Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), deu-se início um período histórico de disputas e conflitos entre duas nações: Estados Unidos (EUA) e a União Soviética (URSS). Esta disputa, que tinha por finalidade garantir hegemonia e maior influência política, econômica e militar em todo o mundo se estendeu até 1991 e ficou conhecido como Guerra Fria.
A Guerra da Coreia (1950-1953) foi um dos conflitos decorrentes desta disputa de poder, na qual os EUA e URSS dividiram o país (até então era apenas uma Coreia) em duas nações distintas. Após intensos conflitos e combates cada vez mais sangrentos e duradouros, a separação entre Coreia do Norte (URSS: Comunismo) e Coreia do Sul (EUA: Capitalismo) foi definida.
O governo da Coréia do Norte ficou a cargo de Kim II-Sung, que ficou no poder de 1948 até 1994, ano de sua morte, sendo este considerado o líder fundador do país. Diante do declínio e consequente fim da URSS, graves problemas afetaram a nação, como a fome, miséria e recessão econômica, marcando a história e o desenvolvimento do país.
Devido as represálias e sanções econômicas, vindas de diversos países, inclusive dos EUA, a dinastia Kim transformou-se em um dos regimes comunistas mais fechados e isolados do mundo. Atualmente, o país é governado pela terceira geração, sob tutela de Kim Jong‑un.
Inaugurada em 1954, no centro da capital, a Praça Kim II-Sung reúne os principais monumentos e prédios governamentais do país, como o Ministério da Educação, das Relações Exteriores e da Agricultura, e os edifícios de cunho cultural, incluindo o Museu de História e a Biblioteca Nacional.
Atualmente a Praça, localizada na cidade de Pyongyang, é palco de grandes discursos, desfiles militares e cerimônias oficiais, além de ser o principal ponto turístico da capital do país. Sua construção, bem como a dos edifícios que a circundam, foi idealizada conforme um novo plano urbanístico, com o intuito de reconstruir a capital após a Guerra.
Por ser a nação mais fechada do mundo, a questão que surge é: existe turismo na Coreia do Norte? E a resposta é sim. Qualquer pessoa pode visitar o país. Entretanto, para isto, é necessário contratar os serviços de uma empresa de turismo, que seja autorizada pelo governo norte-coreano.
A empresa encaminhará pelo menos dois guias turísticos para receber o visitante logo na chegada ao aeroporto de Pyongyang, e são eles os responsáveis por conduzir os passeios em lugares já pré-estabelecidos, uma vez que a livre circulação não é permitida. Um dos locais mais visitados é a Biblioteca, na qual os guias fazem um longo tour, apresentando a cultura e algumas curiosidades, de forma a causar uma boa impressão sobre o país.
Onde está localizada e como funciona a Biblioteca Nacional norte-coreana?
Em um lugar de destaque na Praça Kim Il-sung, encontra-se o edifício da Biblioteca Nacional e Centro de Estudos, conhecida como The Grand People’s Study House, ou em tradução literal, A Grande Casa de Estudos de Pessoas, inaugurada no ano de 1982. De acordo com o líder e com a filosofia do governo, a Biblioteca foi fundada com o objetivo de ser o “centro do projeto de intelectualizar toda a sociedade e um santuário de aprendizado para todo o povo”.
A construção do prédio e sua arquitetura foi idealizado de forma a transparecer a imponência e o poder do estado, sendo utilizada como um objeto de poder. A Biblioteca ocupa uma área de mais de 100 mil metros quadrados, possui 10 andares e 64 metros de altura.
No prédio, existem salas de leitura com uma parte do acervo, bem como salas de computadores e de aula. As salas de leitura são divididas em seções e cada sala disponibiliza um conteúdo diferente. São cerca de 600 cômodos no total com a capacidade de acomodar mais de 12 mil usuários e visitantes por dia.
A Coreia do Norte apresenta a Biblioteca como sendo uma das maiores do mundo, com o acervo sendo formado por mais de 30 milhões de itens, dentre eles livros de origem e produção nacional e estrangeiros. Além das obras em língua coreana, encontram-se livros em francês, alemão, chinês e, inclusive, em português.
O acesso à Biblioteca é permitido para todos os cidadãos norte-coreanos e para os turistas que visitam o país. Para o empréstimo, os usuários norte-coreanos realizam um cadastro, para a criação do cartão de biblioteca, autorizando a solicitação e empréstimo de materiais.
Apenas os livros coreanos são liberados para empréstimo, as obras estrangeiras só podem ser retiradas mediante uma autorização do bibliotecário. Não é de conhecimento público quais os critérios utilizados para a autorização. Para a busca do material desejado, realiza-se a pesquisa no catálogo online, que também oferece a opção de imprimir uma lista com a relação dos itens das coleções do acervo.
Grande parte do acervo é fechado, sendo acessível apenas para bibliotecários e funcionários, ou seja, para se ter acesso aos materiais restritos, é necessário solicitá-los no balcão de atendimento, onde o funcionário, utilizando um computador, faz o pedido por meio de um código, e o material chega rapidamente por uma esteira de transporte automática.
E se houver atraso na devolução do material? A Biblioteca encaminhará uma notificação oficial avisando o atraso e solicitando a devolução imediata. O alerta pode até mesmo ser enviado diretamente ao empregador/chefe do usuário. Desta forma, o chefe deve incentivar o seu empregado a devolver o material o mais rápido possível.
Como a Coreia do Norte não possui Internet, desenvolveu-se um serviço de internet interna, que pode ser utilizada apenas dentro do país. Os habitantes locais podem utilizar os computadores localizados em salas especificas, com o objetivo de acessar a Intranet norte-coreana.
Apresentando a Biblioteca para os turistas estrangeiros
A visita guiada para turistas à Biblioteca começa com uma apresentação geral do edifício, que logo na entrada ergue-se uma suntuosa estátua do líder. Para proporcionar uma recepção mais acolhedora, são apresentados alguns livros ocidentais clássicos, que foram traduzidos para a língua coreana.
Obras em diversos idiomas também são mostradas. Se um turista com nacionalidade brasileira realizar a visita à Biblioteca, será mostrado livros em língua portuguesa. O funcionamento da Biblioteca também é apresentado. Os funcionários mostram de que forma pode se realizar as consultas no catálogo online.
Todos os materiais estão inseridos e catalogados em um sistema de biblioteca, e existem computadores disponíveis para fazer a busca (apenas acesso ao catálogo, sem internet). Os turistas podem buscar no computador um material, e se estiver no acervo fechado, realizam a solicitação deste aos funcionários do balcão de atendimento.
A visita é guiada a algumas salas específicas, onde encontram-se estantes cheias de livros, distribuídos em diversas seções e organizados por assuntos e idiomas. Em uma destas salas está exposto o acervo pessoal do líder fundador Kim II-Sung, doado por ele próprio.
Ao longo do tour, os guias reproduzem o discurso de seus líderes, enfatizando que a Biblioteca foi feita para que toda população pudesse ter educação, pois é a base e o futuro da nação. Os turistas podem observar exemplos do culto à personalidade, à adoração aos líderes do país, como pelos diversos retratos em exposição, por todos os ambientes da biblioteca.
No fim da visita, os turistas são levados ao terraço da Biblioteca, de onde é possível ver a cidade, prédios imponentes, monumentos e a praça principal.
A Biblioteca como o centro de estudos Juche
O termo Juche refere-se a ideologia oficial da Coreia do Norte, criada e implementada pelo líder governante Kim Il-sung (1948-1994) e, até hoje, é disseminada ao povo de diversas formas, por meio do rádio, da televisão, nas escolas, nos livros e na Biblioteca Nacional.
Todos estes canais são considerados meios de controle das autoridades norte-coreanas. Por meio da filosofia Juche, o governo difunde suas ideias e a imagem de poder dos governantes. O Juche é uma ideologia centrada no homem. Ela explica o papel e a função que se exerce no mundo.
Uma filosofia onde se diz que as massas são donas de tudo, e forjam seu próprio destino. Aponta que a construção e o progresso do socialismo surgem a partir das pessoas. Fala-se essencialmente que o homem é quem domina o mundo, com seu espírito criador, sua independência e sua consciência.
A Biblioteca é considerada o Centro Nacional de Estudos Juche. Dessa forma, entende-se que sua localização foi pensada de maneira estratégica, como forma de centralizar esses estudos em um único local e, assim, manter o controle.
A Biblioteca Nacional como modelo para o desenvolvimento de coleções
A Biblioteca Nacional tem a característica de servir como modelo para as demais bibliotecas do país, sejam elas públicas, acadêmicas ou especializadas. A Biblioteca é responsável por supervisionar e controlar diretamente todas atividades realizadas nas outras unidades de informação, como a contratação de práticas para o desenvolvimento das coleções.
Em outras palavras, todo bibliotecário recebe diretrizes diretamente da Biblioteca Nacional. Os bibliotecários nacionais são os responsáveis por definir a coleção que irá compor todos os acervos das bibliotecas do país. Cada um é responsável por uma área de conhecimento específica e suas disciplinas, padronizando assim toda a informação disponível nos acervos.
Por exemplo, o bibliotecário nacional da área de agricultura determina e define as coleções agrícolas que irá compor o acervo deste assunto, na Biblioteca Nacional, e nas demais bibliotecas de todo país.
Com exceção dos bibliotecários atuantes na Biblioteca Nacional, os profissionais das outras bibliotecas do país não têm autonomia ou liberdade para a tomada de decisões, pois existe uma hierarquia que deve ser obedecida, que não admite questionamentos ou alterações.
O Sistema de Bibliotecas reflete a organização política e econômica do país, na qual o governo central define todos os aspectos. É a Biblioteca Nacional que cria, dissemina e implanta as políticas relacionadas à biblioteconomia, sendo considerado uma grande ofensa e afronta se o profissional não seguir as ordens e regras estabelecidas.
Por que falar sobre este assunto?
A Biblioteca Nacional Norte-Coreana, diferente de outras bibliotecas nacionais, não tem quase nenhum artigo ou relato de experiência disponível. Percebe-se que a pesquisa acadêmica, ou mesmo a título de curiosidade, sobre este espaço, é quase inexistente, sobretudo na língua portuguesa.
O bibliotecário canadense Marc Kosciejew, doutor em ciência da informação, desenvolveu uma ampla pesquisa inédita sobre as bibliotecas da Coreia do Norte, sendo considerado pioneiro nesta área. O artigo, que foi dividido e publicado em duas partes na revista da Associação de Bibliotecas Canadense, chamado “Inside an Axis of Evil Library: A First-Hand Account of the North Korean Dear Leader’s Library System”, foi norteador para a elaboração deste artigo/reportagem.
Com este artigo, apresentamos a Biblioteca Nacional Norte-Coreana, a fim de compreender os aspectos e funcionamento de um espaço repositório e disseminador da informação, em um dos países mais isolados e desconhecidos do mundo, considerado não democrático.
Consideramos que, embora a Biblioteca Nacional da Coreia do Norte seja um instrumento de controle governamental da informação, ela oferece acesso ao conhecimento e cumpre o papel de fortalecer a ideologia implantada naquele país.
*Co-autores: Millena de Oliveira (bacharel em biblioteconomia pelo Centro Universitário Assunção – UNIFAI) e Ingrid Sales Gasques (aluna do 6° semestre de Biblioteconomia no Centro Universitário Assunção – UNIFAI).
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