Por Isabel Clemente, da Época.
Em 1993, a jornalista Claudia Werneck lançou um livro-reportagem sobre Síndrome de Down e recebeu de volta 3.000 cartas de famílias desesperadas atrás de ajuda, algo que transformou profunda e definitivamente a percepção daquela mulher sobre a necessidade de se falar em inclusão. Hoje, o tema está em toda parte. Há leis sobre acessibilidade, conselhos, regras, mas o país continua discriminando, diz ela. “Pessoas com deficiência não são detalhes da natureza, mas parte intrínseca dessa natureza”, afirma, em entrevista à Época, diante do florido jardim de sua casa, na Barra da Tijuca, no Rio. Claudia é fundadora da Escola de Gente, uma ONG que vem colecionando prêmios e reconhecimento internacionais ao se dedicar a transformar políticas públicas em políticas públicas inclusivas. Seu mais recente e inovador projeto é o livro infantil Sonhos do Dia, o primeiro do país publicado em nove formatos permitindo sua leitura por todas as crianças.
Os nove formatos são resultado de uma combinação de linguagem e tecnologia. Além do livro impresso, há o exemplar em alto relevo e braile, a versão falada em CDs e DVDs, com e sem audiodescrição – necessária para pessoas que não enxergam. O livro também foi realizado em CD no formato Daisy, que permite fazer anotações e sublinhar trechos. Transformado em filme, a história infantil em forma de animação com audiodescrição, legenda em português, além da trilha sonora, atende diversas necessidades, cegos, surdos e analfabetos. O filme traduzido para libras se torna acessível a quem não escuta nem lê em português.
O projeto inclui uma instalação interativa no Centro Cultural do Banco do Brasil, do Rio, que será inaugurada dia 5 de junho, para que as crianças possam experimentar – por cinco dias – as diversas formas de ler e conhecer uma história. Escritora com mais de 14 livros publicados, e 250 mil exemplares vendidos, Claudia Werneck acredita no poder dos sonhos e da comunicação desde que sonhou e conseguiu falar com astronautas por carta, aos 12 anos. Abaixo, cenas dessa entrevista à ÉPOCA.
ÉPOCA – Um livro em nove formatos é um projeto caro. Quanto tempo um sonho desse demora para virar realidade?
Claudia Werneck – Isso é o sonho de uma vida, da minha e do meu marido que é meu editor e o único do país especializado em formatos acessíveis. Estamos falando de um projeto que envolve técnica, paixão, uma curiosidade enorme e muita força para romper barreiras. Nós pensamos em fazer livros acessíveis desde 1993 e já estamos vislumbrando um novo formato para o próximo livro: letra ampliada para crianças com baixa visão. Pensamos também num livro com linguagem simples, o mais complicado de todos porque não se fala muito nisso no Brasil. Eu vi na Europa, sobretudo na Alemanha: livro com falas curtas para pessoas com deficiência intelectual. Por que não? Cada formato exige uma sensibilidade, uma inteligência e um percepção específicas. É um projeto caro sim, não tem dinheiro para o folder, por exemplo. Falta dinheiro pra tudo. O que queremos é um único formato que atenda todas as crianças. Uma aventura que exige pesquisa porque uma coisa é acessibilidade para adulto, outra para criança. O Brasil ainda não percebe todo o valor da criança e não estou falando de governo, empresas e mídia não. É a família, toda e qualquer família porque o olhar adulto sobre a criança ainda é muito descontextualizado, não leva em conta mesmo o que é direito da criança. Essa discussão sobre maioridade penal toda errada é levar ao extremo um problema disfarçado no dia a dia com amor e cuidado. A pessoa cuida, ama, leva para vacinar, mas não reconhece o papel da criança.
ÉPOCA – A senhora está falando de uma falsa comunicação entre adultos e crianças?
Claudia – Só há comunicação quando as pessoas que se comunicam se percebem como tendo o mesmo valor, e isso não acontece quando alguém com deficiência conversa com alguém sem deficiência, por exemplo. É como se a pessoa com deficiência fosse um ser humano de menor valor, porque lhe faltaria algo, estaria eternamente em desvantagem. O mesmo acontece entre adultos e crianças. A criança pode receber carinho de sua família e, ao mesmo tempo, ser desrespeitada porque as pessoas a sua volta já cresceram e ela está em fase de desenvolvimento, e isso se reflete na comunicação intergeracional. A criança precisa, sim, da proteção integral do adulto, mas traz em si um valor humano inteiro, pronto, inquestionável. Para algumas pessoas é mais fácil desrespeitar uma criança do que um adulto. Nunca parei para estudar muito isso, mas quer um exemplo? Já reparou como as pessoas se sentem livres para tocar um bebê quando acabam de conhecê-lo? Você não faz isso com um adulto. Muitos argumentam que é carinho. Tá bem, mas você não tem afeto com aquela criança que muitas vezes acabou de conhecer para ficar tocando no corpo dela, mesmo que seja para fazer carinho. Tem homem que acha um absurdo bater em mulher, mas bate na filha, que é uma mulher pequena……não consigo entender isso. Concorda que é estranho? Por isso, refletir sobre os Direitos da Criança na perspectiva da acessibilidade e do direito à comunicação é um debate novo. É um tema pouco conhecido, um arcabouço teórico que sequer está sistematizado no universo dos Direitos das Crianças. Nesse livro, eu peço que o leitor ajude a espalhar a notícia de que ele existe também para quem não vê. É uma tentativa de responsabilizar uma criança pela outra. Se eu gero na criança que enxerga o compromisso de avisar à criança que não enxerga que o conteúdo do livro está em outras mídias, eu crio um vínculo de proteção mútua. A acessibilidade não é apenas um instrumento para a garantia de direitos, é um direito por si só. Um direito relacionado com o direito à vida porque só está vivo no planeta hoje quem tem algum nível de acessibilidade. Isolado, o ser humano morre em vários sentidos.
ÉPOCA – Propostas inclusivas são sempre bandeiras de pessoas idealistas e teimosas o suficiente para levá-las adiante, o que é uma carga difícil de carregar. Além do mais, são propostas que nunca despertam interesse comercial. Como a senhora supera essas dificuldades?
Claudia – É muito difícil mesmo. Muito raro ter interesse das livrarias ou das editoras num livro em sete formatos acessíveis. É muito caro, tanto que esse livro, quando foi editado pela primeira vez em 2001, teve apoio via Lei Rouanet, com patrocínio da White Martins. Essa versão ampliada tem patrocínio de novo da White e do Criança Esperança, porque os outros parceiros não entram com dinheiro. Esse é um trabalho que precisa de parcerias institucionais fortes, ou não anda. Eu procuro juntar todos em torno disso, mas não dá para fazer sem incentivo. Só que a gente faz de qualquer jeito (ri).
ÉPOCA – O alto custo não torna um projeto de acessibilidade inacessível?
Claudia – Te pergunto ‘quanto custa não discriminar?’ Se eu faço um livro só impresso em tinta, eu sei exatamente o preço da discriminação. O X a mais do livro que não discrimina não é o “a mais”, mas o certo porque estamos no mundo do “X a menos”. Quanto custa discriminar uma pessoa surda num vídeo sobre doenças sexualmente transmissíveis? Custa o preço de um vídeo executado sem um tradutor para libras. O mesmo vale para um panfleto de interesse maior que não seja elaborado em braile. Sou radical nesse ponto. Um livro impresso é um livro que discrimina. O desafio é calcular quanto custa não discriminar. Você pensa que se eu entrasse com esse projeto de um livro em sete formatos num edital eu ganharia? Nunca. As pessoas fogem, não entendem a utilidade disso. A minha organização, Escola de Gente, lida com ineditismo, gera emprego, em todo o Brasil, mas precisa de parceiros que acreditem nessa força, algo especial e muito difícil. Em meu livro “Ninguém mais vai ser bonzinho”, de 1997, eu falo que na sociedade inclusiva – uma proposta da ONU de 1990 (Toda pessoa tem direito de contribuir com seu talento para o bem comum) – seremos todos cúmplices, por mais diferentes que as pessoas pareçam. Por isso estar no lugar do bonzinho me chateia. Esse projeto nasceu do meu trabalho jornalístico, em cima de um tema de interesse público, que trata do futuro do país, tão importante quanto qualquer escândalo ou notícia sobre o Orçamento. O esforço é muito grande mas há muita dificuldade para incluir esse tema no debate corrente por isso sigo testando estratégias. A Tatá (Tatá Werneck, atriz), minha filha, criou um grupo de teatro na escola em 2003. Eu e meu marido damos oficina para formação de mídias acessíveis nas favelas, inclusive com noções de audiodescrição para quem não enxerga. Tento tudo que posso e sempre focada na juventude porque os jovens são os melhores agentes de transformação embora meu público seja a criança. Os jovens são pediatras que dão plantão, pedagogos recém-formados, terão filhos e saberão educar melhor.
ÉPOCA – O que a senhora espera desse livro em nove formatos?
Claudia – Este livro avança no debate. Claro que a tendência não é inviabilizar o livro. Quero que todos juntos pensem soluções. Existem formatos totalmente desconhecidos do público como o formato DAISY. Um folder no formato DAISY num CD não é caro. O problema é que, ao pensar inclusão, você altera os tempos. Se tem uma foto, é preciso descrevê-la. O tempo da comunicação da acessibilidade é incompatível com os tempos atuais. Somos cada vez mais impulsionados para um tempo em que os mais rápidos são melhores. Quero mostrar que todas as formas de se expressar são legítimas. No entanto, não existe um encontro para esse intercâmbio no Brasil. Acessibilidade não é para as pessoas com deficiência acessarem o saber dos não-deficientes. É uma troca. As reflexões sobre sustentabilidade e saídas para o planeta não darão certo porque ignoram as perspectivas de uma população enorme que tem um saber que não entra na busca dessas novas soluções. Ninguém está discutindo, por exemplo, num sistema de prevenção de desastres com avisos sonoros, como educar a população para avisar uma pessoa surda que o barulho está no ar. Se não fizerem isso, não adianta. Acessibilidade envolve também mudança de atitude e expansão de consciência, é o principal instrumento de garantia de Direitos Humanos. Não é um favor aos deficientes. A sociedade inclusiva é revolucionária porque não procura botar para dentro quem está fora, ela reconhece todos como seres de igual valor. A sociedade hoje se pauta por discriminação em todos os pontos de vista e não se dá conta disso.
ÉPOCA – Voltando ao tema do seu livro infantil, a senhora sonha mais acordada ou dormindo?
Claudia – Bem mais acordada (ri). Esse livro é a minha história. A história que mais me mobilizou na vida foi a ida dos astronautas para a lua. Eu tinha 12 anos. Meu pai, historiador, e minha mãe, geógrafa, ambos professores, acordaram a mim e a meu irmão de madrugada para ver a aterrissagem. E eu já estava toda agitada com a expectativa daquela missão lunar. Morava no Grajaú. Depois, fiquei tão emocionada, que disse para o meu pai que queria enviar uma carta para os astronautas para contar a minha emoção. O que achei bonito no meu pai foi ele me estimular. Escrevi, minha tia traduziu e enviamos a carta. Eles me responderam com foto e tudo. Eu me senti pertencendo ao mundo, uma menina que se comunicava com os homens mais importantes do planeta! Nasceu ali a força que tenho e com o entendimento que meus pais tiveram do meu desejo de comunicar. Foi uma das coisas mais importantes que meus pais fizeram por mim. Até hoje quando falo dos meus sonhos pouca gente acredita em mim, estou até habituada. Todo sonho dá trabalho e meu sonho dá preguiça nas pessoas (ri). Mas eu sonho, arranjo dinheiro pro sonho, participo do sonho, faço oficinas do sonho, presto contas do sonho e acabo com minha saúde. Invisto muita energia nisso. Fico contente porque vejo que meus filhos também sonham muito acordados, são corajosos e perseverantes. Crianças precisam sonhar acordadas e não sei por que adulto não gosta de ver criança com aquele olhar parado, manda logo escovar os dentes, fazer alguma coisa. É no sonho que ela exercita a capacidade de mudar o que ela quer.
ÉPOCA – E como a senhora alimenta seus sonhos e não os deixa morrer?
Claudia – Tenho cuidado para que meus sonhos não sejam uma questão de sobrevivência porque fica muito pesado, mas a pessoa que mais alimenta meus sonhos é meu marido. Estou com ele desde os 18 anos, casados desde 1979, um cara que já fez de tudo, muito perseverante. Minha mãe também é um estímulo, e meus filhos, pela forma como eu vejo eles indo atrás dos sonhos. Tudo isso é meu modo de existir.
ÉPOCA – A senhora já tem mais de 20 anos de campanha pela acessibilidade. Hoje em dia ficou mais fácil?
Claudia – Não, naquele tempo não tinha política inclusiva nem lei e a gente brigava por isso. Hoje tem lei e política inclusiva mas a luta é para implementá-las. As pessoas avançaram pouco. Hoje brigo para que a lei não seja modificada porque tem sempre gente querendo derrubar as leis, para que educação inclusiva seja opcional. Eu falo hoje o que eu falava há 20 anos e ainda hoje não sou entendida totalmente, o que me impede de entrar em temas novos. Meu sonho é maior do que a Escola de Gente. Acessibilidade é liberdade e as pessoas se sentem profundamente ameaçadas ao enxergar o mundo como ele é. No início a luta era uma, hoje é para não regredir o que requer um esforço maior porque a sociedade evoluiu e as pessoas aprenderam a disfarçar seus modos de discriminar. Como o tema está na mídia, acham que estamos evoluindo como se fosse a prova de que há um fluxo de conhecimento suficiente circulando. Não é a mesma coisa. As pessoas hoje discriminam com mais delicadeza. Só isso. O que eu estou propondo é que se faça livros, escolas e hospitais para seres que existem e não para seres que as pessoas gostariam que existissem, idealizados. Minha proposta é sairmos desse delírio coletivo e desenvolvermos a verdadeira ética do indivíduo com sua espécie e entender que pessoas com deficiência não são detalhes da natureza, mas parte intrínseca dela. Não podem continuar sendo excluídas dos processos de participação porque todos perdemos com isso.
ÉPOCA – A senhora se sentiu discriminada por abraçar uma causa sem ser deficiente nem ter filhos deficientes?
Claudia – Totalmente. A primeira resistência veio da própria classe jornalística que dizia que pena que você abandonou o Jornalismo. Quer dizer que pode ter jornalista de esporte, de gastronomia mas não de inclusão? E isso foi doído porque a minha sensação era “agora que eu estou entendendo o que é ser jornalista”, agora que eu estou testando os limites da minha profissão, dizem que não sou mais jornalista? Jornalista também é agente da história. Em 1993, quando recebi 3.000 cartas por causa do meu primeiro livro, sobre Síndrome de Down, envolvendo minha família toda. A primeira dor veio da minha classe. Depois virei objeto estranho para todas as classes. Para os educadores, eu era só uma jornalista. Para os médicos, eu também era só uma jornalista. Eu vivi a exclusão de uma causa e hoje em dia a discriminação é porque eu não sou deficiente. Muitos deficientes gostam do lema “Nada sobre nós sem nós”, mas eu posso ser a ponte e eu tenho o direito de me interessar por qualquer causa. As pessoas tendem a achar que a pessoa só tem credibilidade para lutar por uma causa se ela for a causa. Acabou que hoje eu tenho um sobrinho com deficiência, falo disso com naturalidade, mas eu não entrei nessa causa por causa do meu sobrinho, ele é apenas mais uma prova de que a deficiência faz parte da humanidade e eu quis contar isso para todo mundo, era um tema desconhecido e mudou toda a nossa vida. A proposta de inclusão vem sendo sempre adiada como se fosse algo voltado só para aquela família azarada. Formar crianças com a mentalidade da acessibilidade é dar vez a um novo modelo de sociedade com pessoas mais livres e mais responsáveis.
Comentários
Comentários