Biblioo

A intensidade de “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood

Então, o famoso “O conto da Aia”.

Como algumas outras leitoras, eu tenho problemas com livros aclamados ou campeões de vendas, os “best sellers”. Particularmente, sou implicante e muito desconfiada com livros muito vendidos, em parte porque contam histórias muito parecidas ou que partem de lugares muito comuns, em grande medida porque muitas vezes são bem vendidos por causa, exclusivamente, de grandes investimentos em propaganda. Vendem, mas não são lidos, são lidos, mas não agradam, ou agradam mas não dizem nada de novo.

Eis o motivo de tanta enrolação para lê-lo e também para começar esse texto. As críticas e recomendações eram insistentes, e se tratava de assunto sério e de uma ferramenta para a luta e para o pensar. Meses na estante. Comecei umas três vezes e parei. Sabia que era uma história um pouco pesada, não estava disposta – expectativa é um problema.

Achava chato (os primeiros parágrafos), a leitura não fluía, pensava que não estava no momento certo. É um direito que me dei ao longo dos anos, me permitir desistir de livros e não me forçar mais a ler o que não quero, cada livro no seu tempo. Essa é minha adaptação pessoal das leis da biblioteconomia: “A cada leitor o seu livro e a cada livro seu leitor”. Depois disso tudo, resolvi começar.

Achei meio cansativo no início, porque é muito descritivo e estou uma leitora preguiçosa, mal acostumada e ansiosa. Gosto de coisas explicadas ou que a história comece de uma vez, de preferência bem interessante ou emocionante. E a descrição inicial é de um mundo que não conhecemos, embora de um cenário nem tão difícil de imaginar, mas que parece sem objetivo. É uma sensação bem de início, que se esvai após as oito primeiras páginas.

“Nós dormimos no que antes havia sido o ginásio esportivo. O assoalho era de madeira envernizada, com listras e círculos pintados, para os jogos que antigamente eram disputados ali; os aros para as redes das cestas de basquete ainda estavam em seus lugares, embora as redes tivessem desaparecido.”

Uma personagem que não conhecemos, então não há laço ou interesse pelo que nos diz, que parece insossa e que não está nos dizendo nada de interessante a princípio. Que não tem nome, ou melhor, tem, mas ela não diz qual é e não sabemos o porquê. Enquanto ela descrevia o cenário, eu me lembrava da Agatha Christie quando cismava em descrever cenários que pareciam aleatórios ou o local do crime antes de sabermos que iria ser local de crime e, portanto, desinteressante para nós.

Mas aí a história começa. E a gente fica tentando entender que sociedade é essa?! E haja estômago para descrição de certas cenas. Agora você entende o porquê dela ser tão descritiva. É necessário. É preciso identificarmos o que é familiar e o que é inimaginável. É preciso imaginar o inimaginável.

“Sei por que não há nenhum vidro, na frente do quadro de íris azuis, e por que a janela só se abre parcialmente e por que o vidro nela é inquebrável. Não é de fugas que eles têm medo.”

É impressionante a força das relações entre mulheres e como regimes totalitários entendem e impedem isso. É assustador como colocar uma mulher contra a outra é uma estratégia de dominação eficiente.

“Não temos permissão para ir lá exceto em pares. Supostamente, isso é para nossa proteção, embora a ideia seja absurda: já somos bem protegidas. A verdade é que ela é minha espiã, como eu sou a dela.”

E é incrível as formas de resistência possíveis, quando se vive em situações limite.

“Roubamos saquinhos de papel de açúcar adicionais para ela, da cafeteria nas refeições, os contrabandeávamos para ela, à noite, passando-os de uma cama para a outra. Provavelmente ela não precisava do açúcar, mas era a única coisa que pudemos encontrar para roubar. Para dar.”

O livro tem uma pegada meio 1984, do George Orwell, só que muito melhor, mais doloroso.

“Tento não pensar demais. Como outras coisas agora, os pensamentos devem ser racionados. Há muita coisa em que não é produtivo pensar. (…)”

É bem impactante. Mas é bem divertido também. A narrativa tem momentos de descontração inacreditáveis, que faz a gente parar a leitura pra se perguntar como uma autora pode ser espirituosa escrevendo um texto tão denso. E a gente acaba gostando da personagem, afinal. Ela é comum, nada heróica e mesmo assim incrível.

“Eu disse que havia mais de uma maneira de viver com a cabeça enfiada na areia e que se Moira acreditava que podia criar a Utopia confinando-se em um enclave só para mulheres, estava tristemente enganada. Os homens não iriam simplesmente desaparecer, disse. Não era possível apenas ignorá-los. Isso é como dizer que você deve sair e contrair sífilis apenas porque ela existe, disse Moira. Você está chamando Luke de doença venéra? Ela deu uma gargalhada. Escute só a gente, disse. Merda. Estamos parecendo a sua mãe falando.”

E o final é “O QUÊÊÊÊ????” Não acredito que acaba assim. Fiquei em pânico, tensa, nervosa, confusa, curiosa. E não acaba. Só que acaba, mas menos pior. Eu não gosto de spoiler, então paro por aqui. Mas se quiser spoiler pode pedir.

O último capítulo, que parece um apêndice, é também parte da história e totalmente ficcional. Eu recomendo que espere umas horas para lê-lo, após terminar o anterior, porque
ele atrapalha o processo de indignação que estamos quando achamos que o livro acabou, mas não acabou. Se você não se importa com isso, siga a leitura feliz.

O livro virou uma série que me tem sido muito recomendada depois que li o livro, mas que parece um consenso que as cenas que são fortes no livro são ainda mais angustiantes visualmente. Imagino. Também ouvi reclamações sobre alterações na série, que não agradaram. Adaptações são obras totalmente diferentes e mudanças são necessárias, então devemos tentar separar ao máximo nosso apego imaginário ao assistir uma obra adaptada. Ou não assisti-la.

O livro é muito intenso e dividido em capítulos bem curtos, o que faz com que a leitura seja bem dinâmica. Não tem uma linguagem rebuscada ou cansativa. Acho que no fim das contas, o livro é sobre resistência, sobre a importância de contarmos a nossa história, o nosso ponto de vista. E que, muitas vezes, sobreviver é a melhor forma de resistir.

Capa do livro “O Conto da Aia”. Imagem: divulgação

Título: O Conto da Aia
Autor: Margaret Atwood
Editora: Rocco
ISBN: 85-325-2066-9
Ano: 2017
Páginas: 366
Tradutora: Ana Deiró

Comentários

Comentários