 40 mil livros de literatura infantil e juvenil. Também compõe os acervos de preservação e é muito valioso inclusive para as editoras, uma vez que durante a publicação da Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil, funcionava como uma espécie de depósito legal, possuindo exemplares únicos de alguns títulos.
A memória da Biblioteca, do antigo Departamento de Bibliotecas Infantis e Juvenis e da região da Vila Buarque, é representada em um acervo documental composto por mais de 20 mil volumes, entre eles, o acervo pessoal de Lenyra Fraccaroli, primeira diretora da Biblioteca Monteiro Lobato, doado pela família sob a condição de preservação.
Pois bem, todo este material de memória agora está em risco depois que a Coordenação do Sistema Municipal das Bibliotecas Municipais de São Paulo (CSMB), subordinada à Secretaria Municipal de Cultura (SMC), resolveu extinguir a Seção de Bibliografia e Documentação da Biblioteca.
A decisão foi comunicada aos funcionários em uma reunião no dia 16 de julho, realizada nas dependências da Biblioteca. A informação consta de uma ata da referida reunião, que hoje circula em grupos na internet.
Nela se lê que “a diretora [da Biblioteca, a bibliotecária Marta Nosé Ferreira] informa que foi avisada pela coordenadora do Sistema Municipal das Bibliotecas Municipais de São Paulo [Raquel Oliveira] que, a partir de dois (02) de agosto deste ano, a Seção de Bibliografia e Documentação, criada no ano de 1975, será extinta”.
De acordo com a ata, a diretora da Biblioteca informou aos servidores, dos quais quatro são bibliotecários e uma é secretária, que a extinção da Seção ocorreria por meio de Portaria ou Decreto. E que tal medida acarretaria a transferência de dois, dos cinco bibliotecários, para a CSMB, que hoje centraliza o trabalho de catalogação. Caso contrário, os dois teriam de solicitar aposentadoria.
No decorrer da última semana a Secretaria emitiu uma nota negando o fechamento da Seção e afirmando que os bibliotecários estavam apenas sendo realocados para dar conta de demandas do Departamento Central de Catalogação do Sistema Municipal de Bibliotecas. De acordo com a nota, o fechamento da Seção jamais foi cogitado, classificando como fake news os rumores nesse sentido.
A pressão
Ainda na semana passada, após pressão dos moradores da região na qual a Biblioteca está sediada, o Conselho Consultivo da Sub-Prefeitura da Sé decidiu pautar o assunto em sua reunião virtual no dia 04. Nela a chefe de gabinete da SMC, Thais Lara, e a Coordenadora do Sistema Municipal de Bibliotecas, Raquel Oliveira, afirmaram que a Seção não seria desativada, mas não explicaram como isso seria possível com menos dois bibliotecários, num quadro já defasado de servidores.
A partir de 2015 uma bibliotecária e outros quatro servidores da Monteiro Lobato se aposentaram e uma solicitou transferência. Além disso, outras duas servidoras, sendo uma bibliotecária, se desligaram da Seção de Bibliografia e Documentação e passaram a atuar no atendimento ao público. Essa situação, segundo interlocutores ouvidos pela Biblioo, precarizou bastante as atividades da Seção, que sempre recebeu um fluxo considerável de usuários, especialmente pesquisadores.
Numa reportagem publicada pela Folha de São Paulo na última sexta-feira, 6, intitulada “Biblioteca Monteiro Lobato é tema de guerra de versões entre servidores e prefeitura”, a coordenadora-geral do Sistema Municipal de Bibliotecas, Raquel Oliveira, teria, além de acusar a notícia sobre o fechamento da Seção de ser falsa, dito que pediu para que a ata da reunião, onde o fechamento do Seção foi comunicado, fosse refeita com a “informação correta”.
“Não existe nenhuma guerra de versões. Na verdade, a Secretaria [Municipal de Cultura], diante da mobilização, resolveu voltar atrás do desmonte, mas escolheu o pior caminho, escolheu o caminho de dizer que é mentira, quando na verdade eles poderiam ter se retratado, dito que ‘diante da mobilização eles entendiam que não era isso que a população queria e [por isso] não fariam’. Existiam outros caminhos a serem seguidos, bem mais dignos”, protestou uma servidora.
Segunda esta servidora que, temendo represálias, pediu para não ser identificada, o sistema de catalogação é online, o que permite que os bibliotecários cataloguem os materiais sem, necessariamente, terem de ser deslocados para o Departamento Central de Catalogação do Sistema Municipal de Bibliotecas, que fica localizado em outro bairro. Ou seja, os servidores poderiam continuar catalogando, mas sem deixar a Seção de Bibliografia e Documentação sem pessoas para o atendimento.
“A declaração que a Secretaria [de Cultura] está fazendo de que os dois funcionários da Seção aceitaram de comum acordo a realocação no setor de catalogação central não procede. Na verdade, eles apenas não se recusaram, tendo em vista que, como consta na ata assinada pela diretora, ou aceitariam, ou deveriam se aposentar”, esclarece uma servidora.
Apesar dos dois servidores em questão preferirem não se pronunciar, a Biblioo teve acesso a um e-mail enviado pelo bibliotecário Antônio Carlos D’Angelo, responsável pela Seção de Bibliografia e Documentação, à coordenadora geral do Sistema Municipal de Bibliotecas, Raquel Oliveira. Nele, o servidor diz que foi “com grande espanto [que] recebemos a notícia de fechamento da Seção, conforme teor da Ata anexa da reunião presencial ocorrida na Biblioteca Monteiro Lobato”.
“Não concordamos, mas, como respeitamos a hierarquia, não tivemos outra alternativa senão aceitar. Fomos informados também que deveríamos optar entre aposentadoria ou transferência para o Setor de Catalogação da Lapa. Diferentemente do que diz o documento veiculado pela Biblioteca, ainda não informamos nossas respostas”, diz um trecho do e-mail que tem data do dia 09 de agosto.
Nesta correspondência, o bibliotecário diz que “uma vez que a saída dos funcionários está atrelada ao desmonte da Seção e, a não ser que haja outros motivos, gostaria de solicitar a permanência dos mesmos na Biblioteca. Pelo menos até que seja designado um servidor com perfil e formação, para que o mesmo seja devidamente treinado com organização e em tempo suficiente”.
Nós procuramos a Secretaria Municipal de Cultura que deu uma resposta protocolar, repetindo os mesmos termos da nota que havia sido divulgada à imprensa. A SMC repetiu que “trata-se também de fake news o rumor de que a biblioteca estaria acabando com a sua Seção de Acervo de Bibliografia e Documentação”, mas não respondeu nossa pergunta se é autêntica a ata da reunião do dia 16 de julho, quando a chefe da Biblioteca comunicou aos servidores o fechamento da Seção.
Segundo a nota enviada em resposta às indagações da Biblioo, o ofício sobre transferência dos dois funcionários da área técnica de catalogação indicaria que esses quadros irão atuar no Departamento de Catalogação Central do Sistema Municipal de Bibliotecas (SMB), “de pleno acordo de ambas as partes”, fato negado pelos servidores conforme mostramos acima.
“A SMC ressalta, ainda, que a Biblioteca Monteiro Lobato possui quatro bibliotecários, número maior do que a média de servidores entre os equipamentos da CSMB, e que não haverá prejuízo para os frequentadores ou para o acervo. Reiteramos que os funcionários realocados são quadros técnicos que continuarão a desempenhar as mesmas funções em outro local, inclusive para a própria Biblioteca Monteiro Lobato”, conclui a nota da Secretaria.
Petição pública
Circula na internet uma petição pública que até o fechamento desta matéria contava com mais de mil assinaturas. Nela é solicitado a retomada da Biblioteca como centro de referência da cultura e da cidadania para crianças e adolescentes, bem como a presença de profissionais qualificados e em quantidade adequada para a preservação e gestão dos acervos e para o atendimento ao público e desenvolvimento de ações culturais.
Os signatários da petição solicitam, ainda, a implementação de serviço de digitalização dos acervos e gestão dos direitos autorais e acesso público dos documentos; a destinação de verba para a compra de materiais próprios para a conservação e guarda dos livros e documentos de preservação; a destinação de verba para restauração de itens para os quais seja identificada a necessidade; a adequação e climatização dos ambientes de armazenamento dos acervos etc.
Um dos itens listados dentre as demandas da referida petição está a de vistoria e adequação do prédio com equipamentos contra incêndio e outros incidentes. Sobre isso nós perguntamos à Secretaria se a Biblioteca possui laudo de vistoria do Corpo de Bombeiros, mas não obtivemos resposta. Não é demais lembrar que recentemente um importante equipamento cultural de São Paulo, que é a Cinemateca, foi atingida por um incêndio que destruiu parte de seu acervo.
Obrigações da Monteiro Lobato
Na reunião virtual do Conselho Consultivo da Sub-Prefeitura da Sé, realizada no dia 04, a bisneta do escritor Monteiro Lobato, Cleo Monteiro Lobato, que está nos Estados Unidos, afirmou que pelo acordo de doação que foi firmado entre SMC e os representantes do escritor, não seria permitida a retirada do acervo de preservação doado da Biblioteca, criada em 1936 juntamente com o famoso Departamento de Cultura e Recreação, presidido à época por Mário de Andrade, seu primeiro diretor.
Um dos trabalhos mais importantes do acervo da Monteiro Lobato é o Álbum da Dona Purezinha que, segundo apuramos, está em mau estado de conservação. Nós indagamos a SMC se há orçamento direcionado para a conservação e restauração de itens do acervo, como o Álbum da Dona Purezinha, mas fomos mais uma vez ignorados.