Algumas obras, especialmente livros e artigos, foram escritos sobre a História da Biblioteconomia no Brasil. Umas mais descritivas, outras mais críticas e ainda outras mesclando as duas realidades como é possível observar nos livros de Rubens Borba de Morais (Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial); Francisco das Chagas de Souza (O ensino de Biblioteconomia no contexto brasileiro); Edson Nery da Fonseca (Introdução à Biblioteconomia); César Augusto Castro (História da Biblioteconomia brasileira); Mariza Russo (Fundamentos da Biblioteconomia e Ciência da Informação); Jonathas Carvalho (Uma análise sobre a identidade da Biblioteconomia: perspectivas históricas e objeto de estudo), entre outros.

Toda área do conhecimento que se preze deve construir sua fundamentação histórica pautada na consistência de seus devires (acadêmico, profissional e político-institucional). Porém, quando falamos em História, estamos muito pautados na breve percepção isolada sobre o passado, mas muitos podem perguntar: mas a História não trata precisamente de falar sobre o passado? De fato, esta é uma percepção muito reducionista e instaura um espectro de limitação e conformidade histórica. Em tese, a História trata das múltiplas perspectivas para contextualizar as dimensões entre passado e presente (e também presente e passado, já que condições históricas do tempo presente podem revelar muitas questões do passado) buscando estabelecer previsões para o futuro (concepções preditivas).

Será que um dos grandes desafios (e também talvez dificuldades) da Biblioteconomia é estabelecer uma contextualização temporal (passado, presente e perspectivas para o futuro) em termos acadêmicos, pragmáticos (atuação profissional) e de representação político-institucional? Como as questões são muito amplas e exigem um espaço maior de reflexão, focalizo a reflexão sobre os aspectos de atuação profissional da Biblioteconomia.

Durante sua trajetória profissional, a Biblioteconomia foi construindo/agregando valores e técnicas que vão desde as práticas de organização e tratamento, passando por dinâmicas de acervo, uso de fontes, serviços e gestão, assim como atividades envolvendo tecnologias de informação. Para todos os efeitos, em uma percepção preliminar, todas essas atividades estão correlacionadas e fazem parte do que podemos chamar de prática biblioteconômica holística, já que envolve um totalizador de ação profissional.

Porém, a grande questão é: como correlacionar esse fazer profissional no processo de atuação das bibliotecas? Considerando a amplitude da questão, pontuo dois fatores essenciais que compõem o fazer profissional:

a)      o primeiro indica um contexto interno referente aos conteúdos desenvolvidos na formação acadêmica (incluindo graduações, especializações, mestrado, doutorado, cursos de qualificação, eventos etc.) e sua apropriação pelos bibliotecários;

b)      o segundo é de contexto externo (complementar ao primeiro), sendo norteado pelo nível de autonomia que o profissional possui para atuar, conforme os desideratos da cultura organizacional e pela necessidade de ocupação de novos espaços.

Quanto ao primeiro fator, não é de hoje que acompanhamos diversas manifestações em torno das reformulações curriculares nos cursos de graduação em Biblioteconomia, incluindo seus “generalismos” (por um lado apresenta conteúdos múltiplos e, por outro, com dificuldades de aplicação no mercado), além da falta de elementos para qualificação profissional, especialmente no que tange a especializações e pós-graduações stricto sensu.

Em termos emergenciais é premente o deliberado incentivo à qualificação continuada de bibliotecários promovida por universidades, associações, conselhos e sindicatos em questões cotidianas do fazer profissional como gestão da informação em bibliotecas (individual ou de tipos diversos), tecnologias aplicadas a bibliotecas, dinamização de acervos, mediação da informação em bibliotecas, uso de fontes de informação gerais e especializadas; físicas e digitais etc. em caráter presencial ou EaD. Essa qualificação deve fazer parte do cotidiano de estudantes e profissionais a fim de fortalecer o viés aplicativo da profissão.

Ademais, é pertinente que alunos e professores modifiquem suas percepções no tocante as formas de aprendizagem e aplicação profissional. Escuto de forma constante dos alunos a seguinte frase: “professor, o conteúdo que vejo aqui no Curso não me permite aplicar no mercado porque ambas as realidades (curso e mercado) são diferentes”. E prontamente minha resposta é: “a diferença significativa é que no Curso professores e alunos estão ‘blindados’, de modo que escolhem como, com quem, quando e onde querem trabalhar (sim, estudo também deve ser considerado como trabalho para ampliar essa percepção reducionista que temos), mas no mercado essas escolhas não são possíveis em virtude de que não há mais essa blindagem, já que os profissionais estão sujeitos a lidar com os interesses das organizações que comumente possuem uma visão limitada da atuação do bibliotecário”.

Por isso, é fundamental, além do processo constante de qualificação, que bibliotecários possuam seu portfólio (projeto registrado física e juridicamente de intenções e propostas de atuação) a fim de que possa apresentar a organização nas seleções ou no ato da contratação e dialogar sobre formas de aplicação. Neste documento é crucial o bibliotecário mostrar duas questões gerais: primeiramente, diversas qualidades de aplicação profissional e, segundo, formas de atuar nas demandas específicas da organização (o profissional precisa demonstrar visão aguçada sobre o ambiente de trabalho desde o início do processo de atuação por meio de observações, análises da estrutura administrativa e dos serviços da organização de uma forma geral). Não há garantias, mas estabelece um respeito prévio do profissional perante a organização contratante mostrando que o bibliotecário é um profissional com atividades especializadas produzidas em sua formação em caráter permanente.

No que tange ao segundo fator, eis que nos deparamos com uma realidade mais complexa. Historicamente, a profissão de bibliotecário é reconhecida por indicar vários espaços potenciais de atuação, mas que não são ocupados na prática. Um exemplo categórico são as bibliotecas escolares que podem produzir novos campos de atuação e novas possibilidades de aplicação profissional (a inserção efetiva da Biblioteconomia no campo da educação básica). Um exemplo mais concreto da biblioteca escolar é quando me fazem a seguinte pergunta: “você considera o bibliotecário um educador?” E minha resposta é: “potencialmente, sim, mas como considerar concretamente se a amplíssima maioria das bibliotecas escolares sequer possui um bibliotecário?”.

Neste sentido é que acredito que o reconhecimento da Biblioteconomia perpassa inexoravelmente pela ocupação dos espaços. Embora a profissão tenha apresentado uma crescente ocupação de espaços, principalmente a partir de concursos públicos e bibliotecas universitárias, observo que há uma possibilidade muito mais ampla de espaços, como na biblioteca escolar, órgãos públicos de cunho jurídico, executivo e legislativo. Qualquer profissão que não ocupa seus espaços em sua plenitude (ou próximo disso) dificilmente terá condições de concretizar suas potencialidades estratégicas, por um lado, profissionais, acadêmicas e humanas e, por outro, pedagógicas, gerenciais, técnicas.

Penso que a Biblioteconomia (neste caso o pensamento coletivo de órgãos de classe, professores, profissionais e estudantes) deve ter como grande marco para o futuro profissional, a formalização de processos sobre a ocupação de espaços (quais espaços são passíveis de ocupação, como reivindicar e propor a ocupação dos espaços, seja de caráter público, seja de caráter privado e como projetar um papel profícuo em termos de atuação profissional nesses espaços).

Em síntese, é preciso discutir, analisar, avaliar, promover, propor questões para o futuro profissional da área. Este é um papel meu, seu e dos representantes acadêmicos e político-institucionais da área. O reconhecimento futuro da Biblioteconomia perpassa pelo nosso processo de mobilização e atuação. Algumas conquistas já se efetivaram (ampliação do mercado, redimensionamento da atuação profissional e acadêmica, entre outras), mas ainda é preciso avançar muito mais redimensionando o papel político da Biblioteconomia e esta luta é coletiva.

E viva o futuro da biblioteconomia!!! Que seja simultaneamente ardoroso pelo valor da luta e prazeroso pelas conquistas!!!

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