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A techné dos tolos

Qualquer reflexão, por menor que seja, que se proponha a falar acerca do papel da informação no século XXI deverá, inevitavelmente, falar sobre tecnologia; da mesma forma, é impossível falar sobre tecnologia sem tratarmos também das relações sociais que ela media. No século XXI, o século digital, as relações sociais são, em menor ou maior nível, informação.

O primeiro ponto que devemos nos ater para darmos início a qualquer debate sério a respeito da centralidade da informação na organização social deve partir de uma definição, mesmo que mínima, de tecnologia. O termo deriva do grego, techné e logos, e significa, dentre outras coisas, um conjunto de processos e técnicas ou a aplicação de um determinado conhecimento dentro de uma realidade específica (MICHAELIS, online, [2021]). Mas tendo em vista que toda palavra dá conta de capturar um fragmento da realidade para uma melhor compreensão humana, e que essa realidade é atravessada por conflitos e ações reais de atores sociais, acredito que devamos enxergar a tecnologia como algo muito além de um simples conjunto de técnicas.

A tecnologia se relaciona com as necessidades humanas de produção e reprodução da vida, sendo ela desenvolvida a partir das necessidades de grupos humanos frente determinada realidade e sendo elaborada de acordo com as condições materiais que o meio fornecia dentro de certo recorte social e histórico. Toda tecnologia vai derivar de uma necessidade humana de sobrevivência, em sentido literal e figurativo. A fogueira que aquece e cozinha é uma tecnologia, da mesma forma que o arco e flecha que caçam, os papiros que registram, o tambor que comunica e a canoa que navega. Avançar tecnologicamente é avançar nas formas de produção e no domínio sobre os recursos disponíveis pelo meio em que estamos inseridos. Da fogueira dos primeiros grupos pré-históricos ao cooktop elétricos das cozinhas de TV, a tecnologia avança conforme as condições mudam, mas os objetivos embrionários permanecem os mesmos. Para melhor ilustrar, vamos nos ater ao exemplo da fogueira.

Ao dominar o fogo e perceber que ele era de ajuda para sua alimentação, os primeiros grupos humanos criaram a primeira tecnologia de cozimento e as primeiras técnicas de culinária. Conforme a migração foi tendo seu curso, novos tipos de alimentos e novas condições climáticas impuseram uma necessidade inédita de desenvolver outras formas de produção de comida. Com recursos diferentes, técnicas diferentes foram desenvolvidas, estando elas adaptadas ao meio em que cada grupo se fixou e procriou. Diferentes ervas, frutas, animais, grãos e legumes, bem como outras condições geográficas e climáticas, deram origem a uma pluralidade de técnicas de cozimento e conservação de alimentos. A humanidade avançou, tecnologias diferentes surgiram, novas necessidades foram sentidas. Com as navegações europeias, veio a colonização, a exploração de outros recursos e a exportação de técnicas e produtos para diferentes partes do globo. Veio a energia elétrica, depois as Grandes Guerras, a indústria do entretenimento e o surgimento do computador; horizontes foram observados, hipóteses testadas e, da necessidade original de alimentação, veio a ideia de sua conversão em programa de entretenimento para a programação matinal da TV, acompanhada das tecnologias pertinentes para sua execução. O cooktop elétrico de hoje nada mais é que a fogueira tribal atravessada pela história.

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) atuais são descendentes diretas das primeiras tecnologias criadas pela humanidade quando a linguagem foi desenvolvida, pois elas servem ao mesmo proposito germinal. Se guiados pela história, podemos observar as tecnologias digitais, não como criações messiânicas surgidas da genialidade, mas como novas formas de produção e reprodução da vida dadas as condições materiais necessárias.

Para além de entender que tecnologia nada mais é que uma realização humana frente uma necessidade, devemos também nos debruçar sobre um segundo ponto, que é: tecnologia não é só produto, mas também um meio de produção. Ela não é só um produto (como o smartphone ou um carro), mas também todo o conjunto de maquinários, técnicas, patentes e sistemas envolvidos no processo de produção desses produtos. Ou seja, ela também se encontra no maquinário da linha de montagem de veículos, na extração de lítio para a criação de baterias e nos algoritmos de redirecionamento das mídias sociais. Tecnologia, além do produto final, é o processo de produção desempenhado sobre ele; tecnologia é, portanto, trabalho.

As Revoluções Industriais foram revoluções tecnológicas, isto é, revoluções na forma de produção da vida (e nas organizações do trabalho), e que só puderam ocorrer em sua escala e proporção devido a forma como as relações geopolíticas se desenvolveram durante e pós-colonização. Como nos aponta Galeano (2019), foi tráfico negreiro do período colonial que proporcionou o desenvolvimento do sistema capitalista, bem como os lucros proporcionado para os países colonizadores, como a Inglaterra, que permitiu o avanço industrial nesses países e o surgimento de novas tecnologias, como a máquina a vapor.

A respeito dessas mudanças tecnológicas e, por consequência, dos meios de produção tendo em vista o impacto da colonização, Marx e Engels (2012, p. 45) nos dizem:

O modo de funcionamento da indústria, até então feudal ou corporativo, já não dava conta de atender à necessidade que crescia com os novos mercados. Substitui-o a manufatura. Os mestres de corporação foram desalojados pelo estamento médio industrial; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu perante a divisão do trabalho no interior das próprias oficinas. […] O lugar da manufatura foi ocupado pela grande indústria moderna (MARX; ENGELS, 2012, p.45)

Por ser forma de produção material, a tecnologia está sujeita a maneira de organização dessa sociedade, o que implica dizer que, se há desigualdade decorrente de conflitos entre classes, a tecnologia vai funcionar e se desenvolver de acordo com as regras dessa luta. Isso nos leva ao terceiro ponto para compreender seu papel e o da informação na atualidade: o ato de avançar tecnologicamente é, em essência, imparcial, mas a forma como ele se dará e a quem ele irá atender, não.

Tecnologias podem ser usadas para transportar pessoas através do oceano ou para soltar bombas sobre cidades inteiras, podem conectar pessoas em locais diferentes do globo ou serem usadas para manipular os resultados de eleições presidenciais – tudo vai depender das intenções de quem usa, e não obstante, de quem financia a produção e esse uso. Na sociedade capitalista, a propriedade sobre esses meios está nas mãos da elite, a burguesia, pois é ela que detém o capital que vai determinar quais tecnologias serão desenvolvidas e quais usos elas poderão ter, sempre guiadas pela lógica da acumulação infinita que vai, antes de tudo, pensar nos benefícios que poderão ser usufruídos.

Neste sentido, não podemos ceder a ingenuidade de acreditar que qualquer avanço tecnológico é sinônimo de progresso e prosperidade para a humanidade, pois eles sempre estarão vinculados a intenções materiais de existência e manutenção de uma ordem social, uma vez que “a burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção – ou seja, as relações de produção –, isto é, o conjunto das relações sociais” (MARX; ENGELS, 2012, p. 47). Os avanços tecnológicos foram, em maior ou menor nível, feitos norteados pela ideia de manutenção do capital, e eles são feitos dentro dos limites impostos que não arrisquem contestar essa ordem.

Zuboff (2018) afirma que o big data é, antes de tudo, uma nova forma de acumulação, e podemos constatar isso ao observar as fortunas geradas pelas big techs como o Google e o Facebook (agora renomeado como Meta), bem como empresas que não trabalham necessariamente com mídias sociais e comunicação, como é o caso da Amazon. O que as tecnologias dessas empresas fazem é atravessar todas as esferas da vida pública e privada, em caráter de monopólio, e impor suas vontades e regras sobre as nações, uma vez que não haveria alternativas que não fosse a subjugação.

Essas TICs aparecem e ganham força conforme uma nova fase do capitalismo se desenvolve, a qual Dantas (2012) vai chamar de capital-informação, na qual a informação desempenha um papel primordial na lógica de acumulação de capital. Sendo assim, a chamada ‘era da informação’ é, na sua mais pura dimensão real e material, a era da capitalização da existência.

Elementos que antes estavam fora do domínio do capital por dizerem respeito a questões íntimas e subjetivas, agora estão disponíveis para serem transformadas em dados que alimentarão algoritmos que proporcionaram a circulação do capital. Han (2017) vem chamar essa sociedade de uma sociedade pornográfica, onde tudo é explícito e exposto, e onde nada mais escapa da transparência. De nudes postadas no Twitter a páginas de signos seguidas no Instagram, de curtidas em trailers de filmes a vídeos sobre cuidado com plantas – os elementos que compõem nossa identidade, e com ela nossos traumas, anseios, perturbações e angústias, agora estão expostos na rede e aptos a serem minerados em prol da manutenção de uma classe minoritária poderosa. Zuboff (2018, p. 20) corrobora com essa ideia ao dizer que:

a automação gera simultaneamente informação que proporciona um nível mais profundo de transparência a atividades que pareciam parcial ou totalmente opacas. A automação não somente impõe informação (sob a forma de instruções programadas), mas também produz informação (ZUBOFF, 2018, p. 20).

Na sociedade do capital-informação, onde tudo vira informação e ela é uma commodity, tudo se torna mercadoria, ou opera sob a lógica da mercadoria. Como Marx e Engels (2012) afirmaram, as mudanças nas formas de produção alteram as relações sociais. Elas alteram as relações entre espaços geográficos, como campo e cidade, a organização familiar, o uso do tempo, o aproveitamento dos espaços da comunidade, etc. Com essas novas formas digitais não seria diferente. As TICs alteram nossa forma de falar, trazendo os memes para a linguagem cotidiana; nossos relacionamentos, através dos aplicativos como Tinder e novas formas de flerte através de curtidas e comentários; nossa maneira de aproveitar o tempo, com a apelação a locais ‘instagramáveis’, ou a necessidade do registro de tudo; até mesmo nossas relações sexuais, com o sexting, nudes, sextapes, aplicativos de voltados exclusivamente para sexo, como Grindr, dentre outras formas.

Essas mudanças podem ser vistas como efeitos do progresso, mas acredito que devamos atribuir um outro olhar para isso. Bauman (2001) denuncia a era da liquidez, das relações frágeis, da instabilidade, da incerteza e do efêmero; mas essa era não é natural, ela é causada e agravada por movimentos em prol da manutenção de uma lógica de sociedade e conservação de posicionamentos sociais. Devemos nos perguntar: as TICs vêm nos deixados mais ansiosos ou calmos? Deprimidos ou satisfeitos? É sabido que o excesso de informação gera um cansaço, pois somos incapazes de processar tantos estímulos ao mesmo tempo. Isso é em decorrência de uma ‘fraqueza’ humana ou de um abuso capital? As TICs têm ajudado a nos tornar mais atentos ou distraídos? Mais pacientes ou inquietos?

Uma vez transformados na informação que se torna mercadoria, nos tornamos nós mesmos a mercadoria, mas jamais deixamos de ser consumidores – consumimos a nós mesmos, pois os produtos que nos são redirecionados só chegaram lá porque nós fomos usados. Dessa forma, compartilhando nossas idiossincrasias, permitimos que nossa existência seja ditada por aquilo que possuímos. É isso que Bauman (2001) vem dizer ao falar da vida pelos padrões de consumo. As pessoas LGBTQIA+ que usam das mídias para bravejar seu orgulho tem a pauta convertida em uma capinha de celular com a bandeira do arco-íris para demonstrar que ‘você é engajado o suficiente’; a crítica ao racismo estrutural (ou qualquer deturpação rasa do termo causada pela internet) é transformada em uma campanha massiva de cremes para cabelos crespos empoderados, mas que não impede a chacina de pessoas negras nas favelas. O capital se apoderou de tudo, inclusive das pautas que seriam basilares em sua derrocada – tudo isso graças a penetrabilidade que essa nova forma de produção tem no meio social.

Não devemos nos opor a tecnologia, tampouco ser contra seu avanço, mas devemos ser críticos a respeito da forma como ela é conduzida. O conforto supérfluo trazido por aplicativos como iFood desenvolveram necessidades antes não tão latentes, mas se sustenta através da exploração massiva de trabalhadores de entrega precarizados, em jornadas de trabalho excruciantes e sem o mínimo de seguridade; da mesma forma que em trabalhadores de restaurantes que agora devem dar conta de uma nova demanda, mas com a mesma quantidade de funcionários – ambas as explorações são a base que mantém o império da burguesia digital em pé.

Portanto, para quem os avanços tecnológicos têm trabalhado? A democracia da informação é uma falácia, pois só haverá democracia sob condições igualitárias de existência, numa sociedade levada a desigualdade, uma democracia jamais será plenamente alcançada. Não podemos perder o norte dos conflitos que circundam nossa vida social, tampouco devemos ter visões mitificantes e messiânicas acerca das tecnologias, uma vez que ela sempre estará sendo feita em benefício de algum grupo; as questões que ficam são: quem está, de verdade, com o domínio dessas tecnologias? Estamos realmente cientes da realidade abismal na qual caminhamos? Não estaríamos sendo, afinal, tolos?

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 278 p.

DANTAS, M. Economia política da informação e comunicação em tempos de internet: revisitando a teoria do valor nas redes e no espetáculo. Liinc em Revista, v.8, n.1, março, 2012, Rio de Janeiro, p 283-307.

GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2019. 396 p.

HAN, B. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017a. 116 p.

MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 109 p.

TECNOLOGIA. In: Michaelis: dicionário brasileiro da língua portuguesa. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/tecnologia/. Acesso em: 28 nov. 2021.

ZUBOFF, S. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, F… [et. al.] (orgs.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-68.

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