A interdição policial da performance do paranaense Maikon K em julho deste ano foi o prenúncio da tsunami conservadora e criminalizante que se espalhou pelo país. Em seguida, outra interdição, desta vez judicial, do espetáculo “O Evangelho segundo Jesus Rainha do Céu”. Quase na sequência, o cancelamento da exposição “Queermuseum – cartografias da diferença” em Porto Alegre, da performance “La bête” no MAM-SP e da exposição Curto Circuito no Castelinho do Flamengo (com “sumiço” de quatro fotografias).
A tentativa de trazer a “Queermuseum” para o Rio foi abortada pelo bispo da Igreja Universal do Reino de Deus – que atualmente figura no cargo de prefeito do Rio de Janeiro – ao afirmar que a mostra só viria para a cidade se fosse para o fundo do mar (em alusão ao Museu de Arte do Rio).
Faço questão de descrever pelo menos alguns dos principais eventos de censura recente porque só podemos compreendê-los em conjunto. A estratégia de fragmentação desses episódios e de descontextualização das obras criticadas só serve ao oportunismo de grupelhos políticos (em especial um de meninos que se dizem liberais, mas não sabem a diferença entre “liberalismo” e “liberalismo econômico”!) que prestam um desserviço à nossa frágil e insipiente democracia. Que nasceram do fisiologismo com o que há de pior da política nacional.
Este é o primeiro ponto que gostaria de abordar: não estamos preparados para a democracia. Não sabemos o que fazer com o dissenso. Vivemos em uma estranha época em que todos são especialistas em tudo. Paradoxalmente, parece que o argumento é tão óbvio e autoevidente que sequer precisa ser argumentado, pois pode ser apresentado nos 120 caracteres do Twitter ou em formato de memes.
De todas as especialidades emergentes, vê-se uma horda de novos juristas, em especial de penalistas que tipificam quase que organicamente o que é um ato obsceno, pedofilia ou vilipendio de objeto de culto religioso. Encontramos também novas vozes do constitucionalismo, que realizam a ponderação de princípios com precisão tal qual o juiz hércules de Dworkin. Para estes, obscena não é a atuação censora da Polícia Militar, mas o corpo nu do performer que dança na – esta sim obscena – praça dos três poderes.
A criminalização sempre foi a estratégia mais covarde de fuga antidemocrática de um debate. O consenso é conseguido pelo silenciamento e rebaixamento patologizante do interlocutor. Qualquer possibilidade de aprofundamento do tema é imediatamente interrompida por um meme debochado ou por um xingamento calcado da polarização “esquerda x direita”.
O segundo ponto que gostaria de abordar brevemente diz respeito à impossibilidade de corpos não-normatizados.
Para o filósofo italiano Giorgio Agamben, a nudez é marcada em nossa cultura por uma forte tradição teológica. Não podemos, portanto, falar de nudez sem pensar em sua mediação com a noção do pecado. Adão e Eva, nus no paraíso, não se davam conta de sua própria nudez, pois viviam em estado de graça. A nudez original era aquela de não haver nada escondido para o outro: “E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam” (Gênesis 2:25).
Porém, ao pecarem, a primeira coisa que percebem é que estavam nus. Sentem, pela primeira vez, vergonha: “Então os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; em seguida entrelaçaram folhas de figueira e fizeram cintas para cobrir-se” (Gênesis 3:7). O pecado original inaugura uma nova visão da interdição dos corpos, da vergonha do corpo nu.
Esta mediação com a interdição nos dá pistas valiosas acerca da criminalização da nudez. Só existe, para a cultura cristã, o nu derivado do pecado. Qualquer possibilidade de exposição parte desta matriz de inteligibilidade. Para Agamben, a nudez “é sempre desnudamento e pôr a nu, ou seja, nunca forma e posse estável. Em todo caso, difícil de ser apreendida, impossível de ser contida” (Agamben, 2015, p. 101) [1]
O artista nu (também no sentido não literal, do artista que desvela através de sua arte) ou a obra nua não expõe somente a si. Expõe principalmente quem vê e é obrigado a reagir com seu repertório, com sua caixa de ferramentas morais. A exposição fortuita do espectador por vezes vem seguida de reações animalescas: tal como Adão e Eva agarram rapidamente folhas para taparem sua intimidade, também o espectador exposto, posto nu, responde instintivamente ao ato.
A nudez da obra expõe a limitação daqueles que só entendem os corpos mediados pelo pecado original. Não há outro nu possível para este: o nu não obsceno, não pornográfico não existe. No entanto, está ali acontecendo e ao contrário de se esconder, se revela?
É por isso, talvez, que a única resposta possível à transgressão da transgressão (que seria a transcendência?) é a sua devolução à obscuridade, ao tabu.
É por isso que a criança (des)viada, a criança-Madoninha, a criança-deusa-das-águas com gestos afeminados não pode ser representada. Porque o espaço de representação sempre esteve reservado à criança-padrão.
Um recado sórdido vem junto da censura: “Ei, você, criança viada, se inspire nestes exemplos-padrão; normatize-se, porque a sua subjetividade é sinônimo de pedofilia”.
Também o entendimento de representações religiosas mediado pela possibilidade do pecado.
Estudei dos 4 aos 18 anos em um colégio católico tradicional do Rio de Janeiro. Lembro que em uma aula de religião, durante os preparativos da primeira comunhão, a professora perguntou solene: “Quem quer carregar a cruz?”.
A frase soou como uma sentença. Alguém teria que carregar a cruz. Quem seria?
Lembro do silêncio. Coração disparado. Pensávamos algo como: “meu Deus, por favor, não quero levar a cruz!”, “eu sou nova demais para carregar a cruz!”, “Eu não, eu não, por favor, eu não…”.
Depois de longos minutos compreendemos que se tratava de uma distribuição de tarefas para a cerimônia. Alguém teria que entrar – literalmente – levando a cruz. O contexto dava o tom de como as coisas deviam ser entendidas. O entendimento do “carregar a cruz” estava mediado pelo peso de toda a instituição, do temor. E assim foi, durante muitos anos.
Pouco a pouco fui achando tudo enfadonho, mofado e hipócrita. Como ser arauto de uma mensagem de amor e paz com o histórico de perseguição e castração de corpos e subjetividades da Igreja Católica? Como continuar reproduzindo literalmente algo que foi escrito há tanto tempo? Como discurso e prática podiam ser tão distintos (salvo raras e lindíssimas exceções)? Eram algumas das minhas ingênuas indagações.
Curiosamente, uma das obras mais polêmicas da Queermuseum, o quadro “Cruzando Jesus Cristo com o Deus Shiva“, de Fernando Baril, me fez reconectar com uma espiritualidade qualquer dessa época. Nos vários braços deste Jesus-Shiva, objetos simbólicos – luvas de boxe, um excerto de mãos representadas na Guernica, um cachorro-quente e outros símbolos da cultura pop – os pés calçados. Em uma das várias mãos o peixe, sinônimo da fartura, da multiplicação que sacia fomes, que comunga com o outro.
Na tela, a crítica do desvio da mensagem de amor, que, instrumentalizada, transforma o conteúdo em forma pronta pra consumo: do souvenir da basílica, do cartão de crédito aceito pelo bispo, de cargos políticos em nome Dele, do próprio discurso religioso que passa a ter um fim em si mesmo para se tornar produto e não meio para a salvação de si e do outro.
A crítica desse aparelhamento, do “calçamento” do discurso de amor estava lá, representada. Mas isso é ofensivo à fé cristã. Igualmente ultrajante é o argumento: “E se Jesus vivesse nos tempos de hoje e fosse uma mulher transgênero?”, do espetáculo censurado em Jundiaí que propõe uma reflexão sobre “a opressão e a intolerância sofridas por pessoas trans* e minorias em geral na sociedade”.
Assim como a criança viada.
Assim como os corpos trans* nus das fotos censuradas no Castelinho do Flamengo.
Assim como qualquer possibilidade de representação contra hegemônica: não-branca, não-cis, não-heterossexual, não-colonizada.
Felizmente, com mais vigor e beleza, nos erguemos pelas brechas de res(ex)istência ao autoritarismo, em linhas de fuga à gestão biopolítica e bioeconômica da vida humana.
Estamos vivxs toda vez que artistxs insistem em levar a arte desviante ao MAR, ainda que do lado de fora, que um pequeno grupo ocupa o Castelinho do Flamengo até a reabertura da exposição, que grupos religiosos convidam o espetáculo censurado pelo juiz para dentro de seus templos, celebrando a diversidade e a atualidade da mensagem de amor, em cada internauta que posta à exaustão fotos de sua infância-viada, em cada roda de conversa contra a censura, onde nos reconhecemos e comungamos livremente.
[1] AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
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