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23 de abril de 2020: uma crônica ou conto deste dia

“Amanhã irei de Rita Benedito, algo mais alegre,” pensei ontem já planejando minha homenagem de hoje. Foi o que pensei ontem.

Hoje acordo, e lá me vem ele, o de sempre. Me vem à mente. Me vem ao coração. “Não, hoje mudo”. Pego a última fatia de pão, ralo inteiro o único e pequeno pedaço de queijo da Mantiqueira, e o leite só consegue preencher meia xícara. Acendo o forno, espalho por cima o orégano. Vou pensando na Rita: “Hoje é alegria, hoje é batuque, vou dançar para Ogum”. Mas ele vem, e mesmo que mil vezes eu diga não, mil vezes ele virá. Como num pacto. É um pacto.

O forno faz um cheiro bom reacender. O pacto. Busco o disco: é o “Prenda Minha – ao vivo”. O show que fui no Metropolitan em 1998 com a amiga da faculdade. Uma lindeza. Um deleite.

Atendo à vídeo chamada de minha mãe e dou de cara com um pássaro lindo em seus braços. Ela sorri, orgulhosa com a ave morta nas mãos, um gavião eletrocutado assemelhando-se mais a um algo majestoso a dormir, um príncipe parecendo ainda estar ali.

Ela sorri, não pela morte, mas pela oportunidade de acolher tal realeza e poder lhe dar um digno e bom fim. Minha mãe fala algo sobre um estouro ter acabado com a luz em sua rua, e eu só olho o que para mim é um belo rosto adormecido, sabendo-o falecido. Seguro o choro. É tudo bonito. O gavião é bonito. O sorriso de minha mãe é bonito. Seguro o choro.

Encontro o disco: “Domínio público, Jorge Ben, Fernanda Abreu, Racionais MCs, Marinheiro só, Miles Davis”.

O pacto. Aumento o volume. Aumento muito o volume.

“Jorge sentou praça na cavalaria, eu estou feliz porque também sou da sua companhia”.

As lágrimas descem, escorrem. Fecho os olhos. Solto o choro.

“Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge”.

O médico paramentado, com os olhos abatidos por trás da máscara, narrando o desespero de ter de decidir a quem agraciará com o ventilador, o sopro da vida, numa nova e perversa gênese, na qual lhe cabe um papel Divino que lhe vem como um cálice amargo que ele não pode afastar.

“Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem”.

A mulher fala para a câmera, atônita, confusa. Quando o vírus apareceu em sua casa, ocuparam-se da matriarca idosa, protegeram-na, cuidaram-na, recuperaram-na. Não perceberam o filho jovem e supostamente resguardado sendo tomado, dilacerado, abatido.

A mulher parece imersa, habitando o lodo de se debater no afogamento da dor de quem sente escorrer pelos dedos a vida mais amada. Esse afogamento, essa outra forma de morrer sem ar.

“Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem”.

Indígenas são infectados e começam a cair pelo vírus. E seguem caindo no estouro da bala e na ponta da faca. Um assombro prodigioso de buracos a perpetuar nossa culpa e nossa vergonha ao longo da História, uma lacuna, um imenso hiato, um poço tão fundo que nossos mais de duzentos milhões de corpos vivos e pulsantes não possuem carne suficiente para preencher.

“Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam”.

A Barra da Tijuca possui o maior número de casos, e um dos menores números de óbitos. Ligo para Israel, menino que mora no Jacaré e vende paçoca no centro da cidade. Ele me chama de tia, e diz que lava as mãos e toma banho várias vezes ao dia. Tem medo. Pelo menos tem água e sabão. Por aí, nem todos.

“E nem mesmo pensamento eles possam ter para me fazerem mal”.

Choro.

O pão passa do ponto. Queima. Era a última fatia. O queijo gratinado está gostoso, mascarando o sabor do carvão sobre o qual repousa. Como junto com a meia xícara de café com leite gelado. Fico grata.

“Armas de fogo o meu corpo não alcançarão”.

Ligo pra Seu Luiz, meu pai preto velho cheio das ditas comorbidades de Nova Campina, na Baixada. O neto atende, diz que ele saiu. Fico brava, ralho com o menino que, confuso, vai respondendo “tá bem, tá bem…” a todas as minhas recomendações. Seu Luiz, pelo visto, segue sem medo.

“Facas e espadas se quebrem sem o meu corpo tocar”.

Minha mãe sepulta o gavião em seu jardim, dando à ave eletrocutada o justo rito de passagem, o mesmo rito negado a já incontáveis corpos humanos depositados e cobertos em valas comuns, na pressa ditada pela pandemia por aqui a se espalhar sob a égide de um intencional pandemônio.

“Cordas e correntes arrebentem sem o meu corpo amarrar”.

E tosse por todos os lados o vírus, o fogo e o gelo dos infernos, o que se sente acima de Deus, o que se traveste de pátria e constituição, o que fomenta a morte e recusa o papel de coveiro, o grande dragão demente de maldade, cuja cabeça precisa ser cortada antes que nos devore ou infecte a todos.

“Pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge”.

O show do “Prenda Minha” foi uma lindeza. O disco segue. Pulo para a faixa de “Terra”, uma das músicas que, na minha infância, painho colocava incansavelmente no vinil de capa branca, e a fotografia de Dona Canô com o filho ao colo, refestelado ganhando essa coisa tão preciosa que é um cafuné.

Painho, o meu velho e bom boêmio, rebelde a debochar dizendo “eu tenho sete doenças”, ostentando com graça como um troféu sua resistência tão admirável quanto indisciplinada aos males que acabaram por vence-lo e leva-lo. Impossível imagina-lo trancafiado, reto e obediente às recomendações da Organização Mundial da Saúde. Uma saudade a mais. Uma agonia a menos.

Sorrio.

Nessa versão de “Terra” ao vivo há um momento apoteótico, quando, já ao final, entra um berimbau que quero abençoar, e às mãos que o tocam, por toda a eternidade que parece ser esse mínimo instante em que ele reina absoluto na canção. Logo ele aparece.

Sorrio.

O sorriso de minha mãe. A alegria de meu pai. A despensa vazia me obrigando a ir às compras.

Sorrio. O volume continua alto. Sorrio e aguardo o berimbau. Logo ele chega…

Perdão, Rita. Mais tarde dançamos o seu “Domingo 23”, mas tenho com Caetano o pacto de todo 23 de abril. Hoje não mudei. Tenho com Caetano o pacto de toda uma vida. Herança de Painho.

“Jorge é de Capadócia.”

Jorge é do Brasil. Salve Jorge.

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