Nos últimos anos se viu crescer no Brasil ataques à cultura em geral e aos segmentos de livro, leitura, literatura e bibliotecas em particular. Tentativas de censura a livros e exposições, por exemplo, se multiplicaram pelo país. Mas apesar desse cenário, o protagonismo destes temas tem aumentado, particularmente a partir das últimas eleições. Essa é a avaliação do bibliotecário e o subsecretário do Patrimônio Cultural do Governo do Distrito Federal, Cristian Brayner.
Segundo ele, nos oito últimos meses foram protocoladas na Câmara dos Deputados cerca de quarenta proposições envolvendo estes temas, num universo que passa das noventa propostas. Além disso, foi relançada recentemente no Congresso Nacional, sob a liderança da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS), que é bibliotecária de formação, a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro e da Leitura e da Escrita.
Esse crescente protagonismo dos temas de livro, leitura, literatura e bibliotecas no país se justificaria, segundo Brayner, pelo envolvimento que estes têm no ambiente de disputa política pela qual o país passa. “A cultura, embrulhada no binarismo tosco e virulento, se tornou objeto obrigatório na construção da pauta política, ora para enaltecer, ora para detratar determinados produtos culturais e seus setores da sociedade”, diz.
Nesta entrevista concedida ao bibliotecário e doutor em Políticas Públicas, Carlos Wellington Martins, Brayner faz uma análise do cenário atual das políticas públicas de cultura em geral e dos segmentos de livro, leitura, literatura e bibliotecas em particular no Brasil.
Como você percebe a relação entre política e cultura no Brasil por meio das políticas culturais efetivadas, tendo a democratização da leitura como centralidade nas ações do segmento livro, leitura, literatura e bibliotecas?
Tenho observado que a presença dos assuntos da cultura na esfera pública, incluindo a governamental, tem se mantido nos últimos anos. Até acredito que o seu protagonismo tenha aumentado, particularmente a partir das últimas eleições. Nos últimos vinte anos, nunca se falou tanto em museus e bibliotecas como atualmente! É a exposição polêmica, é o livro indecente… Há uma razão para isso: a cultura, embrulhada no binarismo tosco e virulento, se tornou objeto obrigatório na construção da pauta política, ora para enaltecer, ora para detratar determinados produtos culturais e seus setores da sociedade.
Recordo-me, agora, da recente convocatória do novo diretor da Funarte junto aos “artistas conservadores” em prol da criação de uma “máquina de guerra cultural”. Esse discurso de cruzada sinaliza, não apenas, o alto nível de tensão presente no território da cultura, mas do seu fortalecimento enquanto artefato político, capaz tanto de reformar ou deformar a sociedade, em particular os jovens e crianças.
A intensificação dessa relevância também pode ser observada na esfera específica da leitura e assuntos afins, incluindo o equipamento “biblioteca”. Basta consultar a agenda do Plenário e das Comissões Permanentes das duas Casas do Congresso Nacional. Somente nos oito últimos meses, foram protocoladas na Câmara dos Deputados cerca de quarenta proposições envolvendo livro, leitura, literatura e bibliotecas.
Entre 2017, um ano após o impeachment da presidente Dilma Roussef, e o dia de hoje, o número de projetos de lei apresentados e ainda em tramitação extrapolou os cinco anos anteriores. As temáticas das propostas legislativas apresentadas por parlamentares de legendas diversas são múltiplas, desde isenção de tributos na construção e equipagem de bibliotecas a presença obrigatória de certos títulos no acervo das bibliotecas públicas e escolares.
Entretanto, faço uma ressalva: a relação entre políticas públicas e a leitura, embora inconteste e cada vez mais evidente no cenário nacional, não pode ser facilmente mensurada a partir do que você intitulou de “políticas culturais efetivadas”. É importante, desde já, explicitar o desafio e, quem sabe, a impossibilidade de se estabelecer de forma inequívoca uma linha fronteiriça entre políticas culturais efetivadas e não efetivadas.
Penso, agora, por exemplo, na aprovação da PNLE [Política Nacional de Leitura e Escrita], celebrada efusivamente pelos corredores da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Qual o resultado efetivo da sua aprovação? Se pensarmos enquanto política pública, diria, sem pestanejar: nenhum.
Afinal de contas, ela sequer foi regulamentada, apesar das promessas e da pressão. Entretanto, a tramitação da proposição em questão mobilizou diversos estados e municípios a construírem os seus próprios planos de livro e leitura, o que foi benéfico.
Antonio Rubim (2015) afirma que as políticas culturais brasileiras são acompanhadas por três tradições: o autoritarismo, caráter tardio, descontinuidades e fragilidade institucional. Em sua percepção, como esta afirmação se materializa nas políticas para livro, leitura, literatura e bibliotecas?
Não deixa de ser inquietante evocar o autoritarismo numa república presidencialista. Contudo, há que se reconhecer que as políticas culturais no Brasil são costumeiramente balizadas por elementos autoritários. Creio que o mais impactante é a ausência de uma mobilização intensa do povo sobre as pautas culturais. A maior parte da população brasileira está completamente alijada do processo de fazer cultura.
A falta de desenvoltura das massas frente ao universo de papeis, assinaturas e carimbos das repartições amedronta os não iniciados, dando lugar a grupos de experts, verdadeiros petits comités que, não raramente, em nome do povo, estabelecem as prioridades e as estratégias de narrativa em torno de tais políticas e de seus orçamentos.
Desse modo, a apatia coletiva, alimentada pela também indiferença do Estado em retirar do tabuleiro da política os “dados viciados”, garantindo, assim, a justeza do jogo, faz com que boa parte da cultura continue sendo financiada para uma minoria. Isso é corroborado pelos dados: embora a maior parte da população do país encare a leitura como prática de deleite e de distração, projetos nessa área são os ainda menos contemplados pelos fundos governamentais.
Os editais, por exemplo, perpetuam essa insensibilidade, já que os agentes de leitura, leigos na prática de atuar nestas esferas de poder, não conseguem transpor o fosso linguístico desses instrumentos, marcados por um forte ranço jurídico.
Consultemos os projetos aprovados via Lei Rouanet e fundos estaduais de cultura, e iremos constatar que a pauta do livro ocupa a base da pirâmide orçamentária. O mesmo vale quanto a nossa participação nas emendas parlamentares individuais e de bancada.
Diante desse quadro desfavorável, o desafio é duplo: primeiro, exigir maior simplicidade por parte do Estado no processo de construção e de comunicação de suas pautas; segundo, e talvez mais importante, capacitar política e administrativamente os agentes de leitura para atuarem com maestria no cenário público, garantindo, assim, recursos adequados para os projetos de suas comunidades. Conhecer as entranhas do Estado é o primeiro passo para fortalecer nossas pautas.
O caráter tardio é outra marca de nossas políticas de leitura. Temos dificuldade em preenchermos os hiatos. Enquanto diversos países da América Latina já tutelam sua memória bibliográfica digital, o Brasil sequer custodia sua produção bibliográfica analógica. Em dezembro próximo completaremos 15 anos de descaso em relação ao tema, fruto amargo da não regulamentação da Lei n. 10.994, que dispõe a respeito do depósito legal.
E finalmente, sofremos com as descontinuidades. Em virtude da cultura do descaso frente ao universo normativo, acrescido de uma hermenêutica frouxa em obedecer ao firmado em lei, boas práticas são, simplesmente, abandonadas ao prazer de quem exerce o poder institucionalizado. O FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação], por exemplo, apresentou, em dezembro de 2018 uma minuta de portaria ao Ministro da Educação estabelecendo parâmetros para as bibliotecas escolares, fruto de um trabalho primoroso desenvolvido por diversos setores da sociedade brasileira. Até o presente momento não obtivemos nenhuma resposta a esse respeito.
O Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) já conta com mais de dez anos de implantação. Quais as razões para os avanços, retrocessos e estagnações percebidos durante este percurso?
Acredito que o maior fruto do PNLL tenha sido a construção de uma narrativa calorosa e promissora em prol da democratização da leitura no país. Pouco antes de 2006, ano de assinatura da Portaria Interministerial que deu origem ao PNLL, assistimos a um movimento intenso, encabeçado por diversos atores, comprometidos em elevar o status do livro como bem simbólico, garantindo maior participação dos setores da leitura no cenário político nacional.
Isso refletiu na qualidade dos diálogos travados desde então, com pontos de tensão e colaboração, mas no próprio advento de novas realidades. A biblioteca comunitária, por exemplo, reapareceu de modo tão distinto, com aspirações tão particulares, não raramente vinculadas a movimentos políticos e sociais, como o combate ao racismo e a pobreza, que poderíamos falar em surgimento de um novo equipamento cultural no país.
Eu a encaro como o fruto mais genuíno do Eixo 2 do PNLL. Entretanto, desde a sanção da Lei 13.696, em 2018, que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), assistimos a um arrefecimento envolvendo essas pautas. De fato, até o presente momento, o PNLE não foi regulamentado e o seu cargo de secretário-Executivo está vago. É preciso atuar, com o traquejo devido, na condução dessas tratativas junto ao Palácio do Palácio.
Diante do atual cenário político brasileiro, qual a prospecção que pode ser feita para as políticas para o livro, leitura, literatura e bibliotecas e para a democratização do livro e leitura?
Eu diria que as políticas públicas da leitura, embora consigam estabelecer certos níveis de performance em alguns setores da vida pública, particularmente o Parlamento, são caracterizadas pela incipiência. De fato, embora suas pautas sejam naturalmente acolhidas como justas e necessárias pelos atores do Estado – isso se comprova pelo número considerável de proposições tramitando no Congresso Nacional, como já citado – há uma dificuldade considerável de serem sustentadas por esses mesmos personagens, especialmente quando envolvem receitas.
Uma política nacional de leitura que não estabelece a fonte de recurso para as ações é letra morta. Tem o mesmo destino um decreto que cria um sistema de bibliotecas públicas e uma lei ordinária que torna obrigatória a presença das bibliotecas em nossas escolas. Embora o discurso do agente político seja considerado prática de política pública genuína, o nosso desafio é reduzir a distância entre o anunciado e o assegurado.
Passadas as celebrações das últimas conquistas legislativas manifestas no lançamento da Frente Parlamentar do Livro, precisamos trilhar o caminho melindroso, mas necessário da boa política. Como diria Foucault: “Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.” Em outros termos, o momento é de investir nas negociações, e apesar dos riscos, o melhor instrumento é a ponderação refletida na linguagem.
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