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Em ações diferentes, Ecad é contra e a favor de intervenção do Estado

Por O Globo

Em novembro de 2013, o Ecad e sete associações que compõem a entidade deram entrada no Supremo Tribunal Federal com duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) para questionar a Lei 12.853. Aprovada naquele mesmo ano, a legislação trata justamente da gestão coletiva de direitos autorais no Brasil, tarefa para a qual o Ecad, uma entidade privada sem fins lucrativos, foi criado em 1973. Entre as mudanças instauradas pela lei, a principal delas e talvez a mais criticada pelas ADIs de 2013 foi dar ao Estado — na prática, ao Ministério da Cultura (MinC) — a atribuição de supervisionar e regular as atividades do Ecad. Segundo as ações, seria uma intervenção pública em direitos privados, o que iria de encontro à livre iniciativa, à livre concorrência e à propriedade privada.

Esse entendimento, contudo, não serviu para guiar as decisões do próprio Ecad numa assembleia realizada em 27 de janeiro, no hotel Windsor, em Copacabana. Com a participação de representantes de suas oito associações, o órgão decidiu levar ao MinC o caso da Azul Music, uma gravadora independente fundada em 1993, com sede em São Paulo, que estaria realizando gestão coletiva de direitos de execução pública musical, o que a tornaria uma espécie de concorrente do modelo do Ecad. A argumentação é que esse tipo de atividade é permitida apenas a associações sem fins lucrativos e não a empresas como a Azul. Em março, enfim, uma representação de sete páginas foi entregue pelo Ecad ao Ministério da Cultura contra a Azul. Pedindo a intervenção do Estado.

Por conta das ações no Supremo, o Ecad disse que não comentaria nem a disputa com a Azul nem suas críticas à lei. Da mesma forma, dirigentes de associações procurados pelo GLOBO preferiram não se manifestar. Mas esperam-se desdobramentos para esta quinta-feira, data marcada pelo STF para o julgamento das ADIs. O relator é o ministro Luiz Fux, e uma peregrinação de advogados e artistas é aguardada em Brasília. A Lei 12.853 surgiu em decorrência da CPI do Ecad, aberta em 2011 depois de denúncias sobre os repasses de direitos autorais no Brasil: o crime mais emblemático revelado foi o desvio de quase R$ 130 mil, por trilhas sonoras compostas por nomes como Sérgio Ricardo e Caetano Veloso.

PROCESSO EM ANÁLISE

Além da supervisão do MinC, a legislação impôs limites à taxa de administração cobrada pelas associações, obrigou a abertura dos bancos de dados sobre as obras e determinou que fosse feito um cadastro único e público para evitar fraudes e duplicidades.

— Alguns pontos da lei podem até ser revistos, mas sua anulação seria um retrocesso. Em reuniões, pedi que as ADIs fossem retiradas, mas fui voto vencido — afirma Dudu Falcão, compositor e diretor da Abramus, associação que solicitou a discussão sobre a Azul na assembleia do Ecad. — Eu estava na assembleia, e é verdade que o Ecad pediu ao MinC orientação no caso da Azul Music. O Ecad deve ser um executor e não um legislador. É para garantir uma atuação mais forte por parte das associações, estimulando mais transparência e eficácia na distribuição de recursos, que a lei foi criada colocando no MinC uma mesa de mediação de conflitos.

A Diretoria de Direitos Intelectuais do MinC confirma que recebeu do Ecad um documento tratando da Azul, mas este ainda estaria em análise. A disputa se refere ao Music Delivery, um serviço criado pela Azul para oferecer música ambiente para estabelecimentos comerciais sem o pagamento das taxas de execução pública cobradas pelo Ecad. A gravadora foi procurada pelo ministério para esclarecimentos no início de abril. Seu argumento é que informou o próprio Ecad e recebeu autorização dos titulares das músicas que utiliza.

— Conforme a Lei 9.610/98, os direitos de autor podem ser total ou parcialmente transferidos a terceiros. Ou seja, o Music Delivery jamais pretendeu exercer o papel da gestão coletiva dos direitos autorais, competência essa que é exclusivamente das sociedades autorais, estas sim, mandatárias dos titulares — afirma o compositor e pianista Corciolli, fundador da Azul. — A solicitação do Ecad é no mínimo equivocada, uma vez que ele mesmo tem validado a documentação que enviamos para análise, conforme a determinação dos titulares e da própria lei. Se pretendêssemos exercer a gestão coletiva de direitos, não precisaríamos dessa validação.

“É UMA IRONIA”

Corciolli acrescenta ainda que “fica muito difícil conferir qualquer credibilidade a uma entidade que é objeto de incontáveis processos na Justiça, uma CPI e denúncias rotineiras de falta de transparência”:

— O Ecad não encontrou argumento plausível que pudesse colocar à prova nossa legitimidade e, em última instância, recorreu ao MinC, solapando importantes aspectos da lei. Ora, nesse julgamento em curso no STF é que se evidencia a absoluta contradição do Ecad, pois alegam a inconstitucionalidade da tutela do Estado. É uma ironia.

A constitucionalidade da Lei 12.853 não é um único debate travado atualmente sobre o tema no Brasil. O MinC manteve aberta até o fim de março uma consulta pública sobre regras para direitos autorais no ambiente digital — o ministério defende que sites como Spotify e YouTube atuam no modelo de execução pública de música, portanto deveriam pagar ao Ecad. A previsão do governo seria apresentar um relatório em maio para, depois, publicar uma Instrução Normativa (IN) sobre a atividade. Mas, como a IN seria decorrente de regras postas pela Lei 12.853, o MinC aguarda agora a decisão do STF para dar continuidade ao processo.

— O ministério prefere não se manifestar a respeito do julgamento das ADIs no STF. Mas temos confiança de que a lei será declarada constitucional — afirma Marcos Souza, diretor de Direitos Intelectuais do MinC.

Caso a lei de gestão coletiva seja derrubada pelo STF, será a maior derrota do governo em relação ao direito autoral. Desde pelo menos 2010, debate-se um projeto de reforma da Lei de Direito Autoral no Brasil, datada de 1998. É uma das principais bandeiras do ministro Juca Ferreira, que ocupou a pasta nos últimos anos do governo Lula e voltou na segunda gestão de Dilma Rousseff. Mas nunca houve consenso para que ele fosse enviado ao Congresso. A aprovação da Lei 12.853 foi, portanto, a grande vitória do governo sobre o tema.

— O instrumento foi tão importante que grandes usuários, antes inadimplentes, resolveram quitar suas dívidas com o Ecad por sentir segurança jurídica. Por outro lado, dirigentes históricos deixaram seus postos em associações do Ecad, com receio de terem seu patrimônio implicado pelas falhas de gestão cometidas — avalia Daniel Campello Queiroz, advogado que representa artistas como Zeca Pagodinho e que vai a Brasília acompanhar o julgamento.

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