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A grande sombra

A melancolia prazerosa do pacato final de tarde ainda não conhece este lugar. E duvido que um dia possa conhecer. São quase cinco e meia da tarde e uma mistura rocambolesca de engarrafamento rodando em loop infinito, calor e vozes escandalosas completam a minha rotina. Estou parada em frente a uma suqueria enquanto espero – apenas espero. Há quase uma hora estou na mesma posição, sem conseguir mover um pé ou equilibrar o peso do corpo. Preciso esperar alguém chegar para receber documentos mofados, guardados em pastas igualmente bolorentas, e entregá-los para outro alguém. Henry Ford ficaria orgulhoso!

Pessoas estão correndo, como sempre, para chegar a lugar algum – ou a algum lugar, depende do ponto de vista. Uma mulher vestindo uma calça vermelha de veludo passa me encarando. Ela balança a cabeça de um lado para o outro quando repara na minha camiseta com tema de mandalas e no meu velho all star azul. Segundo depois, uma idosa que se recusa a envelhecer fecha a cara quando um rapaz de boné e camisa de flanela topa em seu ombro, para, segundos depois, sorrir para um homem de terno e colete que tropeça em seu pé, derruba seus papéis e abre a boca em meia lua. Vai entender como são as coisas…

Há também um carro azul metalizado que passa pela rua pelo menos umas cinco vezes, e o motorista se irrita quando buzinas começam a disparar por todos os lados – ele quer ficar mais de cinco minutos parado em uma curva. Há tudo isso na Rua Senador Dantas, mas há também um homem de aproximadamente cinquenta anos carregando uma mochila nas costas, vestindo uma camisa de tecido simples e olhando para as bancadas das lanchonetes próximas. Em seu pescoço, há um rádio pendurado, onde Madonna fica sussurrando em voz alta “You think that I can’t live without your love, you’ll see” para depois gritar “All by myself, I don’t need anyone at all, I know I’ll survive, I know I’ll stay alive” (“Você acha que eu não posso viver sem o seu amor, você vai ver/ Totalmente sozinha, eu não preciso mesmo de ninguém, eu sei que vou sobreviver, eu sei que vou ficar viva”). O homem anda com dificuldade, arrastando a perna esquerda, e continua olhando as bancadas das lanchonetes, alheio a tudo e a todos. Só o que parece existir é o seu rádio de pilhas.

Uma mulher de óculos escuros caminha lentamente com as mãos nos bolsos e, ao passar pelo homem, reclama do volume do som. Fala algo como “Você deveria baixar isso, seu idiota”. O homem do rádio nem a percebe. Ainda bem, porque pessoas assim não valem o esforço da percepção.

No momento em que fitei o sujeito, eu lembrei de outro homem, talvez um mendigo, que circulava pela Avenida Rio Branco certo dia. Eu estava indo entregar um trabalho para outra pessoa entregar para outra pessoa, uma vida humana baseada em obsolescência programada, quando ouvi o som do rádio no maior volume. Um homem que não tomava banho há vários dias, de camisa laranja e calção vermelho, carregando um saco plástico nas costas e, em uma das mãos, um rádio de pilha, passou pela multidão apressada. Foi empurrado por homens maiores do que ele, encarado com nojo por mulheres de salto alto que andam feito marrecas e xingado por sujeitos usando ternos com formato de rabecão e gravatas que mais parecem cordas de execução. Também não se importou. Continuou seu trajeto para o infinito ouvindo a música que espocava no rádio: sua única companhia.

Por mais do que alguns segundos, pensei sobre o que os agressores em potencial daqueles homens e de seus rádios sabem sobre solidão; o que nós, vistos e revistos pelo nosso grupo social – e sempre insatisfeitos, querendo mais e mais atenção –, sabemos sobre os seres humanos invisíveis. A resposta limpa e honesta é: NADA. Nós não sabemos NADA. Mas a falsa sensação de indiferença que sentimos, unida à crença do “cada um cuide de si”, nos transforma em espantalhos surdos à existência do outro. Provavelmente, o espírito do rádio, velho companheiro de pessoas socialmente esquecidas, saiba muito mais do que nós. Vivemos a vida olhando para os outros como meros projetos de sombras quando, do alto de nossa frieza, não nos damos conta de que a fuligem está em nós. Nós assinamos, dia após dia, o esquecimento da humanidade. A grande sombra somos nós.

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