Dentro do ônibus lotado e estacionado em mais um dos inúmeros semáforos da avenida sem fim, minha cabeça se mantém pendendo no vidro imundo e completamente sufocado por centenas de adesivos eleitorais. Bocejos, vozes e reclamações explodem por todos os lados.
– As mesmas táticas partidárias, eleitoreiras… Essas coisas frouxas que esses políticos de merda insistem em fazer -, reclama o velho no banco direito, cuspindo uma semente de laranja pela janela.
“Danem-se eles”, era o que eu conseguia pensar. Minha apatia se misturava ao cansaço de mais de quinze horas vagando pelas empresas de comunicação para distribuir currículo. Assim como eu, muitas daquelas pessoas dentro do ônibus estavam esgotadas de tanto brigar e competir por ninharia. É o que fazemos todos os dias, desde o nascer do sol até o fim da madrugada, bebendo altas doses de esperança gaseificada em cada oportunidade seguinte. Somos como ratos que precisam disputar um pedaço de pão jogado dentro do bueiro ou qualquer migalhinha surrada que se apresente como uma dádiva dos céus. Ratos que disputam como vermes.
O odor de suor no ônibus só aumentava a cada braço que teimava em segurar naqueles corrimões cheios de gordura. Ah, se os bancos, vidros e ferros de transportes coletivos falassem! Certamente contariam histórias como a minha.
Formada em Jornalismo há cinco anos, com perspectiva de salário miserável e sem oportunidades crescentes aqui, nessa cidade que está mais para fazenda sem porteira, sem cercas e com muito gado esfomeado. Perdi as contas de quantos projetos de pesquisa redigi, de quantos perfis profissionais encaminhei, de quanto dinheiro gastei com impressão, de quantas horas perdi. Só não posso perder a contagem dos nãos que recebi porque eles me fazem lembrar quais são os valores dessa sociedade, quem são seus vencedores e perdedores. Nem preciso mencionar que sou considerada como perdedora dentro desse sistema todo – pelo menos, é assim que querem que eu pense. É assim que me qualificam todas as vezes que o carimbo NEGADO aparece em letras vermelhas, garrafais, fechando as minhas chances e me rotulando conforme os pré-requisitos de não-sei-lá-quem.
Mais um dia sacolejando dentro do ônibus, odores subindo, rostos apressados, espremidos, desamparados, música alta saindo das caixas de som, cobradores mal humorados. “Coitados, eles são tão vítimas quanto cada um de nós aqui, passageiros de caixas de fósforos ambulantes”, me pego pensando.
Nesse turbilhão, arrasto minha mente de volta ao dia da minha viagem ao mar: aquele grande e confortável transporte interurbano me conduzindo para o sossego, para a paz. O condutor, um cara alto de feições agradáveis, oferece água mineral a todos os passageiros. Água geladinha, emanando aquelas gotinhas que se formam na superfície do plástico e caem no colo, nas mãos, no rosto, deliciando a pele antes mesmo que possam deliciar a garganta. De madrugada, frio acolhedor, “Goodbye”, do Air Supply, sendo assoviada pelo motorista de forma tão doce, meu quase sono embalado…
Mais uma parada brusca, minha cabeça bate violentamente no vidro, o ônibus estancado no tráfego interminável de automóveis. Nesse momento, exatamente nesse momento, eu não posso deixar de perceber uma gotinha bem próxima dos meus olhos. “A água geladinha, ah… isso aqui é um pesadelo, eu quero acordar dentro do…”, penso, antes de ser jogada para frente em mais uma parada. Realidade é vírus sem cura, não gosta de deixar espaço para consolos, nem mesmo se eles forem meros placebos. E os transportes públicos, do alto de seus apertos, são as doses homeopáticas desse remedinho que o governo dá para acalmar – vamos lá, búfalos! – os ânimos da população. Eu era um desses búfalos criados com a ilusão de liberdade, dentro de um cativeiro com papel de parede verde e flores artificiais fortalecidas por aromatizantes de supermercado. Eu tenho me perguntado se todos os lugares do mundo são assim, grandes pradarias projetadas em fábricas de decoração.
Outra parada. Embarque de passageiros, já que a porta de desembarque continua fechada. Gritos ecoam de todas as partes do ônibus:
– Ô, motorista, não dá para entrar nem um fio de cabelo amanteigado aqui não. Não abre a porta mais não, motorista! Ô, motorista!
E logo uma briga de corpos tem início, sem regulamento ou juiz para apontar vencedores.
– Ei, não aperta minha bunda não, seu moleque! Tá achando o quê? -, grita, de algum lugar, uma mulher de voz rouca.
– Deixa eu passar, deixa eu passar, minha parada é a próxima -, berra uma criança de oito ou nove anos.
Um ciclo infinito de dores, empurrões e calores. Há algumas ruas dali, os servidores públicos, eleitos pelos passageiros da caixa de fósforos ambulante para cargos de governo e comando, estão sentados confortavelmente em uma poltrona giratória, gritando para outros ratos-vermes-búfalos apressarem o último relatório com as intenções de voto, ou cuspindo em cima da cara de escritores fantasmas, entidades formadas em Jornalismo e que, assim como eu, gastam horas, noites, convívios e copos de café para escreverem textos sensíveis, muitos deles aplaudidos, e que serão assinados pelos esmagadores de poltronas giratórias.
“Toda essa merda é justa, hein?”, era a única queixa que meus pensamentos sabiam expressar nos últimos tempos, enquanto os olhos permaneciam vidrados na falta de espaço, no atordoamento. Pessoas empilhadas como gado morto, sem distinção, sem número, sem fala. No meio de tudo isso, uma mulher segurava uma criança nos braços. A cabeça da pequena estava escorregando para o lado onde as pessoas transitavam, desacordada, com as pálpebras fechadas, saliva escorrendo pela boca que mais parecia um buraquinho imperceptível, e os braços jogados, desfalecidos. Dormia completamente indiferente a tudo o que estava acontecendo ali; com os olhos fechados, não percebia a confusão, o nariz não poderia discernir odores e a temperatura abafada não tinha poderes para lhe afetar, evitando assim um choro convulsivo. Não consegui desviar o campo de visão daquela imagem, daquela mãe que, como tantas outras, são pietás anônimas, não retratadas, mas nem por isso são inexistentes. Pelo contrário: ali estão elas, camufladas em caixas de fósforos ambulantes, recolhidas feito palitos queimados cuja única esperança é a pontinha ainda imaculada pelo fogo, esse elemento voraz, que ao mesmo tempo revive e mata, exercendo bem a função que lhe foi atribuída para manter o título de “partícula evolutiva da humanidade”. O fogo, mais um dos paradoxos sociais.
Fechei os olhos diante de tantas imagens que desciam dentro da minha mente em formato de cascata e retornei para o assovio lento, doce, gelado, que embalava meus sonhos e minha viagem ao litoral. Tal qual a criança dos braços da pietá, fugi para longe dali e fui parar no banco confortável, silencioso, na madrugada alta. Lembranças que se perdem em meio aos devaneios, última tentativa de escapar da realidade, antes que ela dê por falta e me abocanhe de novo. Um assovio distante, distante, distante…
– Ei, moça, acorda, vamos, acorda aí! Moça, acorda, acorda, parada final -, grita o motorista.
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