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Desafio dos dez anos: do cárcere à advocacia com ajuda da leitura

Apesar das grandes dificuldades, Greg Andrade conseguiu estudar e se tornar advogado criminal. Foto: aquivo pessoal

Além de serem conterrâneos de Minas Gerais, outros elementos ligam de forma dramática as histórias de Greg Andrade e Adriana Paula que, por inconsequência ou infortúnios da vida, tiveram de amargar a vida do cárcere. Ambos cumpriram longas penas e, contrariando a lógica, conseguiram estudar, se formar, retornando ao convívio familiar, bem como ao mercado de trabalho. Além de amigos, ambos são advogados e atuam na área criminal.

Em 1988 Greg, então com 22 anos, era um jovem inconsequente que acabou cometendo um homicídio, ato do qual ele se arrepende todos os dias. O crime resultou numa condenação de dezesseis anos e cinco meses. Involuntariamente envolvido em um roubo de armas enquanto um grupo de presos fugia da delegacia onde estava custodiado, ele viu sua pena saltar para vinte anos e onze meses, dos quais nove seriam cumpridos em regime fechado.

Para cumprir sua pena, Greg passou por quase todos os presídios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. A realidade que encontrava na maioria deste lugares era invariavelmente o mesmo: superlotação, condições insalubres, consumo de drogas, corrupção, violência etc. Em termos de condições de ressocialização o cenário era tão ou mais desanimador. Na maioria dos estabelecimentos prisionais pelos quais passou Greg sequer encontrava livros para ler.

Embora a Lei de Execução Penal (nº 7.210/1984) preveja a educação escolar no sistema prisional, apenas 12% da população carcerária no Brasil está envolvida em algum tipo de atividade educacional, incluídas aqui aquelas as de ensino escolar e as atividades complementares, conforme os dados do último Infopen, que é o Levantamento de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça e Segurança Pública, atualizado pela última vez em 2016.

Após grandes dificuldades, Greg se formou em direito e hoje tem seu próprio escritório. Foto: arquivo pessoal

Para piorar a situação, no final de 2017 o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão do também Ministério da Justiça e Segurança Pública, alterou a resolução nº 9, de 2011, que estabelecia regras para a elaboração de projetos, construção, reforma e ampliação de unidades penais no Brasil, acabando com a obrigatoriedade de criação de espaços de educação e trabalho em presídios.

Dentre as atividades complementares de educação nos presídios está previsto, entre outras, a remição de pena pela leitura. Só que o Infopen revela que apenas 2% da população prisional total do país encontra-se envolvida neste tipo de atividade, o que inviabiliza não só a aceleração do cumprimento de pena por parte de muitos apenados, o que poderia ajudar a desafogar o sistema carcerário brasileiro, hoje em estado de colapso com uma população de mais de 700 mil presos, mas o próprio processo de ressocialização destas pessoas.

No caso de Greg, que tinha só a 4ª do ensino fundamental quando foi preso, as condições para a continuação dos estudos tiveram de ser criadas por ele mesmo que, assim como a maioria absoluta dos apenados no Brasil, buscou livros e bibliotecas nas instituições prisionais pelas quais passou, embora a maioria delas não oferecessem este tipo de instrumentos. “Se eu estudei não foi pelo estado, mas apesar do estado”, diz.

“A maioria das pessoas que estão no sistema prisional sequer foram incluídos em algo, quicar educação. O único jeito que o estado encontrou para chegar até essas pessoas foi o braço armado e a Justiça que condena. O braço saúde, educação e cultura não chegou para essas pessoas. Então falar de recuperação do apenado é um pouco de hipocrisia. Obviamente que tem a questão do livre arbítrio, mas este fica prejudicado quando a gente não oferece as oportunidades reais”, defende.

Em um dos estabelecimentos prisionais em que ficou preso, havia quarentas homens num espaço 4m x 4m, com um buraco que servia de sanitário. “Eu não sou inocente, nunca fui. Mas, por mais que você tenha uma pena pra pagar, remir, eu acho que a dignidade da pessoa humana está à frente de qualquer coisa, sob pena de nos tornarmos as pessoas que entendemos que não são adequadas à sociedade”, pondera.

Esta dificuldade nas condições de cumprimento da pena levam Greg a questionar a própria possibilidade de ressocialização. “Essa questão da ressocialização é uma grande falácia do nosso direito. Na verdade o que eles, a sociedade e as instituições, querem é só punir, punir e se puder matar, mata. Se para o homem livre já é difícil estudar, imagine para o preso”, desabafa ele.

Mas apesar de todas as dificuldades encontradas, Greg conseguiu não só ingressar e concluir a faculdade de direito, como foi aprovado na temida prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e hoje atual na área criminal. No desafio dos dez anos que se popularizou recentemente na internet, o agora advogado postou no Facebook uma foto de 2009 em que aprece estudando em uma sala de aula no presídio e outra em 2019 em que pousa em seu escritório.

“Atuo na Pastoral Carcerária porque ainda acredito no bem, ainda tenho fé! E pessoas assim causam aquela sensação de borboleta no estômago, aquela lágrima solitária que escorre sem querer… Enquanto existem exemplos assim, não desisto de fazer o melhor pelo próximo!”, comentou Patricia Brukmuller. “Deixo aqui meus sinceros cumprimentos e essa é a prova que todo ser humano merece ser tratado com dignidade e ter chances de se desenvolver. A educação liberta”, disse Dan Sant’Ana.

Uma outra história de superação

A exemplo de Greg, Adriana Paula (que prefere não mostrar o rosto) viu sua vida transformada pela educação após enfrentar um pesadelo no cárcere. Em 2008 ela fora condenada a 22 anos de prisão por tráfico de drogas e associação para o tráfico, pena que caiu para oito anos após recursos à segunda instância. Na época ela tinha 35 anos de idade, um bebê de dois anos e estava grávida de seis meses do seu segundo filho.

À época dos fatos, seu marido e pai dos meus filhos era um empresário que estava deslanchando na construção civil. Mas com uma condenação já cumprida por tráfico de drogas ele enfrentava dificuldades nos negócios para ser aceito pela sociedade. O resultado foi que as portas começaram a se fechar para ele, suas dividas aumentaram e os seus empregados começaram a passar dificuldades.

“A tão sonhada ressocialização não aconteceu para ele que me arrastou. Nunca trafiquei, tampouco experimentei ou usei drogas, mas usufrui de um dinheiro ilícito. E em uma abordagem, após uma denúncia, fomos presos, em ação policial fantasiosa, onde apreenderam sem testemunhas, certa quantidade de drogas. Enfim, fui condenada, afastada bruscamente do meu pequeno filho e tive meu outro filho no cárcere”, conta.

O episódio da prisão e posterior condenação marcou a vida de Adriana, o que a fez querer mudar sua história. O primeiro passo foi redigir ofícios à Justiça, mesmo sem muito embasamento, na tentativa de rever a pena para a qual tinha sido condenada. O problema é que muitos destes documentos eram censurados e outros sequer chegavam a ser enviados às autoridades, frustrando as pretensões da agora presidiaria.

“Comecei usando os termos que conhecia, palavras simples, usadas no dia a dia. Não tinha nenhum conhecimento jurídico, mas quando se entra para prisão, conhecemos pessoas que estão no sistema prisional há mais tempo.  E na falta do que fazer – sim, não há o que se fazer -, comecei a ler as sentenças, as intimações e citações que chegavam para as outras e escrevia cartas como se ofícios fossem. Eu solicitava benefícios, tais como liberdade provisória, progressão de regimes, mas sem qualquer termo técnico ou jurídico. Com o passar do tempo, consegui alguns livros de direito, o vade mecum e até mesmo com as sentenças que chegavam eu peticionava”, relembra.

Adriana deu a volta por cima, tornou-se advogada, mas ainda tem receios de mostrar o rosto. Foto: arquivo pessoal

Com este esforço, Adriana conseguiu ajudar colegas sua também encarceradas, possibilitando que algumas fossem embora com benefícios de liberdade provisória ou mesmo sendo absolvidas. Só que esta mobilização lhe custou caro. Acusada de subverter a ordem da instituição, o Centro de Referência à Gestantes Privadas de Liberdade, em Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), primeira e única unidade prisional exclusiva para mulheres grávidas e lactantes do país, ela foi afastada do seu bebê bruscamente.

“Certa vez pedi a ajuda de uma visita importante que havia ido lá no Centro de Referência à Gestantes Privadas de Liberdade, entreguei a ela uma carta em nome de todas, denunciando o descaso com as mães e os bebês. Para minha surpresa, ao invés de ajudar, ela entregou minha carta para a diretora. No outro dia meu filho foi arrancado dos meus braços logo após a janta. Foi o pior dia da minha vida”, recorda.

No Centro de Referência à Gestantes Privadas de Liberdade, inaugurada em 2009, as detentas podem ficar com bebês de até um ano. Após o primeiro aniversário da criança, a mãe é transferida para uma prisão comum (caso não tenha progressão ou término de pena) e é separada do filho. A unidade de Vespasiano é a única no país onde as crianças ficam até um ano. Nas demais, o limite costuma ser de seis meses de vida, conforme mostra uma reportagem do UOL.

O afastamento do filho quase a derrubou, mas ela não parou. “Ao contrário, me deu mais força para lutar contra as injustiças e por minha liberdade e das outras que estavam comigo”, explica. Uma das principais dificuldades no processo de ressocialização enfrentada por ela foi o fato de que no presidio não havia biblioteca, tão pouco uma escola. Assim Adriana passou a contar com a ajuda de alguns agentes, raramente da assistente social, e com  frequência o pessoal das igrejas, que lhe levavam livros.

Então Adriana começou a estudar, lendo todo tipo de livro que lhes chegavam às mãos. Cumpriu quase cinco anos no regime fechado, passando ao regime semiaberto, quando saia para trabalhar pela manhã e voltava à noite para o albergue, na verdade, uma cela de delegacia local, ainda longe de seus filhos e família que estavam em uma outra cidade.

“Saia para ‘trabalhar’ às 7h da manhã e retornava as 18h. ‘Trabalhar’ era uma exigência do Juiz da execução e, claro, da lei. Mas não tinha trabalho, estava estigmatizada, não conhecia ninguém na cidade. E quem daria emprego a uma estranha, cumprindo pena e sem residência, uma referência?” lamenta ela que, depois de muita procura, conseguiu um emprego de vendedora de plano funerário, sem carteira assinada, sem remuneração, apenas para cumprir a determinação judicial.

Ainda no cumprimento da primeira parte do semiaberto em Ouro Branco (MG), ela conheceu a biblioteca pública local onde começou a ler e estudar intensivamente, de quatro a cinco horas por dia, e não parou de escrever e oficiar em seu processo. Foi quando, com insistência e persistência, finalmente conseguiu uma transferência para o Presidio de Vespasiano, onde ficou mais próxima da sua família. “[Na biblioteca] encontrei uma pessoa, praticamente um anjo em minha vida, ela me dava almoço todos os dias e me deu uma coberta, lá é muito frio, me deu roupa de cama, eu não tinha ninguém na cidade”, relembra com carinho.

Aprovada em 2013 no vestibular para direito, passou a peticionar no intuito de garantir sua frequência na faculdade, de onde sairia formada em 2018. “No oitavo período já havia passado na tão famigerada prova da OAB. No ano que formei, logo após a conclusão do curso, passado os trâmites burocráticos, comecei a exercer a profissão de advogada, e claro, atuo com afinco e determinação na seara criminal. Luto pela liberdade, contra as injustiças, pelos direitos humanos e principalmente contra os abusos proferidos por aqueles que teriam o dever de zelar”, orgulha-se.

Sobre o preconceito e a discriminação, Adriana diz que ainda os sente na pele, embora hoje entre pela porta da frente, “onde um dia entrei pela porta do fundo, grávida, humilhada, sem rumo”. “A sociedade e, em especial, o meio policial não estão preparados para enfrentarem egressos do sistema prisional que deram a volta por cima. Sempre sou olhada como suspeita”, observa a hoje advogada Adriana Paula já com a pena integralmente cumprida.

“Certa feita, após uma visita a um cliente no parlatório, o mesmo foi surpreendido com uma pequena porção de maconha, e adivinha? Fui prestar esclarecimentos na delegacia, por suspeita de ter levado a droga e, para minha surpresa, no inquérito haviam fotos minha (aquelas tiradas no presidio e Infopen), e o que me chocou é que nesse mesmo dia houve atendimentos simultâneos, com outros advogados e outros presos. Ou seja, mais uma vez eu fui julgada pelo passado”, lamenta.

Ela explica que após esse ocorrido, passou a ser “monitorada” em seus atendimentos jurídicos nesse presídio. “E não pararam por aí, houve uma operação por escuta telefônica, o pai dos meus filhos estava preso nesse presídio e foi denunciado nesse processo e a única advogada que envolveram fui eu, dentre todos os outros advogados e presos mencionados nas gravações telefônicas”, denuncia.

“A sociedade está pronta para lidar com egressos do sistema prisional, ocupando um espaço, uma profissão de destaque?”, questiona. “Entretanto, eu, assim como outros egressos que buscaram seu lugar ao sol, estamos mostrando a que viemos. Luto por um mundo melhor para meus filhos, onde o ‘pré-conceito’ não reine. Quero ser exemplo para eles e principalmente quero mostrar que é possível a volta por cima, é possível a ressocialização após o cárcere por meio dos estudos, por meio da escrita, da educação”, garante.

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