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A política tóxica em “República do virus”, estreia literária de António Quino no Brasil

António Quino. Foto: divulgação

“Transformou-se num indivíduo ardiloso, cauteloso, astuto, maleável, imprevisível e sisudo. Enfim, tornou-se político.” – República do vírus, Antônio Quino

“República do virus”, primeiro livro do escritor angolano António Quino lançado no Brasil, é uma sátira sobre como políticos fazem uso do poder em benefício próprio e em atitudes contrárias aos interesses do povo.  Corrupção, golpe e manipulação da opinião pública compõem a ficção, tudo envolvido com uma ironia que nos permite ver o ridículo que há nas atuações dos que vivem em busca da manutenção ou ascenção de um poder político, levando o leitor ao riso e à reflexão.

Na Narrativa, Zuão Xipululu, membro do partido PIM-PAM-PUM, precisa fazer uso de diversos artifícios para se manter em uma boa posição política, promovendo até mesmo um novo entendimento sobre o vírus mbunda, que afeta os indivíduos da República Unida da Mulumba (RUM).

Quino é jornalista, ensaísta e professor, mestre em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa e doutor em Ciências da Literatura. Publicou em 2014 o ensaio “Duas faces da esperança: Agostinho Neto e António Nobre num estudo comparado” e organizou as coletâneas “Balada dos Homens que Sonham – breve antologia de contos angolanos” (2012), e “Pássaros de asas abertas” (2016), em comemoração aos quarenta anos da independência de Angola.

Para um brasileiro mais atento, “República do virus” tanto pode remeter às atitudes do famoso personagem de Dias Gomes, Odorico Paraguaçu, em “O bem amado”, quanto as desacertos dos políticos brasileiros nesta segunda metade da década de 2010.

Nesta entrevista, conversamos com António Quino sobre o mercado editorial em Angola, as influências da literatura brasileira na sua formação como leitor e escritor e as expectativas sobre o lançamento do seu livro no Brasil.

Como surgiu a ideia de escrever “República do Vírus”? Do que trata essencialmente o livro?

A ideia de escrever República do Vírus invadiu-me a partir do momento em que, pelas vicissitudes do dia-a-dia, com tombos e arrepios, me fiz ver que a vida é muito curta para estarmos com vincos na teste; com semblante carregado, só porque o insucesso nos bateu a porta. Pensei que era possível descontrair diante das dificuldades da vida.

Assim, fui escrevendo as estórias que corporizam a “República do Vírus”. O livro trata de um assunto sério: política, políticos e eleitores. Mas, claro, como o nosso quotidiano já é duro, era necessário não carregar mais no grau de seriedade na abordagem. É assim que nasce uma República Unida da Mulumba, governada por um partido político denominado PIM-PAM-PUM.

Há as sacanices que envolvem a política e as manobras que muitos fazem para se manter ou atingir o poder, no meio de um vírus, também ele “gente boa”. Repare, por exemplo, que o vírus não ataca nos finais de semana. Respeita o dia da cervejinha.

Confesso que quando as narrativas me corriam pela cabeça, eu ria-me. Mas, repito, é um assunto sério; uma chamada de atenção para a responsabilidade que cada cidadão/eleitor tem na escolha de quem nos governa, tanto em Angola como no Brasil.

República do vírus é uma sátira sobre atuações políticas questionáveis. Podemos fazer relações do livro com a história política de alguns países africanos, ou com alguma realidade política específica?

Eu não centraria a narrativa ao contexto africano, porque pelo mundo vemos políticos que fazem da dor, da lágrima, do luto, do suor ou do sofrimento de outrem a sua fonte de inspiração eleitoral. E o cidadão cai tontinho, tornando-se cúmplice do que ele, político no poder, vier a fazer com o bastão do poder.

Não apenas em África, mas pelo mundo temos políticos bons, medíocres e maus; patriotas, déspotas ou corruptos. O que retive do livro, como leitor, é que os políticos fazem muito bem o seu trabalho de casa, mas que é importante existir uma consciência mais participativa e crítica do eleitorado, para não se deixar manipular por candidatos que querem nacionalizar até um vírus, apelando ao sentido patriótico do eleitor.

Como foram seus primeiros passos como escritor?

Sinceramente, não sei como responder. Considero-me um leitor insaciável, agora muito menos devido às responsabilidades profissionais. Mas lia muito. Quando adolescente, vezes houve em que tinha livro, daqueles da colecção sete balas, carabina de ouro etc., com folhas carcomidas ou sem as páginas do fim, partes essenciais para a compreensão do livro estavam sumidas.

O meu exercício era recrear os parágrafos ou finais ausentes nesses livros e me iludir com a minha ficção sobre a ficção alheia. Penso que vem daí o exercício de escrita, aliado ao fato de ter crescido numa casa em que as estantes estavam decoradas com livros do meu pai, na altura, funcionário da Universidade Agostinho Neto, a única de então.

Algum escritor brasileiro passou pela sua formação como leitor? Quais foram os escritores mais importantes para sua formação como escritor?

Do Brasil tenho muitas referências. No conto, adoro o Carlos Drummond de Andrade. Inclusive, quando eu escrevia as estórias que corporizaram depois a “República do Vírus”, tinha na cabeceira o seu livro Contos Plausíveis. Na poesia, além do próprio Drummond, deleito-me com Solano Trindade. É o máximo a forma como ele constrói o mundo da liberdade negra.

Claro que também aprecio muito Castro Alves. É duma elegância nas palavras…! No romance, o inevitável Jorge Amado, mas não perco de vista a pena de Machado de Assis e de José de Alencar. Olho-os como farol na construção da lírica, do enredo, da narrativa e até na figuração das personagens.

Como você analisa a recepção da literatura brasileira em Angola?

Sobre a recepção da literatura brasileira em Angola, devo antes viajar no tempo e olhar para o processo de consciencialização das elites angolanas, que viam o Brasil como um farol. E desse ponto de vista, até na literatura esse olhar existiu. Hoje muito menos, mas a Semana de Arte Moderna, por exemplo, ou ainda o Grupo Sul[1], criado por jovens de Florianópolis em 1947, marcaram a literatura angolana.

No primeiro caso, a reinvenção do português escrito, e no segundo o diálogo literário entre Angola e Brasil através das chamadas Cartas coligidas e selecionadas por Salim Miguel, escritor brasileiro que reuniu documentos referentes à troca de correspondência de 1947 a 1960, particularmente entre escritores angolanos e a redação da revista Sul de Florianópolis, no Brasil, são evidências que marcam a presença brasileira na literatura angolana. A literatura brasileira é bastante consumida, embora não mais que as telenovelas.

E o conhecimento sobre a literatura angolana no Brasil?

Julgo que é um processo natural e necessário. E até é a repetição da história. Quando o Brasil se tornou independente, ainda no século XIX, a formação de um imaginário político de liberdade, iniciado por intelectuais progressistas angolanos, teve o Brasil como um forte referente. Portugal deixou de ser referência. Entre esses intelectuais estavam muitos escritores que se viraram para o Brasil como fonte.

Pelas fortes relações históricas, de sangue, de utopias e sonhos, o fato do Brasil ser hoje uma porta bandeira mundial da língua portuguesa, entrar no mercado editorial brasileiro é para mim um grande privilégio. Sem contarmos com a massa intelectual e milhões de leitores que tem o planeta Brasil. Nós angolanos olhamos para o mercado editorial brasileiro com muita expectativa.

Gostaria que você comentasse um pouco sobre o mercado editorial em Angola?

O mercado editorial em Angola atravessa um ambiente bastante desafiante, como é nessa altura o próprio País. Estamos numa fase de particular revolução de mentalidades, de comportamentos e de atitudes político-social-cultural. Isso abrange o mercado editorial, que diante das dificuldades de ordem financeira e da quase ineficácia da sobrevivência pela venda de títulos ou livros, não entrega as armas.

Publicar em Angola já foi mais aliciante. Hoje, editar em Angola fica muito caro, e as vendas nem sempre retribuem o investimento. Mas a “República mundial da Letras” (conforme Casanova) resiste com heroísmo. Curiosamente, o mundo de leitores vai crescendo em quantidade e qualidade, com um maior número de cidadãos letrados e em universidades. E, claro, o universo de escritores também.

Qual a sua expectativa para o lançamento do livro “República do Vírus” no Brasil?

Procurei produzir uma narrativa universalista, com uma linguagem à angolano, esperando que o leitor brasileiro se identifique com a estória. Como um mundo aberto, desejo que o livro abra um campo de debate sobre os temas que nele cabem e, dessa contribuição, produzir-se consciências mais sãs a favor das sociedades e desse mundo tão belo que, infelizmente, não preservamos.

Espero que o leitor brasileiro me ajude a crescer através da leitura e apreciação crítica do livro. Como é evidente, para isso acontecer é preciso que comprem o livro.

Título: República do vírus

Autor: António Quino

Assunto: Literatura angolana; Ficção angolana; Romance angolano

Editora: Malê

ISBN: 978-85-92736-57-6

Páginas: 94

Sobre o autor:

António Quino, para quem ainda não o conhece, é um excelente escritor angolano baseado em Luanda, essa cidade africana que pode ser considerada nossa coirmã. A dimensão de sua escrita, fluente e dinâmica, das suas envolventes narrativas, representada no romance e nos contos, pode ser agora aferida com a publicação de “República do vírus”, esse pequeno romance que traz como ponto central a sátira como embasamento do seu tecido ficcional, ao contar a história de Zuão Xipululu, conhecido como “Introcável”, alto dirigente político, membro do partido governista PIM-PAM-PUM, homem seduzido pelo poder e pela lógica da corrupção, algo que dialoga frontalmente com os tempos atuais, seja em referência ao Brasil, seja no resto do mundo.

Ao ambientar o personagem na fictícia Mulumba, Quino desenvolve uma trama que percorre os meandros da política de um estado autoritário e repressor, corrupto e sequioso por manter-se no poder a qualquer preço. Daí é que nasce o enredo da história. Em uma sociedade altamente oprimida e subserviente aos desmandos das autoridades, eis que surge uma peste que apavora e passa a adoecer e dizimar a população. Para combater a queda crescente de popularidade, os dirigentes políticos usam o letal vírus como arma de defesa nacional, sob o argumento de que nações poderosas querem se apoderar de uma propriedade do povo mulumbeiro, afinal o vírus foi criado lá.

António Quino, numa linguagem moderna e bastante fluida, dentro dos padrões linguísticos do português falado em Angola, conservado integralmente nesta edição, dá à história uma governança narrativa que permite, mesmo como meros leitores, interagir e nos entretermos, tal a dose de envolvimento e de humor e sarcasmo que emoldura o perfil de muitos dos seus personagens.

Sua prosa, sem exagero, nada deve aos grandes nomes da literatura africana contemporânea, seja de Angola ou de qualquer outra parte da grande Mãe África. Pelo contrário, muitas vezes excede pelo apuro. Melhor razão não há, a não ser esta, para conhecermos vivamente este belíssimo livro. A oportunidade é única. O autor angolano, estreante para o público brasileiro, certamente vai surpreender a todas e todos pela originalidade do seu processo criativo e por sua rara habilidade como exímio narrador e contador de histórias.

Tom Farias – jornalista e escritor

[1] O Grupo Sul foi o movimento artístico que levou o modernismo a Santa Catarina na década de 1950. O Círculo de Arte Moderna, como primeiro se autodenominou, defendeu um modernismo sem rejeição do passado, mas determinado a mudar os parâmetros tradicionalistas das artes. Salim Miguel (1924), Eglê Malheiros (1928), Armando Carreirão (1925), Silveira de Souza (1933), Ody Fraga (1927 – 1987), Walmor Cardoso da Silva, Adolfo Boos Jr. (1931), Aníbal Nunes Pires (1915 – 1978), Archibaldo Neves e Hamilton Ferreira foram alguns de seus integrantes.  O grupo editava a Revista Sul, que sobreviveu até 1957 e teve mais de 20 edições, era voltada principalmente para autores novos. Suas atividades editoriais incluíram ainda a edição de cerca de 15 livros de autores novos. Os Cadernos, outra iniciativa do Grupo Sul, possibilitaram que fossem lançados autores que de outra forma não seriam publicados em livro. O intercâmbio estabelecido através da revista também se estendeu a outros países, principalmente os de língua portuguesa e os latino-americanos. Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo635904/grupo-sul

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