Por Matheus Pichonelli, da CartaCapital
Dia desses, ao desempacotar algumas caixas da mudança, peguei na mão um livro que lancei quando estava prestes a me formar em jornalismo e achava que sabia alguma coisa sobre qualquer coisa – inclusive para onde estava indo.
Fazia anos que não tinha coragem de folhear aquela desgraça; reler qualquer parágrafo era como ser lembrado de alguma gafe cometida em hora imprópria diante de uma multidão. Por sorte, ou azar, a multidão estava restrita a amigos, conhecidos e colegas de profissão, a quem tenho uma vontade desencorajada de telefonar para pedir a devolução do exemplar doado, junto com um convite para celebrar uma queima literal de estoque.
Trata-se de um apanhado confuso de sensações que um dia, sem um amigo ou editor prudente que me acusasse o vexame, transformei em escrita. Ainda assim, senti uma espécie de saudade daquela tarde em que, assombrado por terrores inominados, sentei-me diante do computador para só levantar quando imaginei ter em mãos um livro de contos.
Durante um tempo, gostava de pensar que escrever era uma forma de desconversa; uma tentativa de criar vivências, e diálogos, que não encontrava na chamada vida real, tomada de gestos, pessoas, ambientes e preocupações que me pareciam pueris, obscenos, ingênuos.
Pura ingenuidade: escrevia pela mesma razão daquelas conversas inúteis.
Escrevia para não encarar os silêncios. A diferença era a pretensão de imaginar que olhava o mundo do alto, e que este mundo, povoado por aquelas pessoas na sala de jantar, ocupadas desses casos de família e de dinheiro que eu nunca entendi bem, estaria morrendo de medo daquilo que eu imaginava ser um grito.
Vendo, tantos anos depois, e com a vergonha até as tampas, aquela tentativa desajeitada de expressão materializada, tento entender em que momento da vida deixei aquela vontade de colocar tanta bobagem no papel.
Era uma espécie de fome que me acometia logo pela manhã e que se dissipava ao longo do dia, presa por um sentido de urgência para captar alguma imagem e transformar em registro.
Como quando vi, logo ao chegar a São Paulo, um sujeito levando o filho na rabeira de uma carrocinha de catar papelão no meio do trânsito de uma avenida principal. Aquela trava de algo que não dialogava com a cidade me parecia um ruído da relação possível e inevitável entre pai e filho – um entendimento tão ruidoso como a lembrança de que, aos vinte e poucos anos, eu não poderia ter ideia do que que era ser pai.
Lembrava dessa cena, que não precisava ter sido escrita para me marcar para sempre, quando tentei, em vão, responder a pergunta do meu amigo João Carlos Magalhães, logo que ele terminou a leitura daqueles esboços em forma de contos: “Você escreve pra quê?”
João, eu nunca soube responder, e aquela pergunta me paralisou de tal forma que se desdobrou em várias. Depois de um tempo de profissão, este site abrigou generosamente alguns pensamentos em voz alta que me levam colocar, no chapéu acima do título, a inscrição “Crônica”.
Talvez o leitor não saiba, trata-se de uma vacina de autodefesa para que ninguém imagine se tratar de assunto sério que merecesse qualquer registro depois que chamamos o garçom e pedimos a conta. Fica aqui a confissão.
Mas até mesmo esse exercício tem sido diluído. Antes enviava um texto por dia; depois, a cada semana; agora me dou conta que a última vez que puxei conversa foi há mais de mês.
Por ironia, nunca houve tanta coisa para comentar, e talvez seja essa soma zero de vetores, aquelas setas das aulas de físicas apontadas para a mesma direção e sentidos opostos, que me censura a urgência de escrever.
Não é coincidência que o desejo tenha se dissipado numa época em que me dei conta de que estava esvaziado de ideias e inspirações e resolvi atualizar algumas leituras. Percebi, assim, que quanto mais se lê, mais nos convencemos das contradições, das limitações e das incompletudes da fala; e menos queremos dizer.
Se o meu amigo me refizesse a pergunta, diria que a resposta de seu inverso é a única possível: não escrevemos porque o silêncio não nos deleta, e tudo o que não queremos é que alguém, além de nós, saiba que aquele tufo de cabelo que perdemos pela manhã nos desorienta mais do que qualquer tragédia narrada no jornal. E se é para falar do fim inevitável, ou remediá-lo com remendos literários, melhor falar de guerras e competir com os gritos de seus canhões.
É o que Fernando Pessoa dizia ser o fingimento da dor que deveras sentimos.
Certa vez ouvi um escritor e jornalista dizer que só escrevia porque, sem ter o mesmo talento para fazer música como Chico Buarque, era o único recurso sonoro que tinha em mãos.
Na quinta-feira 13, a Academia Sueca concedeu o Nobel da Literatura para Bob Dylan, no que talvez seja o maior ato de libertação dos poemas que estavam no ar, cantados e assobiados, e que não se contentavam com a clausura dos papeis.
“Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção”, ensinava Caetano muito antes da Academia Sueca.
Eu, que um dia cometi a imprudência de me imaginar escritor ao ver um catador de papelão e seu pequeno ferrarem o trânsito na cidade que eu não entendia e expandia as saudades de minhas memórias no interior, só descobri que nossa história é sempre mais bonita que a de Robson Crusoé quando meu filho de três anos, perguntado sobre “como está a escola?”, respondeu: “Está azul”.
Comentários
Comentários