Em greve há quase três meses na Universidade de São Paulo USP, começo este texto movida pela vontade incurável de explicar a greve para quem não vive, como eu, essa realidade em seu cotidiano. Comecei a fazer isso há alguns anos, em meu blogDia de Greve, Dia de Trabalho.

Quando estoura uma greve, não importa de qual categoria, as pessoas que apenas sentem os efeitos da paralisação – ou não sentem nada e não estão nem aí – têm acesso a dois tipos de discurso sobre o evento: o patronal e o da imprensa. O primeiro, naturalmente, é a simples defesa do ponto de vista dos empresários ou dirigentes. O segundo, em geral, não passa de uma visão superficial ou tendenciosa dos fatos, quando não a reprodução pura e simples do primeiro.

Milhares protestam contra a política de sucateamento das universidades públicas em São Paulo. Foto: Sindicato dos Trabalhadores da USP

Milhares protestam contra a política de sucateamento das universidades públicas em São Paulo. Foto: Sindicato dos Trabalhadores da USP

Há também o discurso sindical que tem como uma de suas funções mais importantes manter elevado o ânimo dos grevistas e estimular a participação no movimento, mas que  geralmente não consegue atingir muita gente fora da categoria que representa. O discurso patronal e o sindical se opõem e se enfrentam, mas ambos têm, necessária e inevitavelmente, muito de propaganda.

Sempre achei que faltava, nessa guerra de informações e troca de acusações de “intransigência” e “truculência”, a voz do grevista médio, aquela pessoa que está apenas lutando por seus direitos, que comparece diariamente em seu local de trabalho durante a greve para participar das atividades do movimento e não se aproveita da situação para passear ou dormir, mas que não é necessariamente liderança nem sindicalista. Foi por isso que comecei e continuo a escrever sobre greve.

Hoje, ainda não sei como vai terminar a greve das três universidades estaduais paulistas, se conseguiremos um acordo aceitável ou apenas corte de salário e outras punições. Greve, ao contrário do que muita gente parece pensar, sempre envolve risco. Só tenho certeza de uma coisa: não importa como acabe a greve em andamento, os problemas da USP não terminam junto com o movimento. Temos aí uma crise para enfrentar e essa, com certeza, não será a última greve da USP.

A greve foi desencadeada pelo impacto do reajuste salarial ZERO que nos foi concedido este ano. Solicitamos reposição salarial correspondente à inflação do período maio/2013 a abril/2014, mais 3% de recuperação de perdas, e recebemos ZERO, proposta nada interessante para trabalhadores que pagam aluguel ou prestação da casa, condomínio, plano de saúde, escola, farmácia, gasolina, comida, essas coisas todas cujos preços costumam subir mais do que zero. E temos ainda uma extensa pauta de reivindicaçõesformada por demandas específicas dos estudantes, funcionários e professores das três universidades.

O Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas não negociou com o movimento, não recebemos nenhuma proposta melhor do que ZERO e continuamos em greve. QUE ABSURDO, gritam as pessoas que não sabem como greves funcionam. Como é possível ficar tanto tempo em greve? É simples: se as reivindicações não são atendidas, se não há negociação e se os grevistas têm organização e fôlego para tanto, as greves costumam continuar. Não há um prazo regulamentar considerado elegante para uma greve terminar. Os movimentos grevistas mais conhecidos pela população, como os dos metroviários, duram bem menos porque têm a capacidade de virar do avesso uma cidade, o que obriga o outro lado a negociar rapidinho. Não é o caso de uma greve de universidades, infelizmente.

Já fizemos greves longas e difíceis na USP, mas desta vez a maior complicação é a alegação da reitoria de que a folha de pagamentos da Universidade estaria consumindo 105% de seu orçamento e que a instituição, para continuar funcionando, estaria consumindo rapidamente suas reservas financeiras. E mais: a gestão anterior, de João Grandino Rodas, teria inflado o quadro de pessoal e aumentado salários de forma irresponsável, causando a crise de proporções ciclópicas que o atual senhor uspiano – Marco Antonio Zago – está enfrentando.

Pedem-nos compreensão. Com esse quadro, não seria possível reajustar salários, segundo nossos dirigentes. Entretanto, nos últimos quatro ou cinco anos alardeava-se que a USP tinha muito dinheiro, que dinheiro não era problema, que precisávamos gastar mais dinheiro para o governo não ter a ideia de reduzir nossa verba. No final de 2012,as universidades paulistas nadavam em dinheiro. Agora nos pedem para acreditar que não há mais recursos e que a culpa é nossa. Para quem não sabe, o atual reitor ocupava o cargo de pró-reitor de pesquisa na gestão anterior e nenhum dos atuais dirigentes chegou ontem à Universidade, mas agora todos dizem não saber o que estava acontecendo.

Pedem nossa compreensão e nossa confiança. Por que as teriam?

A atual crise e as dúvidas que suscita colocam em escandalosa evidência duas questões que têm sido muito discutidas durante a greve, por grevistas e não grevistas: transparência e democracia, conceitos muito estudados no ambiente acadêmico, mas pouco praticados na administração dos acadêmicos que mandam.

Não podemos simplesmente acreditar que a USP gasta 105% com a folha de pagamento e ficar quietinhos porque as contas da administração uspiana não são abertas. A Associação dos Docentes da USP (Adusp)  exige transparência e questiona fortemente os números da reitoria:

Vamos pensar cientificamente e agir de acordo com a lei?

Debate sobre os números (vídeo)

Em meu post sobre a greve da USP no blogBibliotecários Sem Fronteiras fiz uma espécie de resumo do vídeo de debate, apontando os momentos que considerei mais interessantes. A versão oficial sobre a crise também é contestada pelos professoresJoão Sette Whitaker,Sean Purdy,Vladimir Safatle eAndré Singer, para citar apenas alguns dos docentes questionadores.Marilena Chauí, muito oportunamente,  lança luzes sobre a origem da crise explicando como passamos “da ideia da universidade como instituição social à sua definição como organização prestadora de serviços”.

A falta de democracia na administração explica muita coisa. Que decisões nos fizeram passar de instituição onde “dinheiro não é problema” para instituição falida? Provavelmente decisões equivocadas tomadas de forma autocrática por pessoas que acreditam que um título de doutor em qualquer coisa as torna automaticamente um especialista em administração. Decisões que não foram contestadas por quem teria condições de saber que estavam erradas, porque na USP o hábito de questionar ordens superiores não é considerado saudável. Obediência e submissão garantem o sossego e não raramente a progressão na carreira de muita gente esperta, que hoje deve estar dizendo “eu sabia que não ia dar certo, mas não podia dizer isso ao professor”. Ou ao chefe, simplesmente, porque a instituição chefa é tão endeusada que até chefes incompetentes, que são funcionários – portanto menos que nada na estrutura de poder – costumam ser obedecidos alegremente.

Há excesso de funcionários, dizem, mas não mostram onde há funcionários demais e nem por que foram contratados. Nesses meus trinta e três anos de USP, incluindo os últimos de suposta fartura, jamais ouvi chefe ou qualquer funcionário ou professor reclamar de excesso de funcionários. Nunca ouvi ninguém dizer que “lá onde trabalho tem gente sobrando”. Quando um funcionário pede transferência para outro local, normalmente sua saída só é autorizada mediante troca, porque ninguém pode abrir mão de funcionário.

Dizem também que os funcionários estão recebendo salários acima do mercado. Entretanto, desde que trabalho na USP uma das grandes queixas de administradores é a perda dos melhores funcionários para o mercado, por conta dos salários inferiores aos da iniciativa privada. A Universidade investia na formação de um técnico, treinava e pagava cursos, apenas para ver esse funcionário, quando atingia o nível de especialização esperado, sair para ganhar mais no mercado. Para não falar de histórias de concursos que não conseguiam contratar ninguém porque o salário não era atrativo. Esse foi um dos motivos pelos quais conseguimos implantar um plano de carreira para os servidores da USP. Será que corrigimos, finalmente, esse problema? E agora isso virou uma das causas da crise?

Estou em greve porque acredito que os funcionários e professores da USP precisam e têm direito a um reajuste salarial razoável e que a Universidade tem condições de conceder. Observem que estamos falando tão somente de reajuste, não de aumento, muita gente confunde. Mas também estou em greve porque não concordo que o Hospital Universitário seja desvinculado da USP, medida que a Reitoria está tentando vender para a comunidade como uma das soluções para a crise. E também porque acredito que a transparência e a democratização reais são absolutamente necessárias para a sobrevivência da Universidade de São Paulo, e que nossa organização é a força que mais atua a favor disso.

Aguardem, nos próximos textos, assuntos quentes como violência, piquetes, manipulação e resistência sistemática.

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