Biblioo

Comunidades e universidades

As bibliotecas comunitárias geralmente são espaços organizados por moradores ou líderes comunitários que através de iniciativas próprias procuram fornecer acesso aos livros e à leitura em regiões economicamente desfavorecidas. Normalmente, nesses lugares, as políticas públicas de acesso aos bens culturais, como a leitura, a cultura e a comunicação são precárias, uma vez que o poder público não tem dado a devida importância para essas questões.

As dificuldades de acesso aos aparatos culturais nas periferias das grandes cidades brasileiras e até mesmo nas regiões rurais levaram os moradores dessas regiões a se organizarem e criarem espaços que fornecem acesso aos livros, à leitura, além de atividades que envolvem peças teatrais e contações de histórias. Na maioria das vezes, esses espaços não contam com parcerias e sobrevivem através dos esforços de seus organizadores e da própria comunidade.

No improviso, devido à falta de recursos e até mesmo de espaço físico, as bibliotecas comunitárias se tornam um grande catalisador do desenvolvimento do hábito da leitura e, também do potencial das comunidades. Pelo Brasil existem inúmeras bibliotecas comunitárias que desenvolvem atividades enriquecedoras nas localidades em que estão inseridas.

Bibliotecas comunitárias e suas conquistas

Uma dessas iniciativas de sucesso é a da Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado, idealizada pelo professor Geraldo Prado, popularmente conhecido como Mestre Alagoinha. Localizada no povoado de São José do Paiaiá, sertão da Bahia, com um acervo de aproximadamente 62 mil livros, além de CDs e DVDs, é considerada a maior biblioteca comunitária rural do mundo.

Em entrevista concedida na edição oito da revista biblioo, Prado aponta os desafios que enfrentou na construção da biblioteca, dentre elas a ausência do poder público e a carência de políticas de leitura na região. Antes da criação da biblioteca, grande parte da população de São José do Paiaiá nunca tinha tido acesso a um livro.

No ano de 2004, a biblioteca foi transformada em uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e atualmente, além de ser uma biblioteca comunitária, exerce a função de biblioteca pública e escolar da região.

Uma curiosidade revelada por Geraldo Prado foi a escolha do nome da biblioteca. Ela foi uma homenagem a sua tia, Maria das Neves Prado, moradora da região e responsável pela alfabetização dele próprio e de muitos moradores daquela localidade.

Outra biblioteca comunitária que vêm contribuindo em prol da democratização da leitura, pressionando o poder público através de suas ações é a Solano Trindade, localizada no Cangulo, em Duque de Caxias, baixada fluminense do Rio de Janeiro.

Coordenada e idealizada pelo professor e historiador Antônio Carlos Oliveira, a biblioteca foi inaugurada em 2006 e, além de fornecer acesso a livros e a leitura, contribui para a formação dos moradores da região através de cursos, oficinas e um pré-vestibular comunitário.

Em entrevista concedida a revista biblioo, Antônio Carlos destacou que a biblioteca comunitária Solano Trindade têm feito um papel de pressionar o poder público a reconhecer suas ações.

A prova desse reconhecimento e do início do processo de democratização da leitura e das bibliotecas da região foi a criação da Rede Estadual de Bibliotecas Comunitárias do Rio de Janeiro (REBCRJ) e a implantação do Plano Municipal do Livro e da Leitura (PMLL), naquele município. Nesse processo, a união do poder público e dos movimentos populares foi fundamental para a concretização dessas ações, mas cabe destacar que a criação da Rede partiu de uma iniciativa própria das bibliotecas comunitárias da região.

Apesar dos grandes esforços de exemplos como esses, nem sempre a realidade é favorável. Grande parte desses espaços não conta com uma organização de acervo adequada, com atividades de catalogação, classificação e indexação. Muitas vezes distribuição do acervo conta com técnicas próprias e, em outras situações, o responsável pelo espaço utiliza sua capacidade de memória para identificar os livros na estante. A figura do bibliotecário nem sempre é vista nesses espaços, já que grande parte da classe não tem uma tradição de se envolver em ações culturais, frente às demandas do mercado tão atrativas e tentadoras.

Por outro lado, os abismos existentes entre as atividades de estágio da matriz curricular dos cursos de Biblioteconomia e os projetos de extensão das universidades brasileiras referentes às bibliotecas comunitárias contribuem para a continuidade desse distanciamento, tanto do graduando quanto do profissional.

Um grande passo para promover a integração entre a universidade e as bibliotecas comunitárias está sendo dado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), através do Projeto de Requalificação de Bibliotecas Comunitárias.

Projeto de Requalificação de Bibliotecas Comunitárias

O projeto de extensão Requalificação de Bibliotecas Comunitárias da UFPE, que tem a coordenação da professora do Departamento de Ciência da Informação da UFPE Edilene Silva, desenvolve atividades junto às bibliotecas comunitárias Poço da Panela e Amigos da Leitura.

Com contações de histórias, animações, organização dos acervos, entre outros, o projeto procura fornecer apoio para as bibliotecas comunitárias trazendo o conhecimento da Biblioteconomia como, por exemplo, a reorganização dos acervos, catalogação, classificação, mediações de leitura e toda a dinâmica que uma biblioteca precisa ter.

A ideia de criação do projeto Requalificação de Bibliotecas Comunitárias surgiu a partir da inquietação da professora Edilene Silva e das alunas Ana Carolina Sobral, Ana Letícia de Coimbra, Caroline Soares, Juliana Albuquerque e Micaelle Veríssimo. A intenção era conhecer de perto a realidade e as dificuldades das bibliotecas comunitárias do Recife. Essas trocas de experiências envolvem as comunidades em que estão inseridas as bibliotecas comunitárias, os idealizadores desses espaços, os professores e alunos da UFPE.

Mesmo sendo um projeto de extensão, as situações vivenciadas nas atividades aparecem nas salas de aula ainda muito timidamente, de acordo com Ana Carolina Sobral, integrante do projeto e aluna do curso de Biblioteconomia da UFPE: “[Esses casos] apenas são citados por alguns professores como exemplo de prática profissional”, ressalta a estudante. Isso demonstra o distanciamento, talvez por falta de interesse, talvez por falta de conhecimento, por parte da academia em relação às novas formas de aprendizado que extrapolam os muros a universidade.

Outra dificuldade enfrentada pelo projeto é a falta de verbas. As atividades de preparo do acervo, as oficinas literárias e culturais exigem custos e os recursos disponíveis no edital de verbas não são suficientes.

Mesmo com esses impasses, o projeto de Requalificação de Bibliotecas Comunitárias vem desempenhando um papel de interação entre a comunidade e a Universidade, estimulando a leitura, propiciando experiências que extrapolam os muros da instituição, das salas de aula e potencializando as ações das bibliotecas comunitárias.

As ações culturais e a matriz curricular

De acordo com dados do Conselho Regional de Biblioteconomia da 15ª região, existem 39 cursos de Biblioteconomia e/ou Ciência da Informação entre Universidades Federais e Particulares.  Mesmo com cursos de graduação existentes nas cinco regiões do país, percebe-se um distanciamento dessas graduações em relação às bibliotecas comunitárias.

Evidentemente não é possível que os cursos de graduação dialoguem com todas as bibliotecas comunitárias existentes. Isso não é uma tarefa simples. O que deve ser questionado é a baixa abordagem nos currículos e na matriz curricular dos cursos de graduação em Biblioteconomia e/ou Ciência da Informação em relação à ações culturais e na construção de diálogos com as bibliotecas e espaços comunitários.

Por que grande parte dos estágios curriculares e supervisionados concentram suas atividades somente em bibliotecas universitárias, públicas ou privadas? Por que não abrir esse leque e fornecer aos graduandos uma experiência mais próxima com as ações culturais?

No caso da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), que adotou novo formato de Projeto Político Pedagógico, implantado no ano de 2010, as disciplinas de estágio supervisionado foram divididas em quatro partes, Estágio Supervisionado I, II, III e IV, com um total de 300 horas. Os alunos só podem fazer estágios em bibliotecas conveniadas com a Universidade e que tenham a figura de um bibliotecário. Sabemos que essa determinação atende a demandas e obrigações que estão previstas na Lei 11.788/2008, que dispõe sobre o estágio de estudantes, para alterações se faz necessário mudar pontos na lei o que requer uma reflexão coletiva, esforços burocráticos e vontade política.

Talvez o caminho para incentivar uma maior presença das ações culturais na matriz curricular do graduando em Biblioteconomia e/ou Ciência da Informação seria a criação de projetos de extensão que venham formar parcerias com as bibliotecas comunitárias, fornecendo oportunidades de diálogos e aprendizado entre os alunos, a comunidade e os espaços comunitários.

A criação de mecanismos e incentivos para que os alunos utilizem os conceitos e aprendizados adquiridos na universidade em atividades em prol das bibliotecas comunitárias seria como uma espécie de troca, uma situação de benefício mútuo: o aluno forneceria o seu conhecimento em Biblioteconomia colocando em prática o seu aprendizado e, consequentemente, desenvolvendo suas aptidões profissionais enquanto estará dando retorno para a sociedade com seu conhecimento e, ainda em um terceiro momento, poderá compartilhar relatos dessa experiência para a reflexão em sala de aula.

Essa é uma boa forma de se pensar no verdadeiro papel social tanto da Biblioteconomia, como dos profissionais, dos estudantes e da própria Universidade brasileira.

Clique aqui para ler integralmente a entrevista de Ana Carolina Sobral que compôs essa reportagem.

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