A escritora Eliana Alves Cruz lança hoje, 23, às 17 horas, na Livraria da Travessa, loja Sete de Setembro, o romance histórico Água de Barrela, pela Editora Malê. O romance conta a saga da família da autora desde sua origem, na África, até as relações constituídas no Brasil do século XX.
A publicação foi a vencedora, em 2015, da única edição do Prêmio Oliveira Silveira, oferecido pelo Ministério da Cultura, por meio da Fundação Palmares, com o objetivo de incentivar produções literárias que valorizassem e dessem visibilidade às manifestações culturais da população afro-brasileira.
Carioca, escritora e jornalista, Eliana Alves Cruz vem se destacando pelo seu projeto literário decolonial. Participou da coletânea “Perdidas, histórias para crianças que não tem vez”, da Imã Editorial, e em maio de 2018, lançou o romance histórico policial O crime do Cais do Valongo pela Editora Malê. Confira a entrevista com a autora:
Como se deu sua escolha por seguir um trabalho voltado para o romance histórico?
Foi bastante intuitiva a partir da pesquisa para o meu primeiro romance, Água de barrela, pois da necessidade de estudar a história do país, exercitando o olhar descolonizado, para falar da trajetória daquelas pessoas subalternizadas, mas da perspectiva delas, me vi diante de um mundo de informações muito pouco explorado na literatura nacional no que tange a escrita dos afrodescendentes.
Quais romances históricos foram importantes na sua formação como leitora e escritora?
Na adolescência li bastantes livros de Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márques, Jorge Amado… Eu queria ter uma escrita fluída como a deles. Queria saber prender o leitor daquela forma, mas trazendo outras informações que eu sentia falta na nossa literatura. Eu não via a história dos meus nela e sigo vendo muito pouco. Naquela fase eu buscava algo que ainda não sabia o que era e topei com os americanos Alex Heley, do famoso ‘Roots’ (Raízes) e Alice Walker, de ‘A cor púrpura’. Mais tarde, já na faculdade de comunicação, li Things Fall Apart, do nigeriano Chinua Achebe, e aí entendi muitas coisas. Essa mistura toda e outros tantos me fizeram desejar produzir histórias a partir da nossa história, de pessoas que são fruto da diáspora africana.
Como a Biblioo é uma revista lida por bibliotecários, mediadores da leitura e profissionais da informação, sempre faço esta pergunta. Quais as primeiras leituras que foram essenciais para você? Na sua escola, ou casa, tinha biblioteca? Tem alguma lembrança positiva deste espaço?
Sim! Meus pais sempre valorizaram muito os livros e a leitura. Em função de algum grau de dislexia, na infância eu tinha dificuldade em me concentrar para ler. Minha visão embaralhava e minha mãe lia para mim os inescapáveis, para uma criança da minha geração, clássicos do Monteiro Lobato. Engraçado é que ela, ao ler as histórias para nós, ia se dando conta do conteúdo complicado que existia ali e foi nos apresentando outras coisas, mas tirando este fato, aquelas leituras mediadas por ela foram muito importantes. Aguçaram a imaginação. Meu pai tinha bibliotecas como espaços sagrados e, dentro de nossas posses, tentou nos legar uma. Lembro que ele sempre adorou poesia e curtia Augusto dos Anjos. Ele interpretava aqueles poemas com toda paixão. Eu os achava soturnos e dramáticos (risos), mas hoje obviamente vejo o tanto de beleza que existe naquela escrita.
O seu primeiro romance, Água de Barrela, venceu o prêmio Oliveira Silveira, da Fundação Palmares e apenas agora terá pela Malê sua edição comercial. Como você vê as políticas públicas para a promoção de uma literatura de autoria negra e de temáticas ligadas a cultura e história afro-brasileira e africana?
Talvez eu ainda não existisse como escritora publicada se não fosse este concurso. O mercado editorial no Brasil é já um terreno difícil para quem está na estrada há muito tempo e que está no que se acostumou convencionar como padrão, quanto mais para uma mulher negra que nunca publicou antes e que já chega com um conteúdo tão pouco consumido no país, ou seja, um romance histórico baseado na trajetória real de uma família que foi escravizada, abarcando mais de 170 anos de história, em mais de 400 páginas. Segundo as pesquisas sobre escritores no país nós, as brasileiras negras romancistas que publicaram, somos tão poucas que é possível contar nos dedos. Em um cenário excludente destes, políticas públicas são uma necessidade vital para que a literatura nacional possa ter também a nossa voz. É um direito. É preciso muito mais!
Você e escritoras como Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves e Miriam Alves formam o reduzido grupo de escritoras negras que publicam romances. Podemos pensar em alguns motivos para que este número seja reduzido…
O mercado editorial não é nada animador para nós e talvez muita gente talentosa desista de se debruçar sobre uma narrativa mais extensa, que vai demandar um tempo, pesquisa e maturação da história, ao pensar que todo esse esforço pode jamais sair da gaveta.
Em Água de Barrela, você conta a história da sua família. Poderia contar um pouquinho sobre o livro, como surgiu a ideia de escrevê-lo e se ocorreu alguma grande surpresa revelada pela pesquisa que você realizou?
Olha, eu poderia escrever um “livro sobre a feitura do livro” (risos). Como sempre costumo contar, ele é o sonho realizado de uma vida inteira convivendo com boa parte daqueles personagens. Acho que minha vida é antes e depois dele porque ao pesquisar a fundo a história do país e a história das pessoas (as negras e as brancas) que gravitavam naquele universo, eu me compreendi totalmente. A minha pesquisa revelou uma família enorme que eu não sabia que existia, uma ligação ancestral religiosa, revelou minhas origens quilombolas, visto que a área onde uma das minhas antepassadas foi viver é território de quilombo e, principalmente, revelou que a sabedoria daquelas mulheres era tanta que montaram uma estratégia para acessar o conhecimento do colonizador, necessário para conseguir ascender no país que até hoje é eurocêntrico e pouco afeito a olhar suas outras raízes, mas sem perder o vínculo com a essência de onde viemos. A prova maior é que temos até hoje um fio de contas que pertenceu a pessoas que pisaram aqui neste continente pela primeira vez vindas da África. Algo muito poderoso e simbólico.
Em o Crime do Cais do Valongo, romance lançado em maio deste ano, você apresenta um período que é importantíssimo para entendermos a formação da cultura brasileira. Como surgiu a ideia de escrever o livro?
A ideia surgiu a partir do meu desconhecimento sobre uma parte da África, que pouco falamos e sobre o pouco conhecimento da história do Valongo. Desde que os primeiros achados na região surgiram eu me interessei e comecei a pesquisar. Um objeto encontrado, um brinco em formado de quarto crescente, me levou a querer saber sobre Moçambique e aí começou o romance. Durante a escrita me dei conta que quase ninguém no Rio de Janeiro sabia da história que cerca aquele lugar e, ,muito menos ainda sobre a África Oriental, embora esta história esteja toda no nosso DNA. Vi que era urgente trazer isso tudo para a literatura. Na verdade, me espanta que apenas em 2018 alguém tenha se debruçado mais a fundo nisso tudo fora do mundo acadêmico para escrever um romance. E isto por si só fala muito sobre nós, sobre o apagamento da nossa história.
“A história da escravidão, por exemplo, também não é uma história única. O que acontecia nas charqueadas não era o mesmo que ocorria nas minas de ouro, que por sua vez distinguiam das plantations. O único traço comum era a violência física e simbólica mais absoluta, perpetuada por quase quatro séculos, e isso explica porque naturalizamos a tortura.”
Quando penso no Brasil, vejo uma crise de espelhamentos. As ideias que foram formuladas para a nação de democracia racial são contraditas pela realidade, de uma sociedade bastante violenta de diversas formas. Em que a literatura contribuiu para a manutenção destas ideias tão distantes da realidade? Como seu trabalho se situa neste aspecto de uma literatura que tenta representar a identidade cultural do país?
Esta pergunta é complexa. Creio que o país constrói há muitos anos uma imagem para si mesmo que está muito longe da realidade. A literatura está imersa nisso, ou seja, nesse falso espelho. A tendência que temos em colocar o continente africano como um bloco único, não respeitando as particularidades das 54 nações e mais de duas mil línguas que lá estão, é a mesma que temos aqui de não conferir ao Brasil um caráter plural. A literatura contribui negativamente para isto quando reflete uma história única, no caso, a dos homens, heterossexuais, brancos, universitários… Quando Jorge Amado, por exemplo, descreve Gabriela, ele a descreve deste lugar. Para complementar, temos o audiovisual, principalmente a TV, com suas novelas e publicidade, reproduzindo o que se convencionou ser o padrão. A história da escravidão, por exemplo, também não é uma história única. O que acontecia nas charqueadas não era o mesmo que ocorria nas minas de ouro, que por sua vez distinguiam das plantations. O único traço comum era a violência física e simbólica mais absoluta perpetuada por quase quatro séculos e isso explica porque naturalizamos a tortura.
Pensando no romance O crime do Cais do Valongo. Como você vê as lutas do movimento negro por reparação? De que formas o governo pode reparar este crime?
Como diz o ditado popular: Muito ajuda quem não atrapalha. Neste caso, o governo poderia acelerar este processo reconhecendo o fosso enorme que separa as famílias negras em sua maioria de uma elite que teve acesso a tudo desde o princípio. A escravidão cometeu graves crimes, por exemplo, contra a nossa infância e adolescência. Criar políticas públicas que abram as perspectivas de acesso à educação e saúde de qualidade para as crianças e jovens é começar a reparar um crime que torna toda a sociedade brasileira eternamente prisioneira dela mesma.
Quais são seus próximos projetos literários?
Estou pensando em muitos projetos. Dois estão relacionados com os dois livros que já escrevi, mas abordando outros aspectos. Um vai falar da primeira geração de trabalhadores negros assalariados e o outro tem a homossexualidade no centro da trama, visto que li bastante sobre essa questão no Brasil colônia para compor o personagem Marianno, em O crime do Cais do Valongo. Penso também em fazer uma coleção de livros infantis.
Serviço:
Evento: Lançamento do livro Água de Barrela, de Eliana Alves Cruz
Data: 23/11
Horário: 17 horas.
Local: Livraria da Travessa, loja Sete de Setembro. Rua Sete de Setembro, 54 – Centro, Rio de Janeiro – RJ.
O romance se passa na cidade baiana de Cachoeira e os personagens principais são um menino e uma menina negra, embarcados como escravos no Século XIX, da África para o Brasil. A história vai atravessando as décadas até os dias de hoje, tendo como pano de fundo momentos históricos. O processo para elaboração do livro se iniciou quando a autora decidiu registrar as histórias de sua tia avó, que demonstravam a existência de uma forte convivência entre uma família de abastados, a família da autora, a Princesa Isabel e Dom Pedro II. Após o registro, Eliana pesquisou com historiadores baianos e em documentos a veracidade dos fatos narrados e, a partir deles, criou o romance. Água de Barrela é o nome dado a um tipo de alvejante para clarear roupas e no livro está relacionado ao trabalho de muitas mulheres negras, de diferentes gerações, responsáveis por lavar, passar, enxaguar e quarar as roupas das patroas e sinhás, como um modo de sobrevivência, em situações como as de exploração, de miséria e de escravidão.
Autora: Eliana Alves Cruz
Assunto: Romance Afro-brasileiro
ISBN: 9788592736408
Idioma: Português
Páginas: 320
Ano de edição: 2018
Edição: 1ª
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