Raramente o bibliófilo é um nômade e um conquistador. Em geral ele permanece imóvel; seus livros, longe de viajarem com ele, o tornam sedentário. Há famílias descendentes de bibliófilos que nascendo e morrendo na mesma casa, transmitem, hereditariamente, suas coleções e gostos. A mais famosa é a família Thou[1]: é prodigioso o número de volumes, admiravelmente escolhidos e decorados, que passaram por suas mãos. Couro marroquino conhecido por levante, couro de veado adornado, couros de veado e marroquino em mosaico, pergaminhos dourados; todos os tipos de encadernação deslumbrante e resistente com o brasão dos Thou ainda são encontrados em abundância em belas coleções após três séculos de dispersão, devastação e destruição, mantendo assim, apesar do destino contrário, a glória desta ilustre família bibliográfica. Se passar por suas mãos um dos raros volumes encadernados exibindo as três abelhas da família Thou, mas sem o escudo agregado, este provavelmente pertenceu ao amigo de Cinq-Mars,[2] aquele que Richelieu,[3] por outras razões que não uma competição livresca, fez subir ao cadafalso.
Cada bibliófilo tem sua própria missão. Ele a escolhe, ou melhor, ela o escolhe, e essa é sua vocação.
Um dos maiores bibliófilos do século XVIII foi o duque de La Vallière,[4] sobrinho-neto da famosa amante de Luís XIV. Não sei se ele foi o mais feliz dos maridos, mas foi o mais feliz dos homens, pois nada o desviou, durante toda a vida, do gosto que tinha, desde criança, pelos belos livros. Encerrando-se em sua torre de marfim, ele nada quis saber sobre o resto do mundo. Ele forrou sua casa com livros extraordinários. Sua verdadeira relevância foi conservar admiráveis manuscritos em miniaturas, e os primeiros incunábulos que, em sua época, eram considerados góticos e muitas vezes entregues às hecatombes do mau gosto ou da ignorância. Ao percorrer a lista dos exemplares que possuía, a inveja aperta seu coração: nunca mais haverá tal campo aberto à caça bibliográfica! Era o tempo em que se podia reunir em um “gabinete” o Missal de Jean de Foix (Mss)[5] com o admirável lema: Tudo muda. Tudo é mudado; as “Horas Latinas” de Luís II, duque de Anjou (Mss),[6] as “Horas Latinas” do rei René (Mss)[7] com as incomparáveis miniaturas da Escola de Borgonha; o “Saltério”, de Mathias Corvin,[8] com os quatro emblemas: uma colmeia, um poço, um relógio de água e um barril, “este último designando a fertilidade e a bondade das vinhas da Hungria”, uma coleção incomparável de contos, “romances” e peças de poesia da Idade Média. Nossos medievalistas devem muito a este honesto contemporâneo de Crébillon, o jovem.[9] Os Colbert,[10] os Loménie,[11] os Godefroy,[12] os Dupuy[13] e os Clérembault[14] preservaram para a posteridade os monumentos mais preciosos da nossa história. Se Colbert de Torcy[15] não fosse bibliófilo, teria ele constituído o depósito dos arquivos das Relações Exteriores onde são preservadas as tradições de nossa política externa? Este depósito acolheu as Memórias do cardeal Richelieu,[16] onde mais tarde foram alocadas as Memórias de Saint-Simon.[17] Portanto, é pela vigilância dos bibliófilos que as obras-primas do espírito humano são conservadas.
[1] Thou é um nome familiar aos bibliófilos, seja por sua obra, suas armas ou dos livros que lhe foram dedicados. Jacques-Auguste de Thou (1553-1617), possivelmente o bibliófilo mais famoso do século XVI, tem fama de ter lido tudo e, em particular, os grandes autores gregos e latinos. Além disso, publicou vários livros de poemas. No entanto, ele ficará na história por suas Historiae sui temporis, crônicas que abrangem os anos de 1543 a 1607, traduzidas do latim para o francês no século XVIII. Revela-se um grande defensor da tolerância religiosa. Crítico dos excessos do clero católico, observa uma atitude compreensiva em relação aos protestantes (THOU, 1711).
[2] Henri Coeffier (1620-1642), o marquês de Cinq-Mars, era um favorito e, segundo teorias, amante do rei Luís XIII de França, que liderou a última e bem-sucedida conspiração contra o poderoso primeiro-ministro do rei, o cardeal de Richelieu. Este fato o levou à prisão e posterior decapitação.
[3] O Cardeal de Richelieu (1585-1642) foi, segundo seu bibliotecário, Gabriel Naudé, “retirado do fundo de sua biblioteca para governar a França.” Como primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642 e arquiteto do absolutismo na França, foi enriquecendo sua biblioteca como mostra não simplesmente de seus interesses, mas de seu poder. (NAUDÉ, Gabriel. Considérations politiques sur les coups d’Estat. Rome: [s.l.], 1639, p. 318, tradução nossa).
[4] Louis César de La Baume Le Blanc (1708-1780), o duque de Vaujours, depois o duque de La Vallière, foi um soldado francês, mais conhecido como um dos maiores bibliófilos do século XVIII. Com a ajuda de seu bibliotecário, o padre Rive, ele comprou bibliotecas inteiras, revendendo os livros que possuía em duplicata. Sua biblioteca foi vendida em três turnos em 1767, 1783 e 1788. Parte dela foi adquirida pelo Conde d’Artois e incorporada à coleção da biblioteca do Arsenal. Aparentemente de má reputação, foi perdoado por seu amor aos livros: “M. le Duc de La Vallière acaba de falecer. Ele era um dos senhores mais corruptos da velha corte, amigo do falecido rei e dedicado a todas as suas amantes. Ele merece, no entanto, que seu nome seja preservado na posteridade como um autor ilustre, como protetor de letras e até mesmo como fabricante. Certa vez, ele vendeu sua então renomada biblioteca de manuscritos.” (Memórias Secretas de Bachaumont, 19 de novembro de 1780)
[5] Considerado um dos exemplos mais notáveis da iluminura manuscrita de Toulouse, o missal, executado em 1492 por Liénard de Lachieze para o bispo de Comminges, grande amante dos livros, marca a introdução das formas renascentistas em Toulouse (COHENDY, 2017).
[6] Mantendo a tradição de seu pai em manter uma biblioteca importante, Louis II (1377-1417) encomendou cerca de 40 livros, dentre eles um livro das horas para a sua filha Yolanda (LEGARÉ, 2012; LOISEAU, 2021).
[7] O rei René d’Anjou (1409-1480), amante dos belos livros e caçador de textos clássicos e patrísticos, organizou sua biblioteca de modo idêntico ao proposto por Philippe de Mézières, em que as seções de religião, direito, história e certas ciências ganham destaque, consideradas de grande utilidade para um bom governante (MATZ, 2011; MÉZIÈRES, 1490?).
[8] O rei húngaro Mathias Corvin I (1443-1490) foi um habilidoso diplomata e culto estadista. Patrocinou artistas italianos e fundou uma universidade. Sua Bibliotheca Corviniana foi a maior coleção de crônicas e obras filosóficas do século XV. Durante o Renascimento, foi a maior coleção de livros da Europa depois da do Vaticano.
[9] Claude Prosper Jolyot de Crébillon (1674-1762), apelidado de Crébillon filho, pintava os salões e bailes que frequentava em seus romances libertinos, nos quais tecia análises psicológicas e retratava costumes da época. Por causa deles foi aprisionado durante alguns anos na Bastilha, de onde saiu para ocupar o cargo de censor real.
[10] Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), ministro de Luís XIV, protegeu as ciências, as letras e as artes. Fundou a Academia das Inscrições e Belas Letras e apoiou a pesquisa com a criação da Academia das Ciências (1666) e o Observatório de Paris (1667). Semelhante a seu antigo protetor, o cardeal Mazarin, Colbert montou uma das melhores bibliotecas da França e dedicou muito tempo a enriquecê-la. A partir de 1663, três anos após ter sido criada, seu acervo de impressos e manuscritos foi significativamente ampliado, graças a atuação de dois bibliotecários: Pierre de Carcavy e Étienne Baluze. Ambos auxiliaram Colbert a montar uma rede de correspondentes nas províncias e em toda a Europa, responsáveis pela descoberta dos livros raros e preciosos que aportaram em grande número, sejam a título de aquisição ou para serem copiados. Assim, a biblioteca passa a ser a terceira mais importante da Europa em número de exemplares. Com a morte de Colbert, o inventário de livros da biblioteca contava mais de vinte mil volumes impressos e mais de oito mil manuscritos antigos (BALUZE, [1700?]).
[11] Étienne Charles de Loménie de Brienne (1727-1794), enquanto arcebispo de Toulouse, investiu na manutenção das bibliotecas públicas. Ele construiu uma rica biblioteca que se tornou um repositório universal, contendo quase todas as obras impressas no século XV, inclusive de vários países. Ele foi forçado a se desfazer de parte de sua coleção para pagar suas dívidas.
[12] Théodore Godefroy (1580-1649) e seu filho, Denis Godefroi (1615-1681), deram início a uma magnífica biblioteca que mais tarde seria enriquecida por Denis e Jean, netos de Théodore. Mais tarde ela foi incorporada à biblioteca do Instituto de França (LALANNE, 1865).
[13] O jurista Claude Dupuy (1545-1594) formou uma grande biblioteca de manuscritos que foi herdada pelos seus filhos Pierre e Jacques. Quando este morreu, em 1657, os livros e os manuscritos passaram para a Coleção Real e hoje fazem parte da Biblioteca Nacional da França. Todas essas obras são identificadas hoje como Codex Puteanus. Entre seus escritos mais célebres estão os manuscritos das Epístolas de São Paulo, em grego e latim. Entre outras raridades encontram-se, também, manuscritos do século IX de Estácio (século I d.C.), a obra Apologeticum de Tertuliano e um códex do século V da Terceira Década de Lívio (século I a.C.–II d.C.).
[14] Clérambault é o sobrenome de uma grande família de músicos franceses ligada ao rei desde Luís XI e que legou uma profusão de sonatas e cantatas francesas (CESSAC, 1998).
[15] Jean-Baptiste Colbert de Torcy (1665-1746), marquês de Torcy, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros, um dos mais notáveis diplomatas do reinado de Luís XIV. Foi dele a ideia de instalar no Louvre, em 1710, a biblioteca-arquivo, associando-a, dois anos mais tarde, a Academia Política, a escola diplomática francesa. Objetivando melhorar a formação dos jovens diplomatas, determinou a aquisição de livros de certos autores, tais como Grotius, Puffendorf, de Wicquefort, Machiavelli, Lipse, abarcando as áreas de direito público, história dos tratados, cerimoniais e línguas estrangeiras (BASCHET, 1875).
[16] Refere-se à obra Memórias do Cardeal Richelieu sob o reinado de Luís XIII, coordenada por Alexandre Petitot (1823).
[17] As Memórias de Saint-Simon, de 1829, são uma obra póstuma de Louis de Rouvroy, duque de Saint-Simon (1675-1755), cujo manuscrito compreende cerca de 3.000 páginas. É considerado um monumento da literatura francesa, que exerceu forte influência sobre autores como Chateaubriand, Stendhal, Balzac e Proust.
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