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Coronavírus e desigualdades: alguns apontamentos para bibliotecários

Em 26 de fevereiro de 2020 foi registrado o primeiro caso da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19 – do inglês, Coronavirus Disease 2019)) no Brasil e no dia 20 de março o Ministério da Saúde reconheceu que há transmissão comunitária. Croda et al (2020) sinalizam que “durante o outono e o inverno, a incidência de doenças respiratórias aumenta (resfriado, gripe, ataques de asma, sinusite, pneumonia, bronquite) e, atualmente, o COVID-19 deve ser adicionado a esta lista.

Segundo os autores, “ar mais seco e temperatura mais baixa podem levar a um aumento no risco de transmissão de coronavírus e no número de casos de COVID-19. Como os sintomas da gripe e SARS-CoV-2 são semelhantes, o Ministério da Saúde antecipou a vacinação gratuita usual para influenza, para os principais grupos de risco, a fim de ajudar os profissionais de saúde a descartar a influenza na triagem de pacientes e melhorar o diagnóstico do novo vírus.”

Os ex-gestores do Ministério da Saúde sinalizaram que vários modelos matemáticos mostraram que o vírus estará circulando potencialmente até meados de setembro, com um pico importante de casos em abril e maio (CRODA et al, 2020). Esse pico traz preocupações com a disponibilidade de leitos de unidades de terapia intensiva (UTI), ventiladores mecânicos, testes diagnósticos e equipamentos de proteção individual (EPI).

Cientes da limitação de recursos, Emanuel E.J. et al elaboraram artigo sobre a alocação justa de escassos recursos médicos na época da COVID-19. Os autores relatam que um fator limitante para o uso de ventilador será a disponibilidade de terapeutas respiratórios e equipe treinada para operá-los com segurança; outro fator é a limitação das intervenções diagnósticas, terapêuticas e preventivas que ainda estão em estágios iniciais de estudo; outro fator limitante é a disponibilidade de EPIs para profissionais de saúde.

Os referidos autores fazem uma discussão sobre a maximização dos benefícios que podem ser entendidos como salvar a maioria das vidas individuais ou salvar a maior parte dos anos, dando prioridade aos que sobreviverão por mais tempo após o tratamento. Essa decisão não pode ser tomada com base na riqueza de uma pessoa ou numa seleção aleatória ou por uma alocação do primeiro a chegar, sendo que nenhum valor isolado é suficiente para determinar quais pacientes devem receber recursos escassos.

Uma outra recomendação dos referidos autores é que uma abordagem de “primeiro a chegar, primeiro a ser atendido” beneficia injustamente os pacientes que moram mais perto das unidades de saúde. E também que as pessoas que ficam doentes mais tarde, talvez por causa da adesão ao isolamento social ficariam excluídas do tratamento, piorando os resultados sem melhorar a justiça.

Quanto a abordagem utilizada pelos autores referenciados anteriormente de priorizar os que sobreviverão por mais tempo após o tratamento, ela é uma abordagem etarista que desvaloriza os idosos. Essa implica que a morte de idosos não é tão importante quanto a perda de vidas de outras faixas etárias. Existem diversos relatos de idosos abandonados em casa de repouso que morreram sozinhos e sem assistência. O envelhecimento é depreciado na sociedade e na biblioteconomia, mesmo sendo que as pessoas que mais temos admiração e respeito têm mais de 50 anos.

Não é dispensável a vida de Sebastião de Souza, Hagar Espanha Gomes, Briquet de Lemos, Marília de Abreu, Iza Antunes, Edilenice Passos, Adelaide Ramos e Côrte, Marcos Miranda, Antônia Memória, Maria Alice Guimarães Borges, Almira Almeida, Murilo Bastos Cunha, Neide de Sordi, Valéria Valls, Ana Virgínia Pinheiro… Assim como a Agenda 2030, fomentada na biblioteconomia pela FEBAB, não podemos deixar ninguém para trás.

O ageísmo segundo Marques et al (2020), é um conceito multifacetado que inclui três dimensões distintas: uma dimensão cognitiva (por exemplo, estereótipos), uma afetiva (por exemplo, preconceito) e uma dimensão comportamental (por exemplo, discriminação). O ageísmo pode operar consciente (explicitamente) e inconscientemente (implicitamente), e pode ser expresso em três níveis diferentes: nível micro (individual), nível meso (redes sociais) e nível macro (institucional e cultural).

O ageísmo institucional pode ser exemplificado na fala do ministro da saúde, Nelson Teich, em vídeo direcionado a médicos oncologistas. E também na concentração de mortos no hospital Santa Maggiore da rede Prevent que, em março de 2020, teve 79 óbitos entre idosos.

O ageísmo tem dois objetivos distintos. Ele pode ser direcionado a outros indivíduos ou autodirigido, quando relacionado a si mesmo. O ageísmo autodirigido pode ser exemplificado no Osmar Terra que defende o isolamento vertical, no qual apenas o grupo de risco é colocado em quarentena. O deputado de 70 anos dirigindo a si mesmo um preconceito etário e desconsidera que se sua ideia fosse colocada em prática ele estaria em isolamento.

Na possibilidade de reabertura de bibliotecas é preciso entender que pessoas idosas não podem ser deixadas em casa em isolamento social, ou seja em falta de contato e sem envolvimento em atividades sociais. Será necessário desenvolver habilidades novas em gestão de pessoas, com uso de ferramentas para motivar equipes e mantê-las atentas às recomendações de saúde.

As pessoas idosas, por estarem em “grupo de risco”, não podem ser tratadas como se elas pudessem ser substituídas pelas mais jovens e fossem descartáveis em seus conhecimentos e responsabilidades. É importante a atenção ao sentimento de solidão, ansiedade e insatisfação por causa da falta de conexão com a comunidade em consequência dos desdobramentos da COVID-19.

Devemos apoiar as pessoas idosas a terem e manterem sua conexão e comunhão com  os outros, para melhor permitir um sentimento de pertencimento. É preciso desenvolver capacidade de escuta para as necessidades dos idosos, principalmente os que irão se defrontar pela primeira vez com limitações e que irão depender de pessoas para fazer diversas atividades que eles tinham autonomia.

Também é importante trabalhar o luto. A morte é um tabu, mas nesse contexto precisa ser abordada. Pessoas idosas podem experiencia-la pela perda de parentes, pessoas próximas e amigos, assim como o medo de serem vítimas do COVID-19 e seus desdobramentos. As bibliotecas podem utilizar das suas listas de informação seletiva, telefones e redes sociais para informar sobre o luto.

Marilia Louvison fez um importante apontamento ao dizer que a lógica de grupos de risco acaba por criar uma narrativa de que os que não estão nesse grupo estão livres de risco e culpabiliza essas pessoas pelo contágio, assim como todo o discurso em volta da etiqueta sanitária que tende a culpabilizar os indivíduos pelo contágio.

Esse discurso de culpabilização está presente, por exemplo, nas estratégias de cuidado das arboviroses que se voltam para o cuidado doméstico, sem apontar para os riscos criados pelas empresas e pela ausência de políticas públicas. Quando uma reportagem aponta um descarte incorreto de lixo, ela aponta o dedo para os moradores, sem criticar a falta de acesso às políticas públicas que viabilizaram o descarte correto do lixo.

Podem os subalternos falarem de saúde?

Por mais que existam vozes das periferias, elas não têm o mesmo poder de influência para mudar a situação de saúde, tal como as falas acadêmicas. Eles não precisam ser tutelados para serem ouvidos, eles precisam ser ouvidos para deixarem de ser tutelados. A tutela rouba o protagonismo de quem realmente conhece a realidade vivida.

Assim tem sido toda vez que vemos quem são os especialistas a falar em saúde, em medidas de prevenção ao coronavírus, em isolamento social, todos brancos, acadêmicos, de classe média ou alta, moradores de áreas urbanas… Assim também sou eu.

As mulheres negras, deficientes, LGBTQI+, doentes crônicas, não escolarizadas, vítimas de violências, em empregos considerados inferiores, têm vivências próprias que são pertinentes para a reflexão do processo saúde doença. A dificuldade delas não é ter conhecimento das suas necessidades, mas estar em um espaço real de escuta, e que suas vozes, que não sejam apenas, citações acadêmicas

A invisibilidade das pessoas negras faz com que suas realidades, seja na saúde, seja em outras áreas, sejam retratadas pela ótica racista de construção social. A literatura, para Dalcastagnè (2008), é um espaço que tem afastado autores negros, com poucos escritores e poucos personagens.

Trata-se de homogeneidade de discursos que invisibiliza as pessoas negras. “A ausência de personagens negros na literatura não é apenas um problema político, mas também um problema estético, uma vez que implica na redução da gama de possibilidades de representação.” (Dalcastagnè, 2008, p. 97)

A invasão imperialista foi marcada por epistemicídios, sendo que Grosfoguel (2016, p. 40) argumenta que “nas Américas os africanos eram proibidos de pensar, rezar ou de praticar suas cosmologias, conhecimentos e visão de mundo. Estavam submetidos a um regime de racismo epistêmico que proibia a produção autônoma de conhecimento.”

O genocídio/epistemicídio, explica Grosfoguel (2016,  p.42), também influiu sobre as mulheres que eram as transmissoras da tradição oral. “Os ‘livros’ eram os corpos das mulheres e, de modo análogo ao que aconteceu com os códices indígenas e com os livros dos muçulmanos, elas foram queimadas vivas.”

Um dos meios é reconhecer que todo o conhecimento foi afetado pelo eurocentrismo “e muitos aspectos do eurocentrismo foram engessados nessas novas epistemologias” (GROSFOGUEL, 2016,  p. 44). Existem outras perspectivas que sobreviveram a violência do eurocentrismo e essas podem ser utilizadas para romper com a hegemonia do conhecimento.

“…Eu já estava deitada quando ouvia as vozes das crianças anunciando que estavam passando cinema na rua. Não acreditei no que ouvia. Resolvi ir ver. Era a Secretaria da Saúde. Veio passar um filme para os favelados verem como é que o caramujo transmite a doença anêmica. Para não usar as águas do rio. Que as larvas desenvolvem-se nas águas…(…) Até a água… que em vez de nos auxiliar, nos contamina. Nem o ar que respiramos, não é puro, porque jogam lixo aqui na favela.

Mandaram os favelados fazer mictórios” (“Quarto de Despejo”, Carolina de Jesus, p. 57).

O Favela em Pauta e o Instituto Marielle Franco construíram um mapa para dar visibilidade às iniciativas de combate ao coronavírus nas favelas e periferias do Brasil. O usuário do mapa pode acessar informações sobre a iniciativa e sobre como apoiá-la e os coletivos podem cadastrar as iniciativas.  Pode-se citar algumas iniciativas:

1) O Que os Olhos não Veem – @oqoonv – coletivo de jornalismo alagoano que busca dar conhecimento às vidas e aos fatos dos que são colocados à margem;

2) Periferia Mcz Sem Corona – @mczsemcorona – redes de iniciativas de solidariedade nas periferias de Maceió no combate ao coronavírus;

3) Corona Favelado – @coronafavelado – manual de redução de danos pro favelado e pro mundo;

4) Amareve – @amareveoficial – comunicação independente que divulga informações e realiza ações para o Complexo da Maré (RJ);

5) Favela em Pauta – @favelaempauta – jornalismo em perspectiva jovem, pobre e favelada;

6) Agência Mural de Jornalismo das Periferias – @agmural – agência de notícias, informação e inteligência sobre as periferias de São Paulo e da Região Metropolitana;

7) Lucas Lins, o poeta das favelas. Morador da Cidade de Tiradentes na periferia de São Paulo, é autor de diversas poesias pra matar o corona.

Essas iniciativas demonstram que a população periférica e preta não está inerte ante ao coronavírus. Existe uma opacidade destas iniciativas e uma tentativa de silenciamento dessas vozes que têm divulgado informações de saúde e feito ações para auxiliar as pessoas em vulnerabilidade econômica e social. A Central Única de Favelas (CUFA) tem desenvolvido diversas ações para enfrentamento do coronavírus nas favelas, sendo uma de suas ações o projeto Mães da Favela. Essa campanha tem o objetivo de propiciar renda mínima para mães residentes de favelas e já atendeu 496.700 famílias.

O que é o SUS?

Durante os primeiros vinte anos do início do século, a situação era, aproximadamente, da convivência de serviços públicos na área da polícia sanitária com um modelo liberal do exercício da medicina. A rede hospitalar estatal existente era voltada para os militares; a rede das Santas Casas de Misericórdia, herança da colonização portuguesa, mais direcionada para a função de separar o pobre da sociedade e fazer caridade. Quem tinha posses era tratado em casa pelo seu médico particular.

No final da segunda década, enquanto ocorriam no país as primeiras grandes greves envolvendo trabalhadores qualificados que lutavam por condições mais humanas de trabalho, boa parte deles imigrantes europeus trazendo ideologias marxistas e anarquistas, foi criado o Partido Comunista do Brasil. Havia uma efervescência pós-guerra, um medo após a epidemia da gripe espanhola em 1918 e ocorriam as movimentações que deram origem à Semana de Arte Moderna de 22. (VECINA NETO e MALIK, 2016, p. 3).

“9 de novembro… preparei a refeição para os filhos e fui lavar roupas. Quem estava no rio era a Dorça e uma nortista que dizia que a nora estava em trabalho de parto. Há três dias. E não conseguia hospital. Chamaram a Rádio Patrulha para interná-la e ainda não havia dado solução. A velha dizia:

– São Paulo não presta. Se fosse no Norte era só chamar uma mulher, e pronto.

– Mas a senhora não está no Norte. Precisa providenciar hospital para a mulher.

O marido venda na feira. Mas não quer gastar com a esposa porque quer ir para o Norte e está ajuntando dinheiro.” (“Quarto de Despejo”, Carolina de Jesus, p. 136).

Após diversas lutas de movimentos sociais, o direito à saúde foi previsto na Constituição e outros documentos normativos. O Sistema Único de Saúde (SUS) é um sistema abrangente de gestão compartilhada entre o governo federal, governos estaduais e municipais. O SUS representa uma resposta social que tem diversas vulnerabilidades, mas que comparado ao que existia antes dele, conforme está exposto nos recortes de “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, ele é um avanço no acesso a políticas sociais de saúde.

Desigualdades e segregação racial

“…Eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (“Quarto de Despejo”, Carolina de Jesus, p. 32).

Devido ao racismo estrutural, os negros tiveram no pós-abolição obstáculos para acesso a moradia. Situação que perdura apesar de programas governamentais de acesso à moradia como o Minha Casa Minha Vida. A maior parte da população negra brasileira está em “aglomerados urbanos subnormais” (que é como o IBGE classifica as favelas) que não tem acesso a equipamentos de promoção da saúde.

Em contraposição, indivíduos não negros acessam o direito à moradia com participação estatal desde a formulação do espaço urbano. No Distrito Federal isso pode ser percebido na formação do bairro do Noroeste em que a empresa pública que comercializa terras públicas, do estado ao fazer a licitação já entregou os lotes com infraestrutura de esgoto, asfaltamento, água e luz elétrica.

Nos conjuntos residenciais para não negros os espaços para práticas de promoção da saúde, associados a práticas esportivas são plurais. E mesmo que as pessoas não utilizem o equipamento público por pagarem por aulas particulares para prática de atividade física, mesmo assim a opção estatal prevalente é de dispor de equipamentos de promoção da saúde para quem não precisa dele para atividades físicas.

“…As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou a sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofada de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (“Quarto de Despejo”, Carolina de Jesus, p. 37).

Nas periferias qualquer calçada já se torna local de prática de atividade física. Na região administrativa de Santa Maria as pessoas se exercitam no calçamento que circunda o hospital regional. No município de Valparaíso (GO) a comunidade utiliza o calçamento da BR que separa o Distrito Federal do Goiás para prática de atividades físicas. Há uma desigualdade no acesso a ferramentas simples como asfaltamento, calçadas e iluminação que estão melhor dispostas em bairros de maior poder aquisitivo e com distribuição racial majoritariamente branca.

Uma dificuldade que se soma às possibilidades das pessoas de baixa renda utilizarem o espaço público para a prática de atividades são a violência institucional e urbana. Pessoas negras, devido ao racismo, terão mais dificuldades de praticar corrida que pessoas brancas. Pessoas negras são facilmente “confundidas” com pessoas em conflito com lei ao portar guarda-chuva, furadeira, dirigir um carro, andar de ônibus.

No imaginário coletivo de pessoas negras já se tem a ideia que correr não é uma prática que possa ser feita em qualquer lugar ou horário, ao contrário de pessoas brancas que podem correr nos seus bairros protegidas pelo aparato policial e iluminação eficiente. A desigualdade espacial afeta também as crianças, pois a distribuição de equipamentos de lazer e práticas de atividades físicas é irregular.

No bairro rico do Sudoeste em Brasília todo prédio residencial tem um parque público para atividades de lazer infantil com escorregador, balanços etc. No Valparaíso (GO) não há espaços para atividades de lazer para crianças e os poucos parquinhos disponíveis estão alocados dentro de condomínios do Minha Casa Minha Vida. A segregação racial espacial deixa marcas a partir da infância e se perpetua em todas as faixas etárias.

Na velhice o acesso a equipamentos de promoção da saúde e lazer se torna essencial para manter qualidade de vida em todos os âmbitos. Ao observar as diferenças entre pretos e brancos na velhice, os negros serão minoria porque essa população é morta na juventude. A distribuição de equipamentos de promoção da saúde, como a academia da saúde, é daltônica e míope que não enxergam raça.

Outra situação que coloca pessoas negras em vulnerabilidade é a oferta dos testes no modelo drive thru e nas farmácias. Como pessoas negras têm mais propensão a possuir rendimentos inferiores a US$ 5,50 por dia, elas possuem menos acesso a veículos próprios para fazer os testes e recursos para pagar por testes nas farmácias. É importante assinalar que a distribuição dos hospitais de campanha também segue uma lógica que vulnerabiliza pessoas negras, sendo alocados em bairros de maior poder aquisitivo, mesmo que as pessoas que moram nessa localidade possam utilizar a saúde suplementar para tratamento e diagnóstico do Covid-19.

É importante assinalar que a Agência Nacional de Saúde Suplementar apontou, em 2017, que “metade dos beneficiários de planos de saúde do país está em planos coparticipativos, ou seja, aqueles planos que, além da mensalidade, em regra com um valor um pouco inferior, o beneficiário arca com um valor referente aos procedimentos utilizados.”

Apesar de indivíduos de classe média poderem acessar a saúde suplementar, parte considerável que o acessa por meio desse tipo de plano terá danos financeiros significativos e os conduzirão a acessar o Sistema Único de Saúde. As franquias cobradas pelos planos de saúde diferem por procedimentos e modalidade de atendimento, se estes usuários forem conduzidos para atendimento em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) poderão causar danos econômicos de longa duração.

É importante trazer também à discussão o conceito de desigualdade em saúde. Maurício Lima Barreto informa que “as populações dos estratos mais pobres ou pertencentes a grupos étnicos marginalizados, de forma consistente, sempre apresentam piores condições de saúde.” (BARRETO, 2017, p. 2100).

Isso pode ser exemplificado nos dados do Vigitel 2018 que demonstraram cenário desfavorável para a população negra no consumo de frutas e hortaliças, consumo abusivo de bebidas alcoólicas e da avaliação negativa da saúde. E também maior frequência dos indicadores de excesso de peso e obesidade entre as mulheres negras comparadas com brancas, além de menor frequência na realização de mamografia e papanicolau.

A despeito da portaria 344/2017, que tornou obrigatória a coleta e preenchimento do quesito raça/cor, muitos sistemas e publicações do Ministério da Saúde ainda não dispõe de dados suficientes para análise devido ao baixo percentual de preenchimento. E poucas publicações atendem aos requisitos da portaria. Os sistemas que apresentam percentual de preenchimento alto já dispunham do campo antes da portaria, o que pode evidenciar que a portaria não foi efetiva para que outros sistemas insiram o campo raça/cor e aumentem o preenchimento nos serviços de saúde.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) produziu nota técnica sobre mobilidade urbana e acesso ao SUS. Nesta Nota o IPEA analisou que:

Indivíduos negros estão sobrerepresentados entre os indivíduos de baixa renda, segundo aponta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: “Homens e mulheres pretos ou pardos têm restrições em maior proporção, quando comparados a homens e mulheres brancos, para todas as dimensões analisadas. Pretos ou pardos tinham maiores restrições à internet (23,9%), saneamento básico (44,5%), educação (31,3%), condições de moradia (15,5%) e à proteção social (3,8%). Todos esses valores estão acima dos percentuais registrados para homens ou mulheres brancas (BRASIL, 2019, p. 73)

Essa disparidade de acesso a bens e serviços apontam que pessoas negras terão maior dificuldade para acessar aplicativos para relatar sintomas, como o aplicativo disponibilizado pelo Ministério da Saúde (Coronavírus SUS), assim como também o aplicativo para o auxílio emergencial (Caixa Tem). A oferta do auxílio emergencial demonstrou a existência de uma multidão de “invisíveis”, pessoas com CPF inválido e sem conta no banco.

Essas pessoas estão se aglomerando nas portas das agências da Caixa Econômica em desespero para sanar as necessidades vitais. Ao mesmo tempo que se observa o aumento do gás de cozinha, gerando mais insegurança alimentar. A disparidade no acesso ao saneamento básico também aponta que pessoas negras terão menos possibilidades de seguir as estratégias básicas de prevenção ao coronavírus para limpar as mãos com água e sabão. E a desigualdade no acesso à educação também colocará as pessoas negras em desigualdade no entendimento das informações oficiais que geralmente tem uma linguagem dificultosa.

A qualidade insuficiente da moradia está associada ao estresse e impactos na saúde mental. As pessoas em situação de rua são em sua maioria negras, e também tem menor expectativa de vida, sofrem de dependência e têm condições de saúde que as colocam em maior risco, caso desenvolvam o vírus. Essas pessoas lutam para manter sua higiene básica e podem ser incapazes de manter distância ou se auto-isolar, caso apresentarem sintomas. Esse grupo populacional pode ser mais transitório e geograficamente móvel, dificultando o rastreamento dos casos e contatos.

Outro grupo vulnerável ao Covid-19 é o de pessoas LGBTQI+. Essas pessoas têm em comum com as pessoas em situação de rua o rompimento das relações familiares. Essas pessoas acessam de forma desigual a justiça social devido a lógica binária que exclui pessoas de outras representações de gênero. O governo Peruano adotou uma política de isolamento com base no gênero, no qual segundas, quartas e sextas-feiras, apenas homens podem sair; na terça, quinta e sábado, apenas mulheres e no domingo, nenhum cidadão peruano poderá sair de casa.

O policiamento dessas leis tem tido impactado a comunidade transgênero peruana, por causa de uma visão binária de gênero e machista dos aplicadores das leis que age contra elas com violência transfobia com base na aparência física. Quando paradas pela polícia, as pessoas precisam mostrar seus documentos e como os documentos congruentes com a identidade de gênero exigem processos árduos e dispendiosos, se tornam inacessíveis para a maioria das pessoas transexuais peruanas.

E assim pessoas trans têm tido dificuldade de acessar serviços essenciais como alimentos e suprimentos médicos. Essa política foi revogada por decreto porque além dos efeitos na população trans, se percebeu que os serviços essenciais ficavam lotados nos dias destinados às mulheres.

Mulheres transexuais que utilizaram silicone industrial para modificação corporal, além do risco social devido a transfobia estrutural, têm riscos de complicações pulmonares. Foram relatados casos de pneumonia por causa do líquido do silicone, sendo o primeiro caso descrito na literatura em 1975.

Silvio Almeida (2018, p. 38) ao analisar o racismo estrutural aponta que este é “uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivadas de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição.”

A exposição ao racismo está relacionada a sintomas de ansiedade, depressão e práticas precárias de saúde (uso de álcool, drogas e tabagismo). Pesquisas demonstram que pessoas que relataram experiências de discriminação tiveram duas a três vezes mais chances de confiar menos nos trabalhadores e sistemas de saúde, percebem menor qualidade e satisfação com o cuidado e expressam menor satisfação com a comunicação em saúde.

A experiência do racismo também foi associada a atrasos na busca de cuidados de saúde e adesão reduzida a recomendações médicas (WILLILIAMS, 2019). Os efeitos do racismo nos serviços de saúde podem também ser percebidos nos vieses desfavoráveis que fazem com que homens brancos recebam mais transplantes que pessoas negras, mesmo quando estes apresentam necessidades semelhantes (MARINHO, 2011, p. 37).

Pires, Carvalho e Xavier relataram que “em estudo realizado nos Estados Unidos com dados para 7162 pessoas diagnosticas com COVID-19 [3], a taxa de hospitalização entre aqueles que não apresentavam nenhuma pré-condição foi de 7%, sendo 2% em UTI. Esses números aumentam para 30% e 15%, respectivamente, para pessoas com pré-condições reportadas. Algumas doenças levaram a uma taxa de hospitalização ainda mais alta.

Ainda segundo os autores, “os infectados que possuíam doença crônica renal e diabetes apresentaram taxas de internação em UTI 11 e 8,5 vezes maiores, respectivamente, do que os que estavam fora de grupo de risco. Pessoas com doenças pulmonares crônicas como bronquite e asma tiveram um número 3,4 vezes maior de internações e 6,5 vezes maior de transferência para UTI. Ademais a taxa de hospitalização e internação em UTI para aqueles acima de 65 anos foi o dobro do total da população estudada, mesmo entre os idosos sem nenhuma condição médica reportada”.

Mortes por Covid-19

Essas disparidade no acesso ao tratamento e diagnóstico oportuno explicam os dados do Ministério da Saúde que demonstram melhor oportunidade de hospitalização para pessoas brancas em comparação com pessoas negras. 

“21 de novembro…Vi várias pessoas no barraco da Leila. Fui ver o que havia. Perguntei para a D. Camila o que houve.

– É a menina que morreu.

– De que foi que morreu a menina?

– Não sei” (“Quarto de Despejo”, Carolina de Jesus, p. 139).

“Chegou o carro para conduzir o corpo sem vida de Dona Maria José que vai para a sua verdadeira casa própria que é a sepultura” (Quarto de Despejo”, Carolina de Jesus, p. 34).

Os pobres e a classe média geralmente não dispõem de reservas financeiras para poupar para a morte ou fazer planos funerários. Estes são surpreendidos pela hora da morte e enfrentam um mercado predatório. Em todo o país os cemitérios têm sido entregues à iniciativa privada. O Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (SINDSEP) aponta que a concessão/privatização do serviço funerário no Município de São Paulo prevê a criação de um monopólio empresarial da extorsão das famílias de todas as pessoas que forem sepultadas ou cremadas na cidade (SINDSEP, 2019).

A administração pública dos serviços funerários ajuda a equacionar as disparidades sociais e econômicas que coloca famílias em risco social quando precisam acionar o serviço privado para sepultar seus familiares. Na cidade de Manaus está sendo fundamental o serviço SOS Funeral. Este serviço é administrado pela Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Cidadania (Semasc) e voltado para famílias em situação de vulnerabilidade social e econômica que não podem arcar com os custos de um sepultamento. O SOS Funeral é regido pelo Decreto Municipal nº 0605, de 20 de julho de 2010, e oferece cortejo, remoção, translado fúnebre, urna funerária, isenção da taxa de sepultamento e atendimento psicológico (MANAUS, 2019).

Em março de 2020 foi atualizado o regramento para o serviço funerário no Distrito Federal por meio do Decreto 40.569, de 27 de março de 2020. A execução dos serviços de vigilância, manutenção de ossário e cinzário, ajardinamento, limpeza, conservação, manutenção, ajardinamento de túmulos e jazigos e demais serviços afins concedidos à iniciativa privada serão regulamentados pelo Governo do Distrito Federal.

As sepulturas gratuitas destinadas aos indigentes e pobres serão concedidas por três anos que podem ser reduzidas em caso de criança com até seis anos, avaria no túmulo ou infiltração de água, interesse público e determinação judicial. As sepulturas pagas podem ser concedidas pelo prazo de 10, 15 ou 20 anos prorrogáveis mediante novo pagamento de taxa ou perpétuas desde que pagas proporcionalmente. O valor das tarifas, segundo o Decreto, devem ser fixadas pelo preço da proposta vencedora da licitação, o que coloca nas mãos da iniciativa privada serviço essencial (DISTRITO FEDERAL, 2020).

Cientes desse mercado que coloca pessoas em vulnerabilidade reforça-se a necessidade de trabalhar o luto nas ações de bibliotecas públicas, comunitárias, institucionais e universitárias. As pessoas desconhecem por tabu e por falta de informação sobre os cuidados e direitos da morte.

É importante que sejam disseminadas pelas bibliotecas, informações que possam desmentir fake news e as recomendações dos órgãos de saúde quanto ao manejo de corpos. O Ministério da Saúde emitiu recomendações para o manejo de corpos suspeitos e confirmados com Covid-19 com vistas a evitar o contágio de trabalhadores do setor funerário e parentes.  O medo de enterrar as pessoas erradas fez parentes em Manaus abrirem urnas funerárias para conferir os corpos de parentes, isso as colocou em risco, bem como os trabalhadores e funerárias e cemitérios, bem como todas as pessoas que eles terão contato.

O Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, publicado em 26 de abril de 2020, registrou 4.205 óbitos com confirmação de doença pelo Coronavírus 2019 (Covid-19) no Brasil. No mesmo documento o Ministério observa uma diferença de 257 óbitos com relação do Portal da Transparência do Registro Civil e que 27 unidades da federação tem mais registros que nos cartórios (BRASIL, 2020).

A publicação apontou que 60,3% das hospitalizações ocorreram entre pessoas registradas como brancas, seguidas pelas registradas como pardas (31,5%) e pretas (5,9%), amarelos (2,0%) e indígena (0,2%), sendo que 5.263 casos com a variável raça/cor preenchidos como “ignorado” foram excluídos dessa análise.

Os óbitos com registro do campo raça/cor foram 52,3% em pessoas registradas como brancas, 38,8% em pardos, 6,4% em pretos, 2,2% em amarelos e 0,3% em indígenas e 1.298 óbitos foram excluídos da análise por falta de preenchimento do campo raça/cor (BRASIL. 2020).    Quando somados pardos e pretos se chegava a 37,4% das hospitalizações e 45,2% das mortes. Na comparação entre os boletins de 10 e 26 de abril, se demonstrou queda de 12 pontos percentuais nas mortes entre brancos e aumento de 12,4 pontos percentuais entre os negros.

É importante assinalar que a informação racial nos sistemas de informação geralmente não acontece por autodeclaração dos sujeitos, mas por heteroclassificação dos profissionais que preenchem os sistemas de informação. O campo não é de preenchimento obrigatório, o que leva a uma subnotificação do campo. Outra questão que precisa ser analisada é que a classificação racial pode estar em desacordo com o fenótipo e identificação dos sujeitos, como exemplo a classificação parda e preta pode ser erroneamente utilizada para indígenas, invisibilizando sua identificação racial e cultural.

Internações e mortes por Covid-19 segundo a cor/raça. Fonte: G1/Bem Estar, 2020

Os dados das desigualdades raciais, apresentados anteriormente, precisam ser lembrados para análise dos dados de morte e hospitalização porque são eles que explicam as desigualdades na oferta de hospitalização e diagnóstico. Camilo Rocha (2020), em reportagem do Nexo, relatou que estados e cidades americanas têm observado uma desproporção de mortes de negros devido ao Covid-19, sendo 70% na Louisiana, 44% no Alabama e 68% na cidade de Chicago.

Outra camada de análise sobre os dados de hospitalização e mortalidade por raça/cor é a da distribuição dos empregos e participação da população negra nos serviços essenciais. É significativamente maior a participação da população preta e parda em ocupações informais (BRASIL, 2019, p. 40), o que as leva a maior necessidade de exposição a riscos para a manutenção do vínculo de trabalho durante a pandemia.

A Pesquisa perfil da enfermagem no Brasil, realizada em 2013 pela Fiocruz e Conselho Federal de Enfermagem, demonstrou que 44,5% dos auxiliares e técnicos de enfermagem são pardos e 12,9% pretos. Esses profissionais não são sequer lembrados nas homenagens públicas aos profissionais de saúde. A mesma invisibilidade e essencialidade é dirigida aos profissionais dos serviços funerários, serviços de limpeza, transporte, alimentação e serviços domésticos.

Conteúdos e formação

O Conselho Nacional de Saúde, que tem prerrogativa constitucional para ordenar a formação dos trabalhadores da saúde, por meio da Resolução 569, de 8 de dezembro de 2017, determinou a reorganização das diretrizes curriculares da saúde para inserir a discussão da temática racial, entre outras mudanças. A inserção da temática racial nas quinze profissões de saúde depende de esforços múltiplos de diversas frentes populares, estudantis, profissionais, docentes e organizacionais.

São os bibliotecários que propiciam acesso à maioria da comunidade universitária aos documentos recomendados na bibliografia básica e complementar dos cursos. Os acervos abertos podem propiciar aos discentes e docentes, a experiência de encontrar autores novos que falem de perspectivas descolonizadas e negras. E com a formação antecipada de profissionais da saúde as bibliotecas podem apoiar esses profissionais com informações que supram lacunas da formação.

Fontes de informação

Ministério da Saúde

Outras fontes oficiais

Cursos gratuitos

Sociedades Médicas e Conselhos

[1] Fontes: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Indicadores de vigilância em saúde descritos segundo a variável raça / cor, Brasil. Boletim Epidemiológico, Brasília, v. 48, n. 4, 2017; BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Doença de Chagas Aguda e distribuição espacial dos triatomíneos de importância epidemiológica, Brasil 2012 a 2016. Boletim Epidemiológico, Brasília, v. 50, n. 2, jan. 2019; BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis.Indicadores e dados básicos da sífilis nos municípios brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: http://indicadoressifilis.aids.gov.br/.Acesso em: 17 out. 2019; BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. HIV AIDS 2018. Boletim Epidemiológico, Brasília, v. 49, n. 53, 2018; BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Acidentes escorpiônicos no Brasil, 2018. Boletim Epidemiológico, Brasília, v. 50, n. 28, out. 2019; BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Hanseníase 2020. Boletim Epidemiológico, Brasília, v. 51, n. especial, jan. 2020.

Referências

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