Alguns livros e autores são traduções de seu tempo. Algumas vezes, eles ficam escondidos ou não são reconhecidos em um momento imediato. Mas o tempo, senhor dos destinos e criador de nossas histórias, tem provado que seu dedo em riste ainda é um divisor de águas na compreensão do homem sobre si mesmo. E é com enorme alegria que leio e releio as obras do saudoso jornalista Daniel Piza, um homem que provou ser feito de essências, e não de instantaneidades. Tive o prazer de conhecê-lo e registrar esse momento tão especial, assim como tenho tido o vigor renovado em ter suas publicações.
“Noites Urbanas” (editora Bertrand Brasil, pág. 176), é o décimo sétimo livro de Daniel em uma carreira de quase vinte anos. A obra traz 28 contos que têm como plano de fundo a cidade de São Paulo e a relação conflituosa que os paulistanos de fato e os de coração nutrem pela cidade. Em meio ao caos do trânsito, poluição, correria, falta de educação, indiferença e frieza, milhares de luzes criativas, sonhos que ainda não se perderam, lembranças, impressões e reflexões para o futuro. Das 28 histórias, 10 são contos inéditos (em sua maioria) e 18 são minicontos publicados na coluna Sinopse, que o jornalista assinava no O Estado de São Paulo. Daniel Piza adotou o estilo indireto livre, mesclando primeira e terceira pessoas, sempre tateando entre o que é real e o que é sugestionável. A leitura de ‘Noites Urbanas’ é como andar no escuro dentro de uma casa desconhecida, com medo crescente de derrubar algum vaso ou topar em algum móvel.
De todas as histórias, destaco a excelente “Educação pelo outono”, publicada anteriormente no livro “Contos para ler ouvindo música” (2005, organização de Miguel Sanches Neto, editora Record), com a emocionante vivência de Suzana, uma garçonete “ambígua”, pois está em um lugar e ao mesmo tempo não está. Ao ler o conto, me identifiquei bastante com a protagonista e fiquei pensando em quantas vezes eu tive (e ainda tenho) que deixar o meu corpo em um espaço físico e vagar com minha mente, alma e coração para outro. Vale a pena ler o conto ouvindo as Gymnopédies (1888), composição de Erik Satie e indicada no livro por Piza.
Ressalto também os contos “Golpe de Vista”, onde um jogo de futebol é um verdadeiro depoimento sobre os sentimentos e ambivalências da vida; “Dois filhos”, com os traumas que podem surgir dentro do processo educacional familiar; “Ledinha”, uma homenagem a Machado de Assis, um gênio brasileiro, e ao seu romance universal Dom Casmurro; “A rainha”, revelando o drama da mulher moderna e seu corre-corre ininterrupto e nem sempre sinônimo de felicidade; “Calor de chuva”, expressão que o autor reconhece como tipicamente paulistana, mas que preciso abrir um parênteses para dizer que aqui na minha cidade, Teresina (PI), essa é uma expressão conhecida e que igualmente expressa o mormaço e clima abafado que precedem a chuva. A narrativa mostra como detalhes simples podem se transformar em grandes momentos de alívio e até de percepção. As menções honrosas que Daniel Piza registrou ao longo dos contos são, como ele próprio era, inspirações silenciosas, um panegírico sem pirotecnia. Prova disso são os excelentes “Circuito interno”, inspirado no conto The Enormous Radio, de John Cheever, e “O último monólogo do grande ator”, fruto de um convite do lendário Paulo Autran, que pretendia usar o texto de Piza em uma encenação no palco. Outro conto que merece ser sublinhado é o interessantíssimo “Saquê”, com a história de amor que se baseia em “fugas, e não em fatos”.
É difícil apontar preferências diante de tanta coisa boa. Daniel Piza era um homem de ideias, de opiniões, de reflexão. Todo o talento com as palavras e informações jornalísticas encontrava espelho também em seus livros, com a observação necessária de quem capta, pensa e depois escreve, sem ‘achismos’ ou clichês.
Editora: Bertrand Brasil
ISBN: 8528614476
Ano: 2010
Páginas: 176
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