Numa tarde de sexta-feira de 1941, uma mulher de meia idade vestiu seu casaco, encheu os bolsos com pedras, e penetrou, silenciosamente, o Rio Ouse. Foi protagonizando essa liturgia dramática que a escritora Virgínia Woolf deu cabo à sua existência. Por quê? E suicídio se justifica? Ah! Quem é que nunca se questionou a respeito da motivação que levou o cara do andar de cima a se lançar da sua cobertura de quatro milhões de reais? Acho injusto taxar de mera bisbilhotice esse tipo de indagação. O medo é a força que nos move. O suicida se converte num fantasma insolentemente atraente, semelhante à Eurídice do Cazuza, com suas caixas coloridas e a orelha decepada. É esperado que toda cria da perdição ameace os filhos de Adão com a sentença: “Somos farinha do mesmo saco.” Quando perguntamos “por que fulano se matou?”, queremos estabelecer uma distância suficientemente segura entre a história do desgraçado e a nossa. O temor é tamanho que, sem dar tempo de resposta, disparamos: “Fez isso pelas dívidas”; “descobriu um câncer em fase terminal; “era esquizofrênico”. Desse modo, respiramos, aliviados, por um curto espaço de tempo, convencidos de que as farinhas não se misturaram, até que, sorrateiramente, outro camicase nos apavore com uma história de vida similar à nossa.

A morte é destino, e suicídio não passa de plágio. Mímesis barata, segundo o evangelho de São Girard. O que sei é que o “por quê?” lacrimoso sempre termina em delação. Incriminaremos o marido que não se desdobrou em cuidados, ou a vizinha que despejou seu azedume na reunião de condomínio? É até possível que tenhamos culpa no cartório. Cairá sobre quem o fatídico desfecho? E assim, amedrontados pela possibilidade do dolo ou do delírio perpetrado pelo cotidiano dolente – a casa hipotecada ou o amor não correspondido –, fitamos o rosto da filha de Judas e gritamos: Por que fez isso, Virgínia?

Hey, brothers. Say, brothers. It’s a long long long long way.” Deliremos juntos. É o que nos resta. A Sra. Woolf está aqui, neste auditório, confortavelmente acomodada, disposta a matar nossa sede de verdade. Teremos quatro porta-vozes. Por que quatro? Quatro são os ventos, quatro as estações, quatro os pontos cardeais, quatro os impérios mundiais mencionados pelo Daniel bíblico, e quatro serão os cavaleiros do Apocalipse interrogando Virgínia: a peste, a guerra, a fome e a morte. Quatro é a soma exata do eu e do Outro. Quatro é a universalidade simétrica. Portanto, os aqui presentes, incluindo os que já partiram para o além ou para a parada de ônibus, estão plenamente representados por estas figuras. Uma será a pergunta: “Quem dos quatro te matou?”.

O senhor da peste, primeiro cavaleiro da trama, se aproxima. Do alto de seu cavalo branco, apenas esquadrinha, em silêncio, os movimentos dela, esperando encontrar no semblante ou no tilintar dos dedos, evidências de insanidade. Virgínia, acostumada ao trato com os discípulos de Charcot, não se intimida. Imagino-a sugerindo ao médico que chafurde os dedos e olhos nas densas páginas do Sistema de Classificação Internacional de Doenças, identificando algum termo e código que contemplassem, adequadamente, seu quadro mental. Após consumir um tempo generoso confrontando patologias assemelhadas e sintomas idênticos, o potente cavalo branco bate o casco, adiantando ter chegado a um diagnóstico: o fim fatídico foi resultado do transtorno bipolar afetivo. Confusamente, o índice temático, rementendo-o para um termo relacionado, o lança para o precipício da dúvida: “Mas, pensando bem, não seria uma borderline?” O riso de Virgínia fez com o que o expert em moléstias voltasse para casa, constrangido pelo diagnóstico ambíguo, mas seguro de que fez o melhor que pode.

O senhor da guerra, nosso segundo cavaleiro, desembainha, tremeluzindo sua espada: “Fui o culpado pela tua infelicidade, Virgínia, ao criticar, impiedosamente, o seu biógrafo?” A suicida não se faz de rogada: “Afoguei-me, amargurada, por não ter me garantido um momento de paz, sendo injusto e canalha com Roger Fry, meu amigo e biógrafo. Se isso te consola, saiba que não foste o único responsável pela minha desgraça.” O eu feminino lesado por uma imprensa misógina? Certamente. Ferida, mas não fenecida. O flamejante cavalo vermelho (híppos pyrrós), figura da imprensa neutra, se retira de cena, parcialmente inocentado.

Já o terceiro cavaleiro representa uma multidão famélica por pão e circo: “Vai rolar cerva mais tarde, mas como pôde o Domingos Montagner, forte daquele jeito, morrer afogado no beiço do São Francisco?”. Ao contrário do que o bibliotecário brasileiro pensa, pobre tira pão da própria boca para alimentar a alma com revistinhas de fofocas. O mercado de periódicos populares nunca esteve tão aquecido. Desnutrido, os olhos embotocados do cavaleiro perguntariam: “Casou-se velha demais ou endoidou-se pelo estudo excessivo?” E a Sra. Woolf, surpresa com tamanha avidez por mexericos, esbanjaria falácias: “Suspeito que o ditado esteja correto: ‘a voz do povo é a voz de Deus.’ Talvez tenha me casado tardiamente, já escrava da loucura. Ainda jovem, após o falecimento do meu pai, havia tentado dar cabo à minha dor. Desde então, a morte nunca mais me meteu medo. Na verdade, ela que fugiu triplamente da minha presença. Talvez tenha brincado com os reclames do meu corpo, ao me casar já na casa dos trinta. Estou convencida de que o filósofo Tácito[i] tinha razão ao dizer que ‘depois dos catorze anos, as mulheres não almejam mais do que a tornarem-se parceiras de cama do homem.” Quanto a ler e escrever em demasia, acabei sendo vítima de pecado capital, como bem sentenciou Lutero[ii]: “O pior adorno que uma mulher pode querer é ser sábia.” Portanto, a maldade dos sujeitos que me cercaram não me sequelou mortalmente. Sou a única responsável pelo sangue derramado. Satisfeito com a confissão?” As filigranas falseadas não mataram a fome do cavaleiro montado no cavalo negro. Impaciente, Virgínia esboçaria um golpe no braço da cadeira, e sugeriria ao cavaleiro famélico que procurasse, em quartos e tetos, outro corpo a ser devassado. Eu mesmo proporia ao cavaleiro que se lambuzasse da recente história do galã Alexandre Borges, com suas duas amigas trans. Seria ele uma bicha encubada ou um hetero em busca de novidades? E o casamento de 22 anos com Júlia Lemmertz não passou de um grande armário? Virgínia sorri, misericordiosamente, e o cavaleiro da fome, sempre faminto, agradece a suicida pelos babados.

Até agora, todos inocentados. Mas, quem precipitou nas águas a mãe de Orlando? Resta-nos o quarto e último cavaleiro. São João o intitula de morte e o avizinha ao inferno. O que mais pode ser dito a respeito? O seu cavalo, de nome Peste (em grego, híppos khlōrós, thánatos), tem coloração indefinida, transitando entre o verde amarelado e o amarelo esverdeado. A pelagem é tão aguada que lembra o cadáver em putrefação da Sra. Woolf, encontrado oito dias após o suicídio. O quarto cavaleiro a matou, mas, quem é ele, afinal? Pensava com os meus botões: o amarelo, representação do yang, força masculina, não deixa dúvidas tratar-se de um cenário dominado pelos homens. Lembrei-me de Virginia sendo expulsa da biblioteca de Oxford por um bibliotecário educadíssimo e intransigente com a disciplina[iii]. É ele o quarto cavaleiro, representante de todas as bibliotecas tiranas, com seus frontões custodiados por gente conservadora, renitente a sujeitos fora do padrão. O nobre senhor considerou-a, automaticamente indigna de ter acesso ao presente, passado e futuro – materializado em seu tridente de Shiva – por sua condição feminina. É provável que a tese de Aristóteles[iv], de que a mulher era um macho defeituoso, ainda vigorasse nos domínios da rainha Vitória. Restou à Virgínia dizer a ele: “Praguejei contra você e todos os algozes que nos violentam por meio da técnicas de desinformação.” Virgínia morreu sem ingressar naquele espaço gerido por gente maldita. Suspeito, que entre as vozes diabólicas das quais fez menção na carta deixada para seu marido Leonard constava a do quarto cavaleiro, o bibliotecário de mãos limpas.

O que eu lhe diria: “Lamento pelo que sofreu na biblioteca, Virgínia. Aquele cavalheiro não me representa. Tenho me esforçado para não converter meu corpo, nem minha baia em instrumentos de opressão. Meu lema é que o progresso se implante no limiar da não tradição, da desordem dos corpos e dos seus desejos, nem que para isso tenhamos que matar algo dele e reinventá-lo. Parece-me que Foucault[v] tem razão, Virginia: ‘A alma, prisão do corpo’. E não foi o que você fez, de certo modo? Com a morte, arrombou as fronteiras do vir a ser. Você dizia: ‘Tranque suas bibliotecas, se quiser, mas não há portão, nem fechadura, nem trinco que você consiga colocar na liberdade de minha mente.’ Tornou-se famosa, mãe e filha do modernismo. As águas do rio Oste te permitiram apaziguar barulhos que te perturbavam: pássaros cantando em grego e bibliotecários raivosamente neutros. Ah! Permita-me: imagino-te transitando pelas estantes de Oxford, exibindo teu sexo encharcado. Que vingança deliciosa: uma fêmea em pêlos, rindo das notações patéticas atribuídas por tipos sinistros. Vejo você gargalhando durante a leitura, tocando, seus mamilos, suavemente. Engana-se quem aposta em qualquer modalidade de prazer. O riso é de deboche. Asco. Puro asco pelo lido e pelo não lido. Quantas estantes esburacadas! No balcão de referência, enfrenta uma turba de bibliotecários verde-amarelados, ou vice-versa. Pelagem indefinida. Graças à habilidade adquirida no Hades, você perceberia que por trás dos vestidinhos recatados e óculos aros de tartaruga, escondem andróginos, trans, bigêneros, cis, duplo espírito, queer, gênero fluido, MTF, FTM, intersex, pangênero. Dolorosa constatação: corpos múltiplos e lunáticos, gerando, por meio de seus produtos e serviços, corpos pasteurizados. Já não mais se enfureceria quando em vida, Virgínia. Sequer amaldiçoaria os filhos bastardos de São Jerônimo. Apenas agradeceria ao bibliotecário de Oxford, o quarto cavaleiro, pelo auxílio na empreitada do suicídio, e torceria para que bichas e sapatas se convençam do que disse em vida: “Pensei nas portas fechadas da biblioteca; e pensei em como é desagradável ser trancada do lado de fora; e pensei em como talvez seja pior ser trancada do lado de dentro.”

[i] TÁCITO. Oeuvres complètes avec la traduction en français. Paris: Firmin Didot frères, fils et Cie, 1869.

[ii] LUTERO, Martinho. The table talk of Martin Luther. London : H. G. Bohn, 1857. p. 367, tradução nossa.

[iii] WOOLF, V. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

[iv] ARISTÓTELES. Aristotle’s history of animals: in ten books. Charleston: Bibliolife, 2008.

[v] FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 30.

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