Iniciando de forma incisiva, evidentemente que este texto não tem o objetivo positivista de olhar o fenômeno da Lei 12.244/10 apenas no período de 2010 a 2020, mas propor minimamente uma ação que constitua um primado da biblioteca escolar para o futuro considerando as questões prementes da educação básica em consonância com possíveis contribuições da Biblioteconomia.
Nos debates em Biblioteconomia de cunho acadêmico (nas disciplinas obrigatórias e optativas, atividades de pesquisa, extensão, monitoria, estágios supervisionados, remunerados, nos corredores) profissionais (atividades e diálogos entre bibliotecários nas bibliotecas escolares em que atuam), político-institucionais (percepção dos órgãos de classes como Conselhos, Associações, Sindicatos, CAs/DAs) uma das questões mais ressonantes é alusiva ao cumprimento da Lei nº 12.244/10 que universaliza a estruturação e acesso às bibliotecas escolares.
Muitas são as perguntas e poucas as respostas. As perguntas vão desde as mais estratégicas, qual seja, “quando e como a ‘lei da biblioteca escolar’ será cumprida?”, passando pelas mais crítico-analíticas e preditivas como “qual a compreensão histórica da referida lei desde de sua origem e quais perspectivas para o futuro?” ou ainda “qual o papel da Biblioteconomia no processo de luta e concretização acerca da norma?”, continuando com as mais avaliadoras do tipo “quais avanços da biblioteca escolar após a institucionalização da Lei”, chegando nas mais pessimistas como “porque a Lei nº 12.244/10 não vem obtendo êxito na concretização de seus princípios?” culminando com perguntas mais objetivas, tais como “o que está sendo feito pelos poderes executivo, legislativo, judiciário e midiático, órgãos de classe e outros segmentos para o cumprimento desta?”
Diante das perguntas feitas, há várias respostas, mas há uma resposta que se adequa a realidade de todas as perguntas: toda e qualquer lei só é efetiva quando se estabelece um conjunto de políticas públicas com projetos, planos e programas articulados com a finalidade de dinamizar o conteúdo da Lei. No caso da Lei nº 12.244/10, é inegável a falta das políticas públicas que busquem o seu cumprimento integral, desde a falta de perspectivas para construção de um sistema de bibliotecas escolares, passando pela composição de um conjunto de práticas de atuação técnica e pedagógica da biblioteca escolar até a inserção do bibliotecário como profissional habilitado para gerenciar este centro de informação.
Considerando o prazo de 10 anos estabelecido para o cumprimento da lei, muitos desafios ainda são prementes. Embora seja pertinente reconhecer esforços da Biblioteconomia e de alguns aparatos governamentais de cunho municipal, estadual e federal, tem sido muito incipiente para contemplar o disposto na lei em questão pela falta de elaboração das políticas públicas. E como estruturar uma proposta para o cumprimento da Lei 12.244/10? Evidentemente que não há propostas definitivas, mas que podem e devem ser aprimoradas nos processos históricos da relação entre ação biblioteconômica e governos.
Diante dos estudos, projetos e pesquisas que desenvolvi sobre bibliotecas escolares, foi possível estabelecer um arrazoado propositivo para a biblioteca escolar no sentido de se criar uma política pública que ampare a Lei 12.244/10. Vale ressaltar que esta proposta vem sendo discutida e amadurecida no município de Fortaleza em que há um ponto de negociação entre a classe bibliotecária e a Prefeitura Municipal de Fortaleza e em nível estadual no Ceará. No entanto, exponho a proposta geral que pode se aplicar em qualquer esfera municipal e/ou estadual do Brasil, considerando possíveis adaptações:
1º – Contratação via concurso, de 20% de bibliotecários em relação às escolas municipais e/ou estaduais. Os bibliotecários contratados atuarão como gestores no sentido de construir amplo diagnóstico da realidade da biblioteca escolar no contexto municipal e/ou estadual, visando estruturar um sistema de bibliotecas escolares, a partir dos fatores que seguem. Vale apenas considerar que a ideia é que este número de bibliotecários concursados aumentem gradualmente em escala média de 20% ao ano para que em 2020 vários municípios e estados já possam contar com um sistema mínimo de bibliotecas que permita o aprimoramento nos anos subsequentes;
2º – Levantamento e diagnóstico da real situação das bibliotecas escolares municipais e/ou estaduais contemplando aspectos gerais como: quantas escolas com bibliotecas existem; qual o acervo que já existe na biblioteca considerando livros, revistas e outros materiais de cunho bibliográfico, documental, audiovisual e iconográfico;
3º – Construção de sistema eletrônico para gerência das bibliotecas da rede municipal e/ou estadual a fim de criar uma rede de bibliotecas cooperativas. Com um sistema consistente, as bibliotecas podem dialogar e partilhar materiais em termos de acervos constituindo o que pode ser chamado de bibliotecas cooperantes, assim como já ocorre com bibliotecas universitárias e públicas. Ressaltando que este sistema pode ser produzido pelos bibliotecários gestores em parceria com os programadores da Prefeitura, assim como especialistas da área de Biblioteconomia e afins que podem contribuir para criação do sistema;
4º – Inserção do acervo no sistema eletrônico. Uso de técnicas como catalogação, classificação, indexação e outras linguagens documentárias. A vantagem deste sistema a ser criado com todo o aparato de registro e organização do acervo é que contribui para preservação histórica do acervo e da memória intelectual escolar possibilitando que seja facilmente recuperado e acessível à comunidade de usuários evitando extravios ou deformações físicas do acervo.
5º – Estudo de comunidades e usuários. Etapa crucial de cunho metodológico, visando dialogar com a comunidade de usuários (alunos, professores, diretores e demais funcionários do ambiente escolar) a fim de construir uma percepção sólida sobre a realidade de atuação da biblioteca escolar contemplando a organização, serviços, práticas técnicas e pedagógicas de leitura etc. Vale ressaltar que este estudo envolve aplicação de técnicas convencionais como questionários, entrevistas, formulários, observação (participante ou não participante), visando coletar dados sobre o que a comunidade pensa acerca da biblioteca e como pode contribuir para o seu desenvolvimento institucional e pedagógico, além de técnicas mais densas como técnica do incidente crítico, sense making etc., buscando descrever e compreender o comportamento dos usuários, além de promover perspectivas construtivistas e interacionistas considerando suas deficiências no ato de leitura. O fundamental do estudo de comunidade e usuário é identificar problemas e propor sugestões. No caso da biblioteca escolar, soluções que valorizem as práticas de alfabetização e letramento dos usuários, ou seja, promover novos incentivos de práticas leitoras.
6º – Política de dinamização do acervo. Busca redimensionar a concepção do acervo para além do livro contemplando seus diversos suportes físicos e eletrônicos no sentido de que não devem ser apenas pautados para empréstimo, mas principalmente para estimular atividades pedagógicas com a comunidade de usuários contribuindo para construção de conhecimento na escola.
7º – Incentivo à leitura e a pesquisa. Certamente este é o ponto mais relevante da proposta, pois insere a biblioteca escolar como centro de informação exponencial para diminuir os déficits de leitura no município estimulando a criatividade artística e técnica de alunos e professores. Uma escola que não possui biblioteca com bibliotecários atuando em parceria com os docentes inibe um enorme potencial de alfabetização, construção do letramento e perspectivas de criação humana. Em outras palavras, pauta a formação de competências para professores e alunos de forma integrada ou particular (dependendo da necessidade). Para tanto, uma das formas mais profícuas de estimular leitura e pesquisa a partir da biblioteca escolar é através do ponto seguinte.
8º – Serviços de informação: Serviço de referência e informação (SRI), Disseminação seletiva da informação (DSI), Serviço de alerta; Serviço de informação utilitária. Estes serviços elevam o papel pedagógico e mediacional da biblioteca escolar. O SRI tem o objetivo de auxiliar o usuário em suas mais diversas necessidades de informação, tais como indicar o material mais adequado, facilitar o processo de busca e uso dos documentos disponíveis na biblioteca escolar, prover auxílio bibliográfico nas atividades dos docentes em suas disciplinas e dos alunos no desenvolvimento das atividades disciplinares/curriculares. Já o serviço de alerta visa noticiar/informar sempre a comunidade sobre novos acervos e serviços da biblioteca, assim como sobre temas do cotidiano ligados à cultura, educação, política, ciência, entre outros.
A DSI é consequência dos estudos de comunidades e usuários, de modo que o bibliotecário conhecendo a realidade de seu público pode promover informações específicas para cada segmento escolar como docentes (separados por série e disciplina) e alunos (separados por série, turno, disciplina, necessidades particulares de informação). A vantagem do serviço de alerta e DSI é que podem ser feito através de meios informais como uso de redes sociais e e-mail (estimulando um novo olhar sobre uso de meios tecnológicos digitais pela comunidade de usuários) exercendo um papel de newsletter ou por meio de meios formais (eventos e atividades institucionais as escola promovidas pela escola).
O serviço de informação utilitária é o mais complexo, porém, não menos importante, visto que se configura na atuação enfática e continuada da biblioteca sobre temas do cotidiano como meio ambiente, família, campanha contra drogas, informações de utilidade pública sobre saúde, trabalho, estágios e informações de utilidade pública alusivas ao cotidiano, quais sejam, saúde (informações sobre saúde pública, higiene, prevenção de doenças, exercícios físicos, além de informações sobre hospitais públicos, particulares, postos de saúde, ambulâncias, farmácia popular, farmácias particulares, laboratórios, SUS, clínicas, unidades sanitárias, academias populares, academias particulares etc.); Cultura e lazer (agenda cultural, calendário de eventos, cinemas, teatros, museus, centros e espaços culturais, salas de exposições, galerias de arte, estádios, órgãos ligados ao esporte); utilidade pública (assistência social ao menor, à mulher, ao idoso e etc., associações, assistência legal, juizados, tribunais, prisões, serviço de assistência gratuita, projetos públicos, serviços públicos de pagamento como gás, luz, água, telefone, etc., sindicatos, como tirar documentos de identidade, CPF, título de eleitor e outros, segurança, telefones úteis como bombeiros, emergências, polícia, imprensa local); Trabalho (agências de emprego e estágios, oportunidades de empregos, cursos e eventos de qualificação profissional etc.), além de outros assuntos referentes à realidade cotidiana dos usuários. O serviço de informação utilitária busca modificar o cotidiano dos usuários com informações sobre temas relevantes do cotidiano que podem ser potencializados de forma didática pela biblioteca escolar.
9º – Inclusão: social, digital, artística, acessibilidade física, visual, auditiva, etc.
Um dos primados da biblioteca na contemporaneidade é se estabelecer como centro de inclusão. O papel da biblioteca escolar é fundamental, desde a base, para estimular nos usuários, em especial alunos, formas de acesso aos meios físicos e digitais de informação norteando e agregando valores, mostrando que as tecnologias devem ser utilizadas para o desenvolvimento pedagógico e não apenas como entretenimento e nos professores novas formas de uso das tecnologias para dinamização das atividades curriculares. A biblioteca escolar também deve tratar com indistinção questões de raça, credo, gênero e classe social valorizando a pluralidade de ideias e o respeito às diferenças. Para tanto, precisa ser acessível a todos os segmentos independente de limitações físicas, visuais e auditivas e o bibliotecário é ator fundamental neste processo de inclusão.
Diante de todos os pontos elencados como alternativas iniciais para construção de uma política pública para biblioteca escolar em nível nacional respeitando e valorizando as particularidades locais e regionais, apresento algumas sugestões:
É fundamental que a proposta comece a ser estruturada a partir da relação centro-periferia, ou seja, que se inicie nos lugares onde há cursos de Biblioteconomia, efetiva quantidade de bibliotecários e disposição dos governos para dialogar a fim de superar a estatística deturpada de que não há bibliotecários suficientes e de que possa ser construído um sistema mais sólido e estruturado de bibliotecas escolar incentivando que essa relação centro-periferia gradualmente vá se extinguindo com a criação de novos cursos de Biblioteconomia e a ampliação dos investimentos em educação através do Plano Nacional da Educação (PNE) que permita a estruturação das escolas em médio e longo prazo e, por conseguinte, o investimento nas bibliotecas escolares nas mais diversas localidades do Brasil. A relação centro-periferia, neste caso, se dá no fato de que quanto mais periférico for o local mais dificuldades este terá de absorver bibliotecários, especialmente as periferias que não contam com curso de Biblioteconomia. Isto quer dizer que, mesmo que o Brasil consiga formar um número considerável de profissionais em pouco tempo, corre-se o risco destes se negarem a trabalhar nas regiões mais afastadas dos grandes centros por vários motivos como infraestrutura deficitária, parcos incentivos à qualificação e desenvolvimento da carreira etc., assim como já ocorre com outros profissionais.
Como consequência do ponto anterior, é pertinente que as negociações ocorram simultaneamente nas esferas estaduais e municipais (estas, em especial, nas grandes cidades que contemplam cursos e amplas atividades de bibliotecários), visando ecoar a força política da Biblioteconomia mediante existência de Lei com a perspectiva de formação das políticas públicas;
Este é o momento de agregar parceiros e forças de construção política significando que não é interessante aguçar a revolta contra os professores readaptados. O ideal é que haja um diálogo continuado entre os órgãos de Biblioteconomia e os sindicatos de professores para que seja concebida uma conscientização de que o bibliotecário é o profissional gestor da biblioteca, mas que não impede de uma parceria pedagógica com o professor, mas, ao contrário, bibliotecário e professor juntos podem fazer muito mais pela educação. Não podemos esquecer que esta luta define de modo peremptório a institucionalização da Biblioteconomia como categoria da educação básica e a melhor forma de concretizar este feito é agregando valores e parceiros para fortalecer a luta;
No que tange a qualificação dos bibliotecários a serem contratados é crucial que a Biblioteconomia, via cursos de graduação/especialização, qualificação continuada (palestras, cursos de curta e média duração, atividades técnicas) promovida por associações e outros órgãos de classe tomem a responsabilidade, pois em negociação com o governo é pertinente assegurar um profissional de qualidade que contribua, de fato, para o desenvolvimento das bibliotecas escolares e da educação de modo mais amplo, pois, do contrário, o olhar do governo pode ser de uma nova categoria para “inchar” a máquina pública;
A ideia com a proposta ora definida é a criação de um Sistema Municipal de Bibliotecas Escolares (SMBE) e/ou Sistema Estadual de Bibliotecas Escolares (SEBE), de modo que tenhamos em 2020 a criação de um plano municipal e/ou estadual de bibliotecas.
A biblioteca escolar não pode ser pensada apenas diante de “quatro paredes”, mas deve ser transfigurada atuando em múltiplos espaços físicos da escola e digitais para que o usuário tenha acesso à informação para além de sua estada na escola superando a percepção da biblioteca como ambiente burocrático e fechado, tornando-a ambiente democrático, aberto e plural para o acesso à informação em quaisquer suportes bibliográficos, documentais, audiovisuais, iconográficos e tecnológicos.
A garantia é de que com o cumprimento da proposta ora solicitada para a biblioteca escolar, haja um aprimoramento gradual nos índices de leitura dos alunos, estimulando processos de alfabetização e letramento, assim como a construção de uma cultura de informação em que a biblioteca é vista, por um lado, como apoio em tempo integral, incluindo apoio às atividades de contra turno, a toda e qualquer atividade escolar como centro de informação pedagógico e não apenas técnico-administrativo como vem sendo propalado e, por outro lado, que a biblioteca escolar é um centro de informação efetivo na solução de problemas relacionados à leitura e alfabetização escolar que ainda se constitui como uma das deficiências mais degradantes de nossa educação.
Inegavelmente, países que possuem sistemas de bibliotecas escolares com bibliotecários possuem uma tendência mais ampla a se consolidarem positivamente do ponto de vista da formação leitora, intelectual, humana e profissional. Afinal, a biblioteca escolar é o ambiente da convivência, pluralidade e construção do conhecimento, de sorte que é o órgão vivo que contempla ações para o desenvolvimento humano de alunos, professores e a comunidade de usuários externa (família e comunidade adjacente).
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