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eSem exageros, podemos considerar muitos ex-líbris verdadeiras obras de arte associadas à história do livro. Artistas renomados como Escher, por exemplo, se aventuraram na confecção destes itens que, além do imagético, podem revelar os caminhos por onde andou um exemplar. No momento, vislumbramos uma retomada do ex-librismo no Brasil. Por isso, gostaríamos de apresentar uma cronologia crescente, abordando as principais ações desenvolvidas, no Brasil, para a promoção e difusão do ex-líbris, desde o surgimento das primeiras instituições voltadas ao estudo e divulgação dos ex-líbris – a Sociedade dos Amadores Brasileiros de Ex-líbris (SABEL) e o Clube Internacional de Ex-líbris, na década de 1940, passando pela realização de exposições, as quais viveram seus tempos áureos ao longo das décadas de 1950 e 1960, até o resgate do interesse por essa temática, a partir da segunda metade dos anos 2000, a qual culminou em diversas publicações e eventos, assim como na criação do Grupo Ex-Líbris Brasil (GELB).
A expressão ex-líbris tem origem no latim e significa “dos livros de”, podendo ser usada de forma ampla para designar diversos tipos de indicação de propriedade de um livro. Neste artigo trataremos, especificamente, da aplicação restrita do termo ex-líbris, que define uma etiqueta impressa ou gravada, frequentemente ornamentada e colada na contracapa de um livro, indicando a quem ele pertence ou pertenceu, de forma original e elegante. A exemplo, podemos citar o ex-líbris do Barão do Rio Branco (Figura 1), primeiro colecionador brasileiro desta arte, onde é retratada a Pedra de Itapuca, em Niterói (RJ), com a Baía de Guanabara ao fundo, indicando a admiração do diplomata por esta região e certamente também sua paixão por sua cidade natal, o Rio de Janeiro.
Nas décadas de 1940 e 1950, o ex-librismo no Brasil viveu um de seus grandes momentos. Com o surgimento da Sociedade dos Amadores Brasileiros de Ex-líbris (SABEL), no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1940, e do Clube Internacional de Ex-líbris, também no Rio de Janeiro, em 04 de maio de 1949. Em um dos capítulos do “Livro dos ex-líbris” (2014), Ubiratan Machado relata também a realização da 1ª Exposição Brasileira de Ex-libris, no Museu Nacional de Belas Artes, em maio de 1942, expondo, segundo ele, 1.304 peças.
Na década de 1950, acompanhamos a difusão do ex-líbris pelo Brasil, a partir de exposições, muitas delas as primeiras naquela cidade ou região, como as que aconteceram em Recife (PE), em 1952, em Vila Velha (ES), em dezembro de 1953, em São Paulo (SP), em novembro de 1954, em Salvador (BA), em 1955, em Curitiba (PR), em setembro de 1955, e em Fortaleza (CE) e Salvador (BA), em 1958[1]. Parte do público destas localidades, certamente, teve seu primeiro contato com os ex-líbris a partir da realização destes eventos.
Na década seguinte houve, ainda, uma série de exposições. Percebe-se, no entanto, que pouco a pouco essa prática foi perdendo projeção no cenário nacional. Após três décadas de poucas ações em relação à divulgação, produção e socialização dos ex-líbris no país, nos anos 1990, a professora de artes da Universidade de Brasília (UnB), Stella Maris de Figueiredo Bertinazzo, iria reanimar intensamente esse tema no Ateliê de Xilogravura do Instituto de Artes da UnB, especialmente a partir da coleção de ex-líbris da Seção de Obras Raras da Biblioteca Central (BCE) desta mesma universidade, com o projeto “Ex libris: o Resgate”.
Stella Maris, em um primeiro momento, convocou os bibliotecários e o público frequentador da BCE para resgatar os ex-líbris presentes nos exemplares do acervo geral, passando, posteriormente, a organizar, com a ajuda de alunas de iniciação científica, a coleção de ex-líbris da Seção de Obras Raras. A partir destas atividades, realizou também inúmeras palestras, cursos e exposições sobre esta arte – as nove exposições realizadas por ela, entre 1993 e 1999, ocorreram em diversas cidades brasileiras, como: Brasília (DF), Curitiba (PR), São Paulo (SP) e Petrópolis (RJ), fazendo uso dos mais variados ambientes, tais como bibliotecas, bares, sindicatos, museus e espaços culturais. A expressão máxima destas ações se dá com a publicação do livro “Ex libris: pequeno objeto do desejo”, de sua autoria, publicado postumamente, em 2012.
Outro nome que se destaca, na década de 1990, na ex-libristica brasileira, é o do colecionador e artista de ex-líbris Jorge de Oliveira. Além de colaborar com o projeto de Stella Maris por meio da troca de correspondências com a pesquisadora, Jorge recebeu um capítulo inteiro em sua homenagem no livro publicado. Intitulado “Jorge de Oliveira, a resistência”, o capítulo mostra, por exemplo, que Jorge colecionou incessantemente os ex-líbris por muitas décadas, até que, em 1967, perdeu sua coleção de 15 mil exemplares em uma enchente. Mas, apaixonado por estes itens, reconstruiu o seu acervo até contabilizar, novamente, 6 mil itens. Jorge de Oliveira foi, também, o único artista com produção constante de ex-líbris em sua época. Em 2018, o seu novo acervo foi integrado à coleção de ex-líbris da BCE/UnB, a partir de uma generosa doação feita por seu filho André e esposa Arninda.
Os entusiastas dos ex-líbris na década de 1990 se correspondiam com certa frequência. Além da Stella Maris, Rosângela Roosevelt, orientanda de iniciação científica da Stella, e Jorge de Oliveira, também estavam em contato com os colecionadores Luíz Fernando de Carvalho, Paulo Berger e Elysio Belchior. Todos eles, inclusive, foram elencados nos agradecimentos da exposição permanente “Ex libris: pequeno objeto de desejo”, organizada pela Stella Maris na Seção de Obras Raras da BCE/UnB, em 1998. Luíz Fernando também organizou duas exposições neste período, a I Exposição de Ex-libris Americanos, em 1996, e a I Exposição de Ex-libris da Apolo – Livros & Artes, em 1999, ambas na cidade de Belém (PA). Enquanto isso, Paulo Berger elaborou um grande catálogo de ex-líbris baseado em 25 fontes impressas e onze coleções particulares.
Ao longo dos anos 2000, a chama do ex-librismo brasileiro permanece acesa, o que pode ser constatado pelo número de eventos relacionados, realizados Brasil afora. O ano de 2013 é aquele com maior número de exibições, com um total de cinco exposições, conforme reporta Mary Komatsu, no site Caçadora de Ex-líbris. Exposições estas que prenunciam o recente aumento das interações centradas nesta arte, mostrando como a paixão por estas marcas de propriedade se mantém viva e forte.
Os artistas e colecionadores Marcelo Calheiros e André de Miranda têm trabalhado na organização e curadoria de diversas exposições pelo país. Este último, inclusive, está preparando uma nova exibição, com abertura ao público prevista para o dia 25 de novembro de 2021, no Museu de Arte de Blumenau, em Santa Catarina.
Merece destaque o trabalho realizado pela bibliotecária Mary Komatsu na divulgação constante dos ex-líbris. Além do site, Mary mantém perfis nas redes sociais Instagram, Facebook e YouTube, onde aborda diversos aspectos da ex-librística. Semanalmente, realiza lives com colecionadores, artistas, bibliotecários e amantes dos ex-líbris, impulsionando esta arte a partir destes canais que têm se tornado importantes pontos de difusão da temática. Ainda, em 19 de março de 2021, Mary, juntamente com as também bibliotecárias e pesquisadoras, Alissa Vian e Júccia Oliveira, lançaram a exposição virtual Ex-líbris: olhares nas bibliotecas. Com curadoria precisa, elas apresentaram exemplares das coleções de Luiz Felipe Stelling, Marcelo Calheiros, Gerson Witte, Elza Guerra Aleman e Luiz Fernando de Carvalho.
Pode-se dizer que na área acadêmica, a temática dos ex-líbris também tomou novo fôlego, especialmente a partir da segunda metade da década de 2000, com a produção de trabalhos acadêmicos, artigos científicos e livros. A exemplo, podemos mencionar os trabalhos de Gisele Pottker (2006), José Augusto Bezerra (2006), Camila Miranda (2009), Oto Reifschneider (2011), Ana Maria Machado (2012), Liliana Giusti Serra (2012), Márcia Palhares (2015), Andréa Pinheiro e Rosângela Von Helde (2016), Thalles Siciliano e Eduardo Alentejo (2017), Maria Cristina Silvestre (2017), Rosely Mulin (2017), Solange Teixeira (2017), Ricardo Rodrigues (2018), Polyanna Marra (2019), Priscila Pinheiro e Sérgio Vicente (2019), Marcia Della Flora Cortes et al. (2019a; 2019b; 2020a; 2020b), Alissa Vian e Marcia Rodrigues (2020), André de Miranda (2020), Ana Virginia Pinheiro (2020), Rosângela Von Helde (2020), Gerson Witte (2020), Luiz Felipe Stelling (2020) e Jandira Flaeschen (2021)[1]. Sobre os trabalhos citados, observa-se uma grande parcela advinda da área da ciência da informação, especialmente da biblioteconomia.
No ano de 2020, surgiu a iniciativa de criação do Grupo Ex-líbris Brasil (GELB), visando à socialização dos ex-líbris. O GELB tem suas origens em um grupo de WhatsApp criado, no mesmo ano, por Marcelo Calheiros. Começou com cinco participantes e, aos poucos, foi agregando mais interessados. Até o momento, 24 entusiastas de diversas áreas de atuação, como artistas, colecionadores, pesquisadores e bibliotecários, integram o GELB, que mantém, também, um grupo restrito no Facebook e realiza reuniões virtuais periódicas para discussões em torno do tema.
No momento, o GELB está envolvido na preparação de uma bela homenagem ao heraldista, artista e ex-librista Alberto Lima. Um livro artesanal com tiragem reduzida de exemplares, onde se apresentarão vários ex-líbris em sua celebração, está sendo produzido para laurear os 50 anos de sua morte.
A partir do breve panorama apresentado, fica claro o crescente interesse pelo ex-líbris e pela ex-librística no Brasil, evidenciando a sua potencialidade como marca de propriedade (sua funcionalidade inicial), mas também como objeto de arte e como uma possível temática de pesquisa para a comunidade acadêmica e científica.
[1] Os últimos seis trabalhos citados foram organizados por Mary Komatsu, a partir de entrevistas realizadas no canal Caçadora de Ex-Líbris.
[1] Para obter mais informações sobre exposições brasileiras de ex-líbris, visite o site Caçadora de Ex-líbris – Exposições sobre Ex-líbris no Brasil.
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ibliotecário de Obras Raras da Biblioteca Central da Universidade de Brasília (UnB) desde 2008, com Doutorado em Ciência da Informação pela UnB e Pós-doutorado em Ciência da Informação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), este último sobre censura a livros e a imprensa em Brasília durante a Ditadura Militar.outora em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel; Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade pela UCS; Bacharel em Biblioteconomia pela FURG. Docente do Instituto de Ciências Humanas e da Informação da Universidade Federal do Rio Grande (ICHI/FURG).