A julgar pelos planos de governo apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a maioria dos postulantes à presidência da República demonstra pouco apreço à questão cultural, ai incluídos os temas do livro, da leitura e das bibliotecas. No caso de Guilherme Boulos, candidato do PSOL, a referência às bibliotecas aparece em duas seções diferentes do seu programa. Uma relacionada ao provimento de internet, garantindo acesso à rede mundial de computadores nestes espaços, e a outra quando o candidato menciona os locais em que os jovens ocupam, citando a biblioteca como um desses ambientes, que farão jus aos investimentos governamentais.
Em entrevista concedida ao bibliotecário Cristian Brayner, que reproduzimos abaixo, Boulos diz que, se eleito, vai recriar o Instituto Nacional do Livro (INL) que, extinto, teve suas competências transferidas para um departamento, a menor entidade na estrutura do Ministério da Cultura (MinC), bem como se empenhar para o cumprimento da lei das bibliotecas escolares. “Pretendo valorizar o papel das bibliotecas públicas e dos bibliotecários, inclusive fazendo cumprir a lei que regulamenta a biblioteca escolar, garantindo que todas tenham profissionais bibliotecários até 2020”, diz.
O senhor considera a biblioteca um equipamento cultural importante? Por que?
A biblioteca é um equipamento importantíssimo. Ela é, muitas vezes, o espaço onde acontece o primeiro contato dos jovens com os livros e a literatura. Além disso, as bibliotecas – especialmente as públicas e escolares – podem ter participação mais direta e efetiva na formação da consciência cidadã, formando jovens para a vida, e não apenas para os desafios do mercado. Elas podem, inclusive, cumprir um papel importante na inclusão digital, já que 40% da população brasileira ainda não tem acesso à internet. Para muitas pessoas, o computador da biblioteca pública é o único acesso disponível à rede mundial de computadores. Pretendo valorizar o papel das bibliotecas públicas e dos bibliotecários, inclusive fazendo cumprir a lei que regulamenta a biblioteca escolar, garantindo que todas tenham profissionais bibliotecários até 2020.
Em sua infância e juventude, o senhor frequentou alguma biblioteca? Qual a imagem que o senhor conserva desse local?
Frequentei bibliotecas a vida toda, desde menino, até o mestrado em Psicanálise, na USP. Quando jovem eu frequentava a Biblioteca Monteiro Lobato, na Santa Cecília, bairro da região central de São Paulo. É uma biblioteca muito interessante, porque apesar de ser grande para os padrões de cidades menores, é muito usada pelos moradores do bairro. Cercada de árvores, a Biblioteca Monteiro Lobato é um espaço de tranquilidade no meio da maior metrópole da América do Sul.
Embora a biblioteca seja o equipamento cultural com maior popularidade junto à sociedade brasileira, o governo federal tem desprestigiado a área. O Instituto Nacional do Livro foi extinto e suas competências transferidas para um departamento, a menor entidade na estrutura do Ministério da Cultura. O senhor tem alguma proposta para elevar o status da área?
O INL era responsável pela política nacional das bibliotecas e do livro, deveria ser recriado, e ganhar maior relevância, porque os livros e as bibliotecas são fundamentais na formação das pessoas, principalmente nas cidades que estão afastadas dos grandes centros. Toda cidade deveria ter uma biblioteca pública com bibliotecário, pessoal habilitado, com acesso à internet, com computadores. Nós iremos recriar o INL, garantindo investimento adequado para a promoção da produção literário nacional, privilegiando os conteúdos regionais, inclusive para fazer frente ao avanço da literatura estrangeira entre a população brasileira.
O governo federal gerencia um dos maiores sistemas de bibliotecas do mundo, abarcando mais de sete mil equipamentos culturais. Entretanto, enquanto o Ministério da Cultura ofereceu, em 2018, 80 milhões em editais para a indústria do cinema, o orçamento destinado às mais de sete mil bibliotecas públicas e comunitárias do país não chegou a R$ 400 mil. Há da parte do senhor pretensão em priorizar as bibliotecas públicas em seu governo?
Sem dúvida. Há uma lógica por parte do Estado brasileiro nos últimos anos de corte gradual dos investimentos com vistas a transferir responsabilidades à iniciativa privada. Vejamos o exemplo da tragédia no Museu Nacional. Primeiro, se institucionalizam os cortes – inclusive com a aprovação de uma Emenda Constitucional criminosa, que congela os investimentos públicos por 20 anos. Depois, com o sucateamento do patrimônio público, se justifica a privatização. A Medida Provisória (MP) de Temer, extinguindo o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e permitindo a gestão privada do patrimônio histórico e cultural é um crime de lesa-pátria. Veja o caso da Amazon. Um dos seus diretores defendeu que bibliotecas públicas poderiam ser substituídas por livrarias privadas. Isso aconteceu em outros países e gerou uma onde de protestos virtuais dos bibliotecários. É um absurdo. Por isso nosso governo será um governo de inversão de prioridades: chega de desonerações para grandes empresas que não geram empregos. Chega de desoneração na folha de pagamentos de setores que estão precarizando o trabalho. Chega de garantir lucros para o rentismo, com taxas de juros astronômicas, enquanto nossas bibliotecas públicas estão em estado de penúria. Minha proposta é, nos dois primeiros anos, dobrar os investimentos nas bibliotecas públicas, garantindo condições dignas de funcionamento a todos esses equipamentos.
Parcela significativa do orçamento destinado às feiras literárias tem beneficiado o sul e o sudeste do País. Quais as medidas que o senhor pretende adotar para promover as feiras literárias de outras regiões brasileiras?
Há experiências extraordinárias em muitas regiões do país. Dou o exemplo da Feira do Livro de Belém, no Pará, mas há muitas outras. O financiamento às feiras literárias deve levar em conta aspectos técnicos, como fluxo de visitantes, divulgação de novas obras de conteúdo regional, difusão da leitura entre jovens e adolescentes. E, claro, os critérios de financiamento devem ser absolutamente transparentes, com editais públicos que assegurem recursos diretos do governo federal, e não apenas através da renúncia fiscal de empresas que financiam esses eventos com o objetivo de deduzir impostos (enquanto se apresentam como “incentivadoras da cultura”). A lógica do financiamento cultural no Brasil precisa ser revisto, como propõe nosso programa de governo. Defendemos que editais, leis, programas de fomento prevejam comissões julgadoras plurais e democráticas, formadas pela sociedade civil e pelo poder público. E a consequente restrição radical dos mecanismos de renúncia fiscal em favor de investimentos diretos (caminhando no sentido da extinção da Lei Rouanet e demais mecanismos de renúncia fiscal também nos Estados e Municípios). Faz parte desta proposta o aprimoramento dos dispositivos jurídicos que desburocratizam o acesso aos programas e editais, hoje inacessíveis para a maioria dos produtores culturais, inclusive aqueles que promovem eventos voltados à literatura.
Enquanto centenas de bibliotecas sofrem com a falta de livros, mais de meio milhão de obras está se deteriorando, há anos, no anexo da Fundação da Biblioteca Nacional, localizada no Porto Maravilha (RJ). O povo brasileiro pode esperar que o senhor resolva esse problema nos primeiros dias de seu mandato?
Sem dúvida. A Biblioteca Nacional tem sido vítima do abandono e descaso do governo federal há muitos anos. E a política de “austeridade fiscal” – implementada por Dilma e aprofundada por Temer – só piorou essa situação. Na prática, a Biblioteca Nacional, tanto no Rio de Janeiro quanto em Brasília, está vulnerável a uma tragédia semelhante à que destruiu o Museu Nacional. Convidaremos o Conselho Federal de Biblioteconomia para uma mesa de diálogo com vistas a encontrar a melhor solução para o acervo. Ele precisa ser armazenado em um lugar adequado, conforme as normas internacionais de preservação. O prédio que hoje é utilizado sequer foi projetado para receber esse acervo. Certamente a União dispõe de outros prédios públicos que poderiam ser reaproveitados para essa função, garantindo acesso irrestrito a essas obras.
A Lei nº 10.994/2004 torna obrigatório o envio de um exemplar do que é publicado no País para a Fundação Biblioteca Nacional, sediada na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Entretanto, após quatorze anos de sua promulgação, a Lei em questão nunca foi regulamentada, trazendo enormes prejuízos para a memória bibliográfica nacional. O senhor se compromete a regulamentar a Lei em questão, conforme estabelecido pelo próprio legislador?
Nos primeiros meses de governo pretendo enviar uma proposta de regulamentação discutida amplamente com os profissionais da biblioteconomia, através de suas entidades representativas, e com os técnicos do governo federal. Além disso, é necessário garantir que o depósito legal aconteça, assegurando que as editoras cumpram suas obrigações legais. Regulamentar a lei 10.994 é fundamental para garantir a memória literária.
Embora seja de competência exclusiva do bacharel em biblioteconomia a administração e direção de toda e qualquer biblioteca, o governo federal tem desrespeitado a legislação. De fato, a Fundação Biblioteca Nacional tem sido gerenciada, há mais de 30 anos, por não bibliotecários. O senhor se compromete a cumprir a Lei nº 4.084/1962, nomeando um bibliotecário para o posto de Presidente da Fundação Biblioteca Nacional?
Certamente os profissionais mais indicados para conduzir os trabalhos da Fundação Biblioteca Nacional são os próprios bibliotecários. Por isso apoiamos a lei 12.244/2010 que exige que as bibliotecas escolares tenham bibliotecários até 2020. Isso, no entanto, não é suficiente para qualificar os trabalhos da Fundação. É preciso que os dirigentes da instituição reflitam nosso projeto político de ampliação do acesso ao livro e valorização das bibliotecas. Portanto, não basta ser um bibliotecário: é preciso que o próximo ou próxima presidente se comprometa com uma política que combata a lógica privatista que sequestrou o Estado brasileiro nos últimos anos.
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