Rhuann Fernandes é Cientista Social e mestrando do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atua como professor de Filosofia no pré-vestibular comunitário na Organização Comunitária Nós por Nós que idealizou juntamente com amigos no bairro do Jardim Catarina, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Rhuann acaba de lançar o primeiro livro brasileiro a abordar os diversos rituais associados ao “Lobolo”, rito tradicional que une conjugadamente duas pessoas e o universo histórico dos antepassados numa relação complexa de parentesco. Publicado pela editora Multifoco, a pesquisa é fruto de um intercâmbio que fez no sul de Moçambique. “Realizei dois trabalhos de campo, com observações participantes e desenvolvi a etnografia que culminou no livro. Poder participar, atravessar a experiência de dois casamentos em dois lugares bem distintos em Moçambique foi realmente incrível”, ressalta.
Nesta entrevista à Biblioo, Rhuann fala das inspirações que o levou a desenvolver tal pesquisa, dos ataques as religiões de matrizes africanas no Brasil e avalia a atual situação política do país.
Como iniciou sua relação com o livro e a leitura?
Bem, não tive influências positivas na família ou de amigos em relação ao ato de ler. Apesar de ter ao lado da minha casa a existência de uma Biblioteca Comunitária, não era incentivado, achava chato permanecer naquele lugar. Na verdade, pouco me interessava. Acredito que essa ausência de capital cultural, de algum recurso que colocasse aquilo como importante fez com que demorasse a desenvolver atenção pelo livro e pela biblioteca. Até que um certo dia, uma prima minha, Viviane Nascimento, por estar trabalhando nessa Biblioteca, me chamou na porta e disse que tinha um livro para mim, que lembrou de mim pela descrição na contracapa. Daí, ela me deu o livro que mudaria minha vida e o meu rumo: Autobiografia de Malcolm X. Foi o primeiro livro que li consciente, por querer ler, aos 16 anos. O Malcolm foi preso e, na prisão, desenvolveu o hábito por leitura e por sede de conhecimento. Ele tem várias reflexões de como o conhecimento, de como a leitura, pode mudar sua vida e te fazer uma nova pessoa. Foi aí que comecei a valorizar a leitura e também os estudos.
Seu primeiro livro intitulado, “Casamento Tradicional Bantu: O Lobolo no Sul de Moçambique”, acabou de ser lançado pela editora Multifoco. A obra é resultado de uma pesquisa de campo que você realizou em Moçambique. Como se deu esse processo até chegar na publicação do livro?
Antes de ingressar na Universidade, uma amiga minha falou que na graduação havia possibilidades de realizar intercâmbio para outros países. Desde então, sempre sonhei com isso. Ao ingressar na UERJ, a primeira coisa que fiz foi verificar as oportunidades de intercâmbio. Já no quarto período, quando me aproximei do movimento negro e comecei a participar de grupo de estudos, desenvolvi uma afinidade maior com o continente africano por conta da ancestralidade, por conta da influência da cultura afro-brasileira que tive desde a infância e comecei a valorizar, de fato, naquele momento. Assim que pintou uma oportunidade de bolsa de intercâmbio por meio de um edital interno da UERJ, fiz a minha inscrição. Lembro que as mulheres responsáveis pela inscrição me perguntaram assustadas: “você vai para África?”. Isso pelo fato de ter a opção de ter ido para outros países, como Alemanha, Inglaterra, EUA etc. e optar por Moçambique. Fui o primeiro da UERJ a ir para África, pois na realidade, há pouco interesse, uma vez que vemos esse continente ainda numa ótica de subdesenvolvimento.
“O que mais me motivou é que é o primeiro livro no Brasil sobre o tema, o que para mim, enquanto uma pessoa negra, é muito importante”
Quando cheguei em Moçambique, já tinha um tema de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) pronto e fui para lá exatamente para estudar o tema, que era “Contribuições da Teoria Pós-colonial para o Campo Sociológico”. Tinha dois capítulos. Porém, um professor da UERJ, Eduardo Ribeiro, falou para mim em uma conversa informal: “deixe as possibilidades abertas, talvez você possa se interessar em outros temas, até mesmo questões relacionadas a Moçambique”. Foi o que realmente aconteceu. Na disciplina de “Antropologia Cultural Africana”, me deparei com o fenômeno do casamento tradicional no Sul do país, o lobolo. Comecei a ler a respeito, ler o lobolo na história, como ele era praticado no período pré-colonial, como ele foi modificado pela colonização e como foi interpretado após a independência pelo governo marxista, que, como defendo no livro, foi uma experiência de “Independência colonizada”, já que o governo da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) – partido que governa o país até hoje – tentou exterminar a tradição.
Com acesso a todo esse conteúdo e com um professor disposto a me orientar, resolvi trocar o tema da monografia e estudar o “Lobolo Pós-colonial”. Ou seja, fiz uma conexão entre os dois temas. Para mim, foi isso que deixou o trabalho e rico e diferenciado. Depois de ter recebido toda carga teórica criticamente, realizei dois trabalhos de campo, com observações participantes e daí desenvolvi a etnografia que culminou no livro. Poder participar, atravessar a experiência de dois casamentos em dois lugares bem distintos em Moçambique foi realmente incrível. Trata-se de uma riqueza cultural extraordinária. Fiz várias famílias e várias amizades, o que facilitou o convívio e também os trabalhos de campo.
Após seis meses no Brasil, pude, enfim, defender essa pesquisa. Até então, desconhecida pelos meus professores, pela banca e amigos. Fui o primeiro da UERJ a falar sobre o tema, apesar do casamento bantu, o lobolo, ser um debate antropológico antigo, pois envolve temáticas clássicas como parentesco, performance e espiritualidade. A defesa foi incrível, ganhei a nota máxima e, ali, tive a certeza que o trabalho merecia ser publicado. Naquela altura, já havia recebido a proposta da editora para publicação.
O que mais me motivou é que é o primeiro livro no Brasil sobre o tema, o que para mim, enquanto uma pessoa negra, é muito importante. Meu objetivo com o livro, com todo processo, foi expandir nossos horizontes sobre outras contribuições civilizatórias, de povos que foram responsáveis de desenvolver o Brasil. Apesar de o Brasil ter recebido incomensuráveis contribuições civilizatórias de povos africanos, entre os quais se destacam os bantu, temos pouco entendimento e aplicação das formas de organização social desses povos e suas cosmovisões em nosso contexto, em termos de suas instituições, tal como o casamento. Nesse sentido, as respostas para nossa sociabilidade têm como espelho a lógica eurocêntrica, interpretada como a mais avançada. O monismo ocidental reduz e impede as possibilidades de saber e de enunciação da verdade à dinâmica cultural do centro europeu. Assim, a forma mais evidente de matrimônio no Brasil está orientada pela monogamia do modelo judaico-cristão que se estrutura sob enunciados utilitaristas e normativos. Essa concepção de conjugalidade é assentada por discursos moralistas que subvertem culturas indesejadas pela lógica ocidental. Essa foi uma das principais razões, das motivações, de publicar esse livro.
“Os ataques que religiões de matriz africana, de valores africanos/afro-brasileiro e que povos indígenas sofrem é pelo fato de ocorrer uma espécie de epistemicídio, uma forma de tentar anular qualquer possibilidade de conhecimento sobre maneiras de organizar o mundo que não a ocidental”
No livro, você fala dos diversos rituais associados ao lobolo, rito tradicional que une conjugalmente duas pessoas e o universo histórico dos antepassados numa relação complexa de parentesco. No Brasil, temos diversos ataques aos rituais e a tradição dos terreiros do Candomblé que se estende também aos rituais e tradições indígenas. Como você avalia essas questões?
Bem, sou contrário ao discurso simplista acerca da dicotomia “intolerância/tolerância. Quando dizemos que somos tolerantes a algo, significa dizer que reconheço aquilo que cultuo e que não há problemas de reconhecer e respeitar o que você cultua. A questão é que esse tipo de argumento não produz discurso crítico sobre o que é hegemônico e também não deixa a pessoa sair de sua zona de conforto. Não basta só respeitar, deve-se ter uma atitude crítica frente as consequências negativas dessa hegemonia. Por exemplo, um monogâmico pode reconhecer que a maneira pela qual ele se relaciona é comum, enquanto outras formas de relação, de conjugalidade, são observadas como negativas pelo fato de compartilharmos de uma moralidade/mentalidade situada no seio da cultura judaico-cristã. Nesse sentido, pessoas que querem praticar a poligamia são impedidas, ora pelo direito, ora pelo julgamento que as outras pessoas farão ao observar esse tipo de relação. A pergunta é: basta o monogâmico tolerar outras formas de relação? Para mim, não. Ele deve também ter uma postura crítica frente ao discurso hipócrita e normativo da monogamia sobre exclusividade sexual e problematizar os principais aspectos da monogamia, como a própria ideia de traição. Assim, a pessoa foge de um discurso passivo de “tolerar o diferente” e consolida uma postura crítica sobre o que ela própria vive.
Fiz essa pequena alusão para falar do cristianismo e sua hegemonia no Brasil. Os ataques que religiões de matriz africana, de valores africanos/afro-brasileiro e que povos indígenas sofrem é pelo fato de ocorrer uma espécie de epistemicídio, uma forma de tentar anular qualquer possibilidade de conhecimento sobre maneiras de organizar o mundo que não a ocidental. A depredação, os ataques, as mortes, seriam a consequência última disso, desse processo de colonização mental, de uma educação que não nos oferece possibilidades outras de viver, de experimentar a vida. Por isso, o discurso de tolerância/intolerância é ingênuo e insuficiente, pois pressupõe em seu cerne, uma não-ação por parte do que é hegemônico.
É a mesma coisa que um branco dizer que não é racista e que ama e respeita os valores dos negros, mas não procurar criar alternativas de educar o seu próprio grupo racial ou alternativas para diminuir o distanciamento socioeconômico entre negros e brancos no Brasil. Não estou dizendo que a pessoa precisa fazer ações grandiosas, mas pequenas ações no dia a dia já contribuem para a causa.
Você também é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Qual a temática de pesquisa que você escolheu para o referido mestrado?
Olha, no primeiro momento eu havia escolhido um campo muito distante daquilo que tratei em minha monografia, mais voltado para sociologia: “Estratificação e Desigualdade Social no Brasil”. Um campo que gosto bastante, no qual tenho alguns artigos e produções. Dentro dele, discutiria as desigualdades raciais no ensino superior. Contudo, recentemente deixei de lado esse projeto e voltei minha atenção para outro campo: “Antropologia e Sociologia das Emoções”, que tem mais a ver com minha trajetória recente. Isso ocorreu muito por influência da minha orientadora, que está comigo desde a graduação, a Cláudia Barcellos Rezende. Ela é uma das maiores especialistas em Antropologia das Emoções no Brasil.
O meu interesse no campo vem pela influência que tive do tema que desenvolvi, sobre o lobolo, em que abordei o tema de relações amorosas, afetos e conjugalidade. Daí, pensei, “sou bom nisso, quero estudar emoções”. Mas me perguntei o que estudaria. Com isso, cheguei à conclusão de que falaria sobre amor, mais especificamente sobre relações amorosas entre negras e negros no Rio de Janeiro. Mas, não queria falar sobre afetos comuns, queria falar de implicações políticas e os impactos que as pessoas negras sofrem ao assumir relações não-monogâmicas. Assim, cheguei ao tema “Relações afetivas não-monogâmicas entre negr@s: Discursos, Práticas e Reinvenções”.
Abordar esse tema na ótica da antropologia das emoções é verificar a dimensão moral do sentimento, é abordar as emoções não como um mero estado subjetivo, como geralmente fazem os psicólogos e psicanalistas, mas como discursos que permeiam relações de poder. Ou seja, os efeitos das práticas discursivas, não como algo piscobiologizante, mas sim como elementos de práticas ideológicas locais que envolvem negociações sobre o significado de eventos. Assim, a emoção em meu trabalho é abordada como idioma que define e negocia as relações sociais entre uma pessoa e outra, entre os grupos etc.
“Nós temos uma ausência de conhecimento básico sobre nossa realidade social e, para mim, isso se dá pelo fato de naturalizarmos as injustiças sociais, colocando a culpa nos políticos e na nossa corrupção, sem jamais olhar para o mercado, sem olhar para nossa elite dominante, uma elite podre, a elite que mais concentra renda no mundo”
Como Cientista Social de que maneira você avalia a situação em que o Brasil atravessa atualmente?
Uma das piores possíveis. Não sou tão otimista em relação ao nosso momento e muito menos após esta pandemia. O que me assusta é o fato de que muitos brasileiros não sabiam de que mais da metade do país vive na pobreza, ficaram assustados quando foi divulgado que crianças iam para escola pública só para comer. Essa pandemia trouxe essa triste realidade aos nossos olhos. Nós temos uma ausência de conhecimento básico sobre nossa realidade social e, para mim, isso se dá pelo fato de naturalizarmos as injustiças sociais, colocando a culpa nos políticos e na nossa corrupção, sem jamais olhar para o mercado, sem olhar para nossa elite dominante, uma elite podre, a elite que mais concentra renda no mundo. E isso se dá, claramente, pelo fato de não identificarmos a escravidão e seus efeitos que está associada diretamente ao abandono secular das classes mais subalternas, em sua maioria negra.
O pânico moral trazido por Bolsonaro potencializou ainda mais nossa vontade de querer ser “desenvolvido”, mas sem jamais olhar para os fatores que impedem o nosso “desenvolvimento”. Desde a eleição desse ser, nós estamos em crise e, infelizmente, após a pandemia, essa crise se atenuará e quem pagará pelas recessões econômicas seremos nós. Para mim, o momento atual expõe a fragilidade política de nossa democracia, sobretudo no que se refere ao acesso a recursos escassos.
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