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Eric Nepomuceno: “É preciso usar a memória para construir o futuro”

Por Léo Gerchmann, do jornal Zero Hora

No livro A Memória de Todos Nós, o jornalista Eric Nepomuceno conta histórias que conduzem o leitor para o barbarismo das ditaduras dos países sul-americanos. Vai de filhos e netos que recuperaram a identidade aos dramas vividos por pais e avós, propondo uma reflexão às novas gerações.

No momento em que alguns pedem a volta dos militares, seu livro desperta a memória para uma época difícil da nossa história.

Nem a editora, nem eu poderíamos supor que o livro coincidiria com o quadro político atual. Agora, a ideia do livro é tentar – tentar – contribuir para que se abra um debate sobre a questão da memória adormecida, da verdade negada, oculta. E também discutir a manutenção da garantia de impunidade dos agentes públicos que praticaram ampla e largamente o terrorismo de Estado, com crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis. Ah, confesso que essa ideia, eu tive e tenho. Despertar a memória é uma expressão correta. Porque o que vejo aqui no Brasil é um discurso defendendo a amnésia. O passado deve ser mantido intocado, quieto, adormecido. E não creio que isso seja uma atitude digna. Claro que há muita gente interessada em deixar essa memória anestesiada, e não me refiro apenas a militares. Muita gente ganhou rios de dinheiro com a ditadura civil-militar, de empresários a banqueiros, de fazendeiros a proprietários de meios de comunicação. Para eles, e ao contrário do que se cantava em carnavais passados, recordar não é viver, é um perigo.

As novas gerações têm suficientemente essa memória?

Não, nem de longe. Nem de longe. E isso é perigoso, claro. Negar o passado, adormecer a memória, ocultar a verdade, é desconhecer o presente. E se você não sabe o que aconteceu, não saberá o que está acontecendo. Se você não sabe de onde veio, não saberá para onde ir. Esse livro nasceu de um seminário promovido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), entre novembro de 2011 e janeiro de 2012. Houve inclusive sessões em Porto Alegre. Foi ali, ouvindo as histórias e vendo como eram desconhecidas pelos brasileiros, e não apenas os mais jovens, mas também por muita gente da minha geração, vendo o perigo do esquecimento, que resolvemos escrever esse livro, com apoio total da Flacso.

Capa do livro “A Memória de Todos Nós” de Eric Nepomuceno. Foto: divulgação.

Há risco para a democracia brasileira ou as instituições estão suficientemente maduras?

Espero que as instituições estejam suficientemente maduras para superar momentos graves como o atual. E pelo que estamos vendo pelas ruas, os beócios que defendem a volta de uma ditadura civil-militar como a que minha geração enfrentou ao longo de 21 anos são minoria, e não têm ideia do que dizem. Se tiverem, pior… Sob muitos aspectos, há ventos golpistas no ar, mas não se trata exatamente de clamar aos quartéis por socorro. São aspectos diferentes de um mesmo fato. Há, é inegável, uma insatisfação generalizada, e o governo não parece ter encontrado a melhor maneira de responder a isso. E há, claro, os ressentidos de sempre, que não se conformam com a voz das urnas. Essa mistura é complicada. Uma voz é a das ruas, que tem de ser ouvida, e rápido. Outra é a das urnas, que não pode, em circunstância alguma, ser contestada.

Muitos veem temas da ditadura como superados. É proposital?

É um mecanismo essencialmente covarde. Negar o passado, ocultá-lo, é uma clara mostra de covardia. Como funciona? Ora, negando, diminuindo, dissimulando. E me parece claro que é, sim, uma desqualificação proposital. Tudo contribui, do elogio ao consumo à reverência pelo individualismo, o “eu” preponderando sempre: me interessa o que é meu ou aquilo que eu quero, o resto é secundário. Acho a memória essencial, tanto a individual como a coletiva. Voltar a um tema é evitar que esse tema torne a ser realidade.

O senhor escrevia o livro quando a “abuela” Estela de Carlotto recuperou seu neto Guido, não?

Eu estava revisando o livro. Estava em Buenos Aires, onde costumo passar algumas temporadas por ano. É a cidade dos meus anos jovens: vivi lá dos 24 aos 28 anos, de fevereiro de 1973 a julho de 1976. Naquele dia, tinha ido a uma emissora de rádio, dar uma entrevista. E quando eu estava saindo, chegou a notícia. Entrei num táxi e voei para a Associação das Avós da Praça de Maio. Pude dar um abraço em Estela, uma guerreira determinada.

Como foi esse momento?

Foi uma emoção que não posso descrever. E não para mim, para todos. Uma festa da vida, uma vitória da memória. E com detalhes tremendos. Ignacio, que agora também se chama Guido, o neto desaparecido, tinha se aproximado, por conta própria, das Avós da Praça de Maio. Músico, chegou a tocar em celebrações, em atos públicos. Não tinha ideia de que não apenas era um neto que estava sendo desesperadamente procurado desde sempre, como era o neto de Estela de Carlotto, a nau-capitã daquela armada inteira.

Quem emociona mais: Juan Cabandié, que buscou punição para o “pai adotivo”; Macarena Gelman, neta localizada pelo avô poeta em outro país; ou os Carlotto?

Impossível medir, comparar, ordenar, classificar. São histórias brutais. Por razões absolutamente pessoais, me sinto mais próximo de Macarena. É que seu avô, o poeta Juan Gelman, um dos maiores da poesia contemporânea escrita em castelhano, foi meu amigo da alma, meu irmão de coração. Acompanhei, desde o marco zero, a procura alucinada de Juan pelo filho Marcelo, pela nora Maria Cláudia, pelo bebê, que ele não sabia se era menino ou menina. Lembro claramente do dia em que os restos de Marcelo foram encontrados. E também do dia em que Juan e Macarena enfim se conheceram. Isso, porém, não significa que a história dela seja mais ou menos dramática que a de Estela e Juan Cabandié. Em termos absolutamente pessoais, é mais próxima para mim, por Juan, meu querido amigo, meu irmão poeta.

Cabandié tinha outro nome até se descobrir filho de desaparecidos. Queria se chamar Juan, que era, sem ele saber, o nome dado por sua mãe. Como foi isso?

Sabe o que pensei quando ele me contou isso? Que a vida é mais forte. Que há memórias que ninguém, nada, pode tocar. É como o pesadelo que assombrou as noites da infância e da primeira adolescência de Macarena. Não são lembranças vagas, não eram pesadelos: eram revelações. Juan Cabandié teve a história negada, a identidade roubada. Mas em algum rincão da sua alma, ele sabia disso. E tomou a iniciativa de perseguir essa história, essa verdade, recuperar sua identidade, ser, enfim, quem deveria ter sido desde sempre.

Como o senhor vê o dilema de usar a memória para construir o futuro ou ficar preso ao passado?

É preciso usar a memória para construir o futuro. Mas o futuro só será construído se conhecermos o passado. Como diz dom Adolfo Pérez Esquivel, sem saber de onde você veio, jamais saberá para onde ir.

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