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“Bolsonero”, o incendiário da cultura

O então deputado Jair Bolsonaro discute com a deputada Maria do Rosário durante comissão geral, no plenário da Câmara dos Deputados, que discute a violência contra mulheres. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Direto, eloquente, contumaz. Estes são alguns dos adjetivos atribuídos aos arroubos transloucados de Bolsonaro (presidente da nossa combalida República), sempre que este ligava (e ainda liga) sua metralhadora retórico-giratória. Mas ao contrário do que se dizia (e ainda se diz em muitos espaços), não se tratava e nunca se tratou de uma “sinceridade excessiva”, mas da verbalização de um projeto incendiário, especialmente da cultura brasileira.

A partir da ideia de que “nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira”, o governo Bolsonero (uma referência irônica ao imperador Nero, que teria colocado fogo em Roma) passou-se a adotar a ideia de que, para garantir sua hegemonia, seria preciso minar as instituições culturais e educacionais do país.

Assim, Bolsonaro e os bolsonaristas, bastante influenciados pelo pensamento de Olavo de Carvalho, passaram a “denunciar” as universidades, que estariam “infestadas” de “esquerdistas” ou, pior ainda, de “esquerdopatas” dispostos a implementar no Brasil uma ditadura marxista/comunista, corrompendo as famílias com sua cultura “gaysista”, incutida nas crianças pela “ideologia de gênero”, uma falácia que ainda subsiste no imaginário popular, dada a dimensão que tomou.

Nesta mesma toada, menos com a eleição de Bolsonaro em 2018, e mais com o avanço do bolsonarismo, que antecede o pleito daquele ano, grupos conservadores passaram a se sentir à vontade para desqualificar e até atacar fisicamente (como aconteceu com a produtora “Porta dos Fundos”) produções e manifestações artístico-culturais que contrariassem seus devaneios, muitos dos quais subjacentes a frustrações de ordem pessoal, inclusive no campo sexual.

Veja o exemplo da tentativa de censura, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro em 2017, da história em quadrinhos “Os Vingadores – A Cruzada das Crianças”. Na ocasião, o então prefeito da cidade, o bolsonarista medular Marcelo Crivella (PRB), determinou a retirada da obra dos estandes de venda alegando que a mesma oferecia “conteúdo sexual para menores” por mostrar em sua capa duas personagens do sexo masculino se beijando na boca.

Foi também nesta mesma toada que em 2018 ao menos cinco câmaras de vereadores de municípios do Rio Grande do Sul exigiram a retirada do livro “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” do acervo de algumas bibliotecas públicas. A publicação é um catálogo das obras da exposição de mesmo nome que foi cancelada pelo Santander Cultural, em Porto Alegre (RS), após uma série de protestos dos conservadores em 2017.

O incêndio na Cinemateca Brasileira

Mas não quero me ater a estes fatos (até porque não teria espaço aqui para isso, dada sua dimensão), mas destacar um dos episódios mais recentes desta seara, que é o incêndio da Cinemateca Brasileira. Tal evento indica que o que vem ocorrendo no Brasil com as instituições culturais não é acidente, mas um projeto. Neste episódio, restou comprovado, a julgar pelas denúncias feitas pelos próprios trabalhadores da instituição, que o desmonte paulatino foi orquestrado.

Ou seja, o incêndio que atingiu um galpão que guardava uma parte importante do acervo da Cinemateca foi a “cereja do bolo” de uma série de ações e omissões orquestradas pelo “núcleo ideológico” do governo Bolsonaro. Conforme me garantiu uma trabalhadora da área audiovisual, que já desenvolveu projetos com a Cinemateca, essa é a maior crise que a instituição já passou. “O governo genocida [de Bolsonaro] tem boa parte da culpa”, garante.

Veja alguns exemplos:

As Organizações Sociais

Mas apesar de apontar os problemas recentes na instituição, uma trabalhadora da área audiovisual com quem conversei garante que os problemas na Cinemateca vêm de longa data. Cita a questão das Organizações Sociais (OSs), que estão à frente da instituição desde 2018. Na época a Cinemateca já passava por uma profunda crise, quando o então Ministério da Cultura, ainda sob o governo Temer, resolveu contratar a Acerp, que já mantinha, naquela época, convênios de prestação de serviço à Cinemateca.

“[Com o gerenciamento de uma OS, a Cinemateca] terá autonomia financeira e administrativa, mas com metas e diretrizes que terão de ser cumpridas”, defendeu à época o então ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, ignorando a complexidade das tarefas impostas às instituições de salvaguarda, sobretudo as dedicadas aos materiais audiovisuais, extremamente perecíveis que são.

“Em geral um governo investe muito e outro não investe nada. E a gente, nos últimos tempos, tem uma sequência de pequenas tragédias que se somam numa grande tragédia. O governo [de Michel] Temer, a primeira coisa que fez foi acabar com o Ministério da Cultura [MinC], que voltou por causa da grita geral. Quando sobe o atual presidente [da República, Jair Bolsonaro], a primeira coisa que também faz é acabar com o Ministério da Cultura, que passou [como Secretaria Especial de Cultura] pelo [Ministério] da Cidadania e agora está no [Ministério] do Turismo”, lembra Maria Fernanda Curado Coelho, ex-coordenadora de Preservação da Cinemateca Brasileira.

Maria Fernanda, que é crítica ao modelo de gestão por OSs na Cultura, explica que uma   Organização Social é um modelo de negócio de pensamento de curto prazo, o que, segundo ela, atrapalha a gestão de um acervo audiovisual, onde os procedimentos devem permanentes para garantir sobrevivência do material. Com um contrato de cinco anos, que é o máximo que a lei permite para este tipo de serviço, nunca seria possível o estabelecimento de uma metodologia de longo prazo, pois tão logo esta fosse estabelecida, o contrato com a respectiva OS já estaria chegando ao final (leia a entrevista completa na edição 79 da Revista Biblioo).

“Necessariamente o gestor que entra em um arquivo de memória com a melhor das intenções, ele tem cinco anos para trabalhar em um ambiente em que o Estado faz um contrato de gestão e te concede a metade ou menos do dinheiro que você precisa para fazer a manutenção do espaço, é o que está acontecendo no edital da Cinemateca Brasileira hoje”, diz ela se referindo ao edital, publicado um dia após o incêndio do galpão da Cinemateca, que prevê um orçamento previsto será de R$ 14 milhões anuais, quando cálculos do próprio governo previam a necessidade de R$ 22 milhões para a manutenção do acervo.

As perdas no acervo

Sobre as perdas decorrentes do último incêndio que atingiu a Cinemateca Brasileira, ainda existe muita especulação sobre o que teria se perdido, embora sobrem certezas de que as perdas são grandes. Ainda está em curso os procedimentos de investigação em relação às causas do incêndio que, como eu disse, não foi acidental, pelo menos não no sentido jurídico do termo. Até agora poucas pessoas tiveram acesso ao local em função dos perigos que envolvem o acesso, mas como se tem conhecimento sobre o material que estava lá guardado e as dimensões do estrago causado pelo fogo, já se tem uma ideia clara do que se perdeu.

Estavam lá, por exemplo, parte do acervo da Escola de Comunicação (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Conforme informado pela instituição, em julho de 2008, o Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA (CTR), havia transferido para a Cinemateca Brasileira todo o acervo de cópias em 16 e 35 mm dos filmes produzidos pelos alunos, de 1968 a 2003, até então armazenados na Biblioteca da ECA. No ano seguinte, foram encaminhadas as produções de 2004.

“O objetivo era melhorar as condições de conservação do material, já que o depósito climatizado da Biblioteca não conseguia alcançar os padrões adequados a um acervo de filmes em película. Só um arquivo como o da Cinemateca, então em ótimas condições técnicas, poderia oferecer a proteção necessária. Na Biblioteca seriam mantidas apenas as cópias mais recentes, que ainda circulavam bastante em mostras e festivais”, informa o Blog da Biblioteca da ECA.

Segundo o movimento de Trabalhadores da Cinemateca Brasileira, além deste material da ECA/USP, pode ter se perdido no incêndio grande parte do acervo de órgãos extintos do audiovisual brasileiro, como o Arquivo da Embrafilme (1969 a 1990), do Arquivo do Instituto Nacional do Cinema – INC (1966 a 1975) e do Conselho Nacional de Cinema – Concine (1976 a 1990), bem como documentos que ainda não haviam sido incorporados ao acervo da instituição.

A propósito, reside aqui uma trágica ironia. O acervo que estava armazenado no galpão da Vila Leopoldina, que era menor do que o que estava armazenado no prédio da Vila Mariana, havia sido transferido do térreo para o depósito climatizados no primeiro andar do prédio (principal área afetada pelo incêndio), exatamente para evitar que este fosse atingido por novas enchentes, conforme a que ocorrera em fevereiro de 2020. Este fato parece comprovar que se existia de um lado esforço para salvar o material, de outro o governo federal fazia de tudo para minar esse empenho.

“O incêndio [na Cinemateca Brasileira] é mais um motivo pelo qual não podemos esperar para dar um basta à política de terra arrasada e de apagamento da memória nacional! Estamos em luto, pela perda de mais de meio milhão de brasileiros, e agora pela perda de parte de nossa história. Incêndio na Cinemateca Brasileira em 2016, no Museu Nacional em 2018 e, novamente, na Cinemateca em 2021. Além de todas as mortes evitáveis, nossa história vem sendo continuamente extirpada – como um projeto”, diz um manifesto do movimento de Trabalhadores da Cinemateca Brasileira. 

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