O agradável endereço da Livraria Cultura, no centro do Rio, já não existe mais. Do lado de fora, há apenas entulhos, caixas, pedaços de objetos não identificados (por mim, pelo menos)… Em suma, lixo. No meio dos detritos, dois ou três moradores de rua encostam seus pertences e dormem. Seres humanos, como eu e você, dormindo em meio ao descartável.

Antes da Livraria Cultura assumir o prédio, o local abrigou o Cine Vitória, uma das salas de cinema ricamente frequentadas na região da Cinelândia. Durante as décadas de 1940 e 1950, era comum ver um público “classudo” e elegante nas arrojadas salas do Vitória, anunciado nos jornais e revistas da época como um cinema novo e amplo.

A inauguração do cinema aconteceu em 1942 com a exibição do filme “O Grande Ditador”, uma comédia repleta de sátira de Charles Chaplin. Em  1966, as telas do Vitória exibiram “Doutor Jivago”, de David Lean.

Os anos foram se passando e a sina de muitos cinemas tradicionais do país, soterrados pelos novos ventos, atingiu o Cine Vitória: ele passou a exibir filmes pornôs e entrar em profunda decadência. O mesmo aconteceu com o Cine Rex, tradicional cinema de Teresina.

Abandonado à própria sorte, o cinema que fez os meus olhos brilharem em meados da década de 1990 ao exibir “As Tartarugas Ninja” e “Jurassic Park” está esquecido e maltrapilhado. Da última vez que tive notícias do Cine Rex, ele estava entregue à sujeira e ao esquecimento, exibindo filmes pornôs.

Em 1993, depois de fechado, o carioca Vitória virou um estacionamento e uma espécie de abrigo improvisado para pessoas em situação de vulnerabilidade. No ano de 2012, após um grande período de reforma, foi inaugurada a Livraria Cultura. Quem teve a chance de conhecer o local sabe que era realmente lindo! Que regozijo entrar naquela espaço amplo, repleto de escadas e prateleiras, observando as opções editorais disponíveis e conhecendo outras…

Tendo contato com edições em vários idiomas, percorrendo seções diferentes e, quando havia tempo ou disponibilidade para se gastar valores cobrados em aeroportos, tomar um cappuccino com uma fatia de torta doce. Havia um teatro e, já nos últimos suspiros, um espaço reservado para coworking.

Mas tudo isso ficou no passado. No final de outubro, a Livraria Cultura entrou com pedido de recuperação judicial. Foi aceito. As dívidas chegam a R$ 285,4 milhões, a maior parte delas feita com fornecedores e bancos. O grupo alegou que a forte crise no mercado editorial, com o encolhimento de 40%  no setor desde 2014, ajudou a fechar as cortinas.

A Livraria Cultura ocupava o prédio do antigo Cine Vitória. Foto: Blog Mari Assmann

Outro dinossauro do mercado livreiro no Brasil está andando na corda bamba. A Livraria Saraiva anunciou recentemente que vai fechar lojas (aproximadamente 20) e redirecionar a oferta de outros produtos para o e-commerce (setor de tecnologia, por exemplo).

Essa desidratação vem acontecendo no mercado editorial há algum tempo, com o fechamento de editoras e livrarias (editora Cosac Naify e livrarias Van Damme, em Belo Horizonte, e Valer, em Manaus, só para citar).

Sem medo de ser piegas, dá um aperto no espírito quando percebo o esfacelamento cultural acontecendo a passos largos e irrefreáveis. Para tornar a situação ainda mais pantanosa, o presidente eleito para o mandato de 2019 – 2022 já verbalizou a intenção de acabar com o Ministério da Cultura, transformando-o em uma secretária do MEC.

Além do fosso econômico e político, há também o desinteresse do público brasileiro pela leitura. Em pesquisa apresentada pelo IPL em 2016, foi possível constatar que 44% da população do país não lê livro algum. É ainda mais desanimador o relatório emitido pelo Banco Mundial em fevereiro deste ano, que estima que o Brasil vai levar 260 anos para atingir o nível de leitura de países desenvolvidos.

Com uma situação política completamente desfavorável ao conhecimento – os próximos 4 anos profetizam isso em voz alta -, a insistência dos insistentes (desculpem a redundância) deve ser inabalável para driblar uma situação tenebrosa como essa. Daqui para a frente, as portas do livre conhecimento, da troca de saberes sem censores, das artes e da cultura – quiçá da ciência – estarão bloqueadas no Brasil. Lembrando que há várias formas de censurar a difusão do pensamento. Não é necessário ter um militar de farda e coturno dentro de uma sala de aula, por exemplo, para concretizar a censura.

E se você é do tipo que diz “aceita que dói menos” (como já li exaustivamente em comentários deixados nessa terra “godless” que é a internet), pode ficar tranquilo. Seus gibizinhos e sua programação mental continuaram os mesmos, sem prejuízo. O declínio da cultura é a visão de um futuro onde reinam sapos e moscas.

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