Por Leonardo Lichote de O Globo
Filho do maior colecionador de discos de 78 rotações por minuto do Brasil (o cearense Nirez), o técnico de som Otacílio Azevedo percorria a Universidade de Aveiro, em Portugal, quando fez duas descobertas na parede. Pendurados como decoração, ele encontrou discos de música brasileira completamente desconhecidos. Otacílio está em Aveiro para o Congresso Música e Lusofonia em Acervos de 78 rpm, que desde ontem reúne pela primeira vez gestores de coleções, pesquisadores musicais, técnicos de som, especialistas e restauradores de Portugal, Brasil, Moçambique e Angola, entre outros países de língua portuguesa.
— Um dos discos que ele descobriu é do Grupo Lulu Cavaquinho. Lulu foi dos primeiros cavaquinistas brasileiros a gravar. Esse disco é do seu conjunto, com solo de flauta. O outro é um disco engraçado. Traz o hino francês, a “Marselhesa”, com uma letra em português do Brasil — conta Pedro Aragão, pesquisador musical e professor da UniRio, que está em Aveiro pesquisando para seu pós-doutorado e decidiu organizar o congresso para que os diferentes países pudessem trocar experiências e músicas.
TENOR ENROLADO COM CAXANGÁ
Os acervos de 78 rpm — formato que precedeu o vinil (leia mais abaixo) — mostram que, bem antes da internet e dos streamings, das parabólicas e mesmo da TV, o mundo já era uma aldeia, com a música de um país influenciando a do outro. Novos gêneros iam nascendo, e todos estavam atentos às vanguardas populares de todos, com uma circulação intensa de artistas e sons.
— A gente sempre ficou atado a definir música nacional, algo até político, mas a circulação de discos está acima das fronteiras. A quantidade de maxixes, sambas e choros que ouvi no acervo português é enorme. Descobri aqui, por exemplo, um personagem, um negro brasileiro chamado Geraldo Magalhães, que veio para Portugal nos anos 1910, e fez muito sucesso cantando maxixe. Isso foi muito antes de Duque, dançarino que se destacou com o maxixe na França na década de 20 e é sempre lembrado como pioneiro — diz Aragão.
Ao falar desse encontro de culturas, o pesquisador destaca ainda aspectos engraçados e curiosidades:
— O Geraldo Magalhães se casou com uma portuguesa, com quem formou uma dupla. É divertido ouvi-lo cantar aqueles versos maliciosos do maxixe, de “requebrar”, “negrinha”, pra uma portuguesa que não tinha nada desse papel que estava representando. Tem também uma gravação de “Cabocla de Caxangá”, do Catulo da Paixão Cearense, em 1910, na voz de um tenor português que se ferra todo, não consegue acertar a métrica, se embola com aquelas palavras todas que ele não conhecia (os termos sertanejos que caracterizam a obra do compositor).
Um dos objetivos do congresso, explicam os organizadores, é exatamente investigar os pontos de contato dessas histórias que correram paralelas — ou melhor, bem menos paralelas do que se acredita.
— A ideia é que esse encontro seja o pontapé para o surgimento de alguma associação unindo esses acervos — diz Aragão. — Esperamos que isso vire uma plataforma digital, em que, se não for possível ouvir os áudios digitalizados, pelo menos seja possível saber o que existe em cada coleção.
A presença de Otacílio Azevedo no congresso, que conta com o apoio de instituições como a Fundação Roberto Marinho e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPL), ilustra bem as possibilidades da troca de técnicas e experiências entre os gestores de acervos. Um mês antes do encontro, ele deu um workshop de restauração de discos para os técnicos da Universidade de Aveiro, que abriga o acervo do produtor musical José Moças, o maior de 78 rpm de Portugal, com 8 mil discos, onde estavam os brasileiros recém-descobertos. Otacílio ensinou técnicas caseiras, que ele mesmo inventou para recuperar discos aparentemente sem solução. No material reunido, havia álbuns rachados, que jamais tinham sido tocados. Otacílio juntou partes, raspou a vela sobre a rachadura, depois aqueceu o material. E o disco remendado voltou a tocar, para espanto dos outros técnicos.
“AINDA HÁ MUITO A SE DESCOBRIR”
Aragão diz que o Brasil está bem mais avançado do que Portugal e outros países lusófonos na gestão desses acervos. Ele cita como exemplo o trabalho do Instituto Moreira Sales (IMS), com áudios digitalizados e facilmente acessíveis aos interessados. O IMS, aliás, é um dos participantes do congresso, ao lado de instituições como a Rádio Moçambique e o Museu Nacional de Etnologia de Portugal. Entre as mesas previstas, há temas como “Fora do controle das elites: comicidade e gostos bárbaros em discos de 78 rpm”, “Revivendo Pixinguinha: as gravações de 1923 em Buenos Aires” e “Gravar no Brasil, difundir Portugal: a digressão internacional das Irmãs Meireles nos anos 1940”.
— É muito interessante um encontro desses para entendermos como se dava essa influência mútua — defende Nirez, dono de 22 mil discos de 78 rpm. — Uma gravação feita no Brasil em 1908 ganhava edições em Portugal, França, Inglaterra. Além disso, as músicas que faziam sucesso no Brasil eram gravadas por portugueses lá. Duque foi para Paris apresentar a música brasileira, mais tarde os Oito Batutas. E você encontra gravações de um tal de Arthur, que assinava só assim, na Alemanha, assim como de Josué de Barros, violonista que descobriu Carmen Miranda e também gravou muito na Alemanha.
O português José Moças, que além de colecionador também tem uma gravadora que lança raridades de seu acervo (a Tradisom), concorda, a partir da perspectiva de Portugal.
— Há cantores portugueses nos anos 1920 e 1930 que gravaram mais no Brasil do que em Portugal. Amália Rodrigues, com 25 anos, quando ainda não era a estrela que se tornou, foi ao Brasil e gravou ali seus primeiros discos para a Continental. Foram oito discos e 16 músicas muito importantes para sua consolidação — lembra Moças, acrescentando que já editou essas gravações em CD. — Mas ainda há muito a se descobrir nesses acervos. Sobretudo o que temos em comum.
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