A obra literária Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, apresenta ataques violentos à sociedade do seu tempo, por meio das descrições caricaturescas das misérias, costumes, injustiças econômicas, corrupção humana e dos sofrimentos da grande massa popular.

O escritor irlandês usa a literatura para registro desses fatos que assolavam a Inglaterra e a sociedade europeia dos séculos XVII e XVIII. Todo esse ambiente de injustiças, dissidências partidárias, desprezo pelo mérito pessoal, a escravidão dos pobres e dos pequeninos, a bajulação – tudo isso contrariava o ideal cristão da vida, a concepção cristã do homem espiritual, em que se educara Swift. Daí a inevitável fuga, através da válvula de escape para a qual ele mais pendia: a sátira.

A primeira das quatro viagens do médico Lemuel Gulliver é uma narrativa que conquistou milhares de gerações desde sua publicação. A sátira swiftiana às sociedades de Lilipute e Blefuscu fez com que a história do gigante em meio à terra de seres de seis polegadas de estatura se consolidasse como uma referência literária para os estudos da literatura, política, sociologia e história.

A partir do século XVIII, Viagens de Gulliver estabeleceu-se como um texto dupla-face, sendo apreciado tanto para a diversão como veículo de sátira e reflexão. Devido a isso o trabalho do autor irlandês passa a acomodar-se a diferentes públicos e gostos, tornando a obra sucesso mundial. Tomando conhecimento disto, a chamada sétima arte (o cinema) buscou referências nas aventuras de Swift para criar as chamadas adaptações.

Capa de uma das edições brasileiras de “Viagens de Gulliver”. Imagem: divulgação

Em meio a essas frequentes adaptações para o meio cinematográfico – na medida em que isso possibilita uma releitura da obra, e não a busca de uma correspondência imediata e pontual entre a história original –  que buscamos estudar comparativamente a primeira viagem do livro de Swift e a versão fílmica do ano de 2010, sob a ótica do cineasta Rob Letterman. A narrativa cinematográfica é um texto composto por sons, imagens e discursos verbais necessários para a compreensão do espectador.

Quando um roteiro é adaptado de um livro ou conto literário, ele passa a ser outro texto, visto que as técnicas de linguagem, embora consistam em algumas similaridades, são descritas por elementos que as diferenciam. Com base nos estudos das relações entre a literatura e o cinema, buscaremos destacar pontos de convergência e divergência entre a narrativa fílmica e a literária.

Assim, buscamos discutir neste artigo a relação entre literatura e cinema, visando apresentar como a obra literária de Jonathan Swift é utilizada para criação fílmica das Viagens de Gulliver em 2010. Para tanto, utilizamos como suportes teóricos fundamentais os estudos desenvolvidos por Randal Johnson (1982), Ismail Xavier (2003) e Robert Stam (2006).

Os autores supracitados entendem que a literatura é uma fonte inesgotável para inspirar inúmeros cineastas na produção de enredos fílmicos. Apresentamos uma análise que compara a obra de Swift e o trabalho cinematográfico de Letterman. Buscamos pontos de convergência e divergência entre as narrativas, apresentando diálogos entre a narrativa literária e fílmica. Por questões didáticas, analisamos os pontos coincidentes e divergentes separadamente.

Nos pontos de convergência enfatizamos, através de passagens da obra literária, diálogos e descrições de cenas do filme, ressaltando as ideologias e elementos que unem os trabalhos, ainda que o filme fosse construído sob o viés da comédia cinematográfica e o trabalho de Swift através da sátira.

Prosseguindo a análise, enumeramos os pontos que divergem do texto original, afirmando que as mudanças são aceitáveis, já que estamos diante de outra obra. Destacamos, então, três temáticas: a influência da indústria cultural norte-americana, o discurso emancipatório feminino e o hibridismo social na sociedade de Lilipute, que se apresentam sutilmente na narrativa fílmica, mas considerados pertinentes à realidade social contemporânea.

Da sátira swifitiana à comédia da Twentieth Century Fox

Não é nosso objetivo propor uma superexaltação da obra literária e um rebaixamento da produção cinematográfica. Enfatizamos que a literatura e o cinema apresentam linguagens diferenciadas e que sempre será difícil elaborar conceitos fixos e exatos entre ambas.

Como aponta Naiara Araújo, ao tratar sobre esse assunto: se assim não o fosse, a literatura não teria sido, desde sempre a principal fonte de inspiração para os produtores fílmicos. Diante disso, analisamos comparativamente a obra literária Viagens de Gulliver, do escritor irlandês Jonathan Swift e a obra cinematográfica homônima do diretor Rob Letterman.

Procuramos mostrar pontos de divergências e convergências existentes entre a obra e a narrativa fílmica do cineasta norte-americano. No entanto, não vamos nos ater a discussões acerca de fidelidade à obra original, uma vez que isso não constitui o foco de nossa discussão.

Pontos de Convergência entre Viagens de Gulliver de Jonathan Swift e de Rob Letterman

A obra literária foi adaptada várias vezes para filmes, televisão e rádio, nos anos de 1960, 1968, 1977, 1979, 1982, 1992, 1996, 1999, 2005 e, recentemente, ganhou uma adaptação para o cinema no ano de 2010, com o roteiro assinado por Joe Stillman e Nicholas Stoller e dirigido por Rob Letterman.

Os roteiristas e o diretor optam pela comédia cinematográfica, mas mesmo em meio a uma nova releitura do texto de Swift, há a preocupação na preservação de temas já debatidos pelo autor irlandês, como a sátira às guerras, ao governo autocrático, a difusão de ideias de indivíduos mais capacitados e superiores em virtude de um status social.

Ao mesmo tempo, por se tratar de uma nova obra, Letterman e demais auxiliares acrescentam novas mensagens para os espectadores, tais como o resgate dos valores éticos (a cooperação, amor ao próximo, amizade e respeito – que de certa forma estão apagando-se na sociedade contemporânea), a revolução tecnológica – suas causas e efeitos sobre as camadas sociais; consumismo e entretenimento como fatores aceleradores do pensamento individualista e egoísta na sociedade pós-moderna.

Neste primeiro momento, apresentaremos os principais elementos, que nos mostram as ligações desta obra fílmica com a produção literária de Swift. Na versão cinematográfica, Lemuel Gulliver é um entregador de correspondência, da Tribuna de Nova York, jornal da cidade.

O protagonista é cheio de medos e crises existenciais. Letterman explora este assunto mostrando que Gulliver só consegue superá-los (o amor platônico pela editora do jornal, de obter uma posição mais elevada no jornal em que trabalha e de deixar de ser um “perdedor”) a partir do momento em que passa a valorizar o seu próximo.

O hibridismo social na adaptação cinematográfica de Letterman

Ao analisarmos a obra fílmica buscando apresentar os aspectos divergentes, nos deparamos com a apresentação de uma sociedade híbrida na versão cinematográfica. A população liliputiana do filme não possui o mesmo perfil daquela descrita por Swift

Como estava imerso na cultura inglesa do século XVII, o escritor retratou o perfil dos europeus, embora já houvesse outras raças que compunham aquela sociedade, mas na grande maioria das vezes não eram consideradas como integrantes dela. A sociedade americana da qual o diretor faz parte, está classificada pelo censo oficial em raças ou grupos étnicos, “apenas para a organização estatística”.

São seis categorias, e cada cidadão ou residente pode escolher mais de uma categoria: o branco, o negro (ou afro-americano), os nativos americanos, os asiáticos e outras raças. São estas diferentes raças que compõem o enredo fílmico.  Destacando que a obra atual direciona o trabalho para diversidade racial existente na sociedade pós-moderna, que outrora foi descartada nos séculos XVII e XVIII. O pensamento difundido nestes períodos era que a “raça pura” e única eram os brancos.

Cartaz do filme de Rob Letterman. Imagem: divulgação

Em algumas cenas do filme verificamos que a composição da sociedade liliputiana se faz por diversas raças, que não são mencionadas no texto-fonte. Mas que devido ao contexto social em que se insere o cineasta, explica-se o sentido de cada uma. As imagens indicam que diferentes raças compõem o enredo fílmico. Algo compreensível para os dias atuais levando-se em consideração o grande número de etnias que são tidas como formadoras da sociedade contemporânea.

Não podemos, no entanto, afirmar que o mesmo acontecia no corpo social dos liliputianos, visto que nos séculos XVII e XVIII seria impensável um negro ou um asiático ocupar posições militares dentro da comunidade inglesa como se pode ver em cenas do filme.

Acreditamos que ao propor uma sociedade híbrida em seu trabalho, o cineasta propõe a quebra deste pensamento tão divulgado nos séculos passados e que serviram e servem como suporte para levantamento de guerras na sociedade pós-moderna, como ainda podemos presenciar nos noticiários, especialmente nas regiões do Oriente Médio. O assunto é explorado no filme de forma sutil assim como afirmamos em relação acerca dos direito femininos. Este tema é tão polêmico quanto o que citamos anteriormente.

No decorrer dos séculos XIX, por exemplo, um grande número de estudantes era instruído nos centros educacionais da época sob uma teoria que falava em raças ditas “boas” e “ruins”. Filósofos, antropólogos e geneticistas da época preocuparam-se em distinguir três raças humanas: a raça negra (descendentes de Cam) povoou a África, onde ela ainda germina e deve ficar separada das demais; uma raça amarela (descendentes de Sem) que foi sendo desenvolvida pela Ásia oriental; os chineses, e seus mais numerosos representantes, acabaram atingindo uma civilização um pouco melhor que a anterior; e a última, a raça branca, era a mais importante para se conhecer, pois é aquela que dominou e domina ainda o mundo.

Colocar o discurso da igualdade de raças, portanto, torna-se relevante uma vez que a própria cultura da região norte americana e de outras regiões do mundo é construída com base nas relações entre as varias etnias existentes em nosso mundo pós-moderno.  A busca pela aceitação de outras raças ainda é tema discutido nas sociedades. Ao olharmos para décadas anteriores destacamos as situações dramáticas advindas com as loucuras nazistas e as do apartheid na África do Sul. Ambas causaram tormentos sociais terríveis.

Os nazistas exterminaram milhões de pessoas, principalmente judeus, em nome da purificação da raça. Nos Estados Unidos, especificamente, houve períodos de intensas revoltas por uma defesa da raça branca como sendo superior às demais. Nos anos de 1861 a 1865, a Klu Klux Klan (KKK) nasceu como subproduto da Guerra Civil americana, iniciada pelos estados do sul inconformados com o fim da escravidão.

A mais radical sociedade de ódio americana espalhava o pavor entre os negros, planejando ataques e promovendo matar aqueles que haviam sido libertos. Ao visualizarmos uma sociedade mista, entendemos que o cineasta pretende mostrar que as diferentes raças podem e conseguem conviver harmonicamente.

Mostrando-se então, contrário aos pensamentos supracitados. O próprio país do diretor esteve mergulhado em lutas pela distinção e seleção das raças existentes lá. Neste ponto, percebemos que as divergências na obra cinematográfica não vêm desmoralizar ou rebaixar o trabalho de Swift, ao contrário, essas diferenças contribuem para retomarmos discussões que não foram foco do trabalho original.

As circunstâncias sócio-históricas que o cineasta faz questão apresentar, ainda que de uma forma comedida, demonstra o quanto a sociedade mundial progrediu e o quanto o próprio país norte-americano avançou no assunto em relação a épocas anteriores.

As relações que se estabelecem entre o cinema e a literatura, ainda existindo diversidades entre elas, propiciaram que um grande número de narrativas literárias ganhasse enredos cinematográficos. A arte da palavra (a literatura) passou a emprestar seus roteiros para que a arte da imagem (o cinema) os concretizasse sob o olhar digital. Através das pesquisas que viabilizaram a construção e finalização deste trabalho, defendemos a ideia de que foi essa liberdade do “olhar digital” que fez com que o cinema se firmasse como uma grande arte. Debater acerca de hierarquias entre os dois meios artísticos é algo que vem sendo descartado pelos estudiosos e críticos, que estudam comparativamente trabalhos envolvendo a literatura e o cinema.

Concordamos com a ideia defendida por Stam (2006) de que é necessário deixar de nos determos em infindas discussões sobre qual das duas artes é mais relevante. Mas devemos olhar às produções fílmicas como obras que assim como as literárias tem o potencial de divulgar mensagens completas e profundas, e podem atender às necessidades humanas tão bem como as produzidas pela literatura. Diante de tudo que foi exposto, anteriormente, partimos, então, para a análise do trabalho de adaptação fílmica das Viagens de Gulliver do ano de 2010.

Aproveitando-se de um enredo tão bem elaborado por Swift e apreciado mundialmente por crianças, jovens e adultos o meio cinematográfico não mediu esforços para transpor da literatura para “a lente da câmera” as incríveis histórias descritas por Swift. Uma infinidade de séries infantis e versões fílmicas começaram a surgir, ora retratando fielmente as aventuras do médico Lemuel Gulliver, ora recriando a narrativa e moldando-a de acordo com as conveniências do ambiente cinematográfico.

A Fox Filmes, estúdio cinematográfico norte-americano, financiou o trabalho de adaptação da obra de Swift para as “telonas” de cinema. Rob Letterman foi encarregado de dirigir e apresentar aos espectadores a versão fílmica construída sob o gênero de comédia cinematográfica. Quando iniciamos a pesquisa para construção deste trabalho, percebemos uma série de críticas ao trabalho feito pelo cineasta.

Os meios midiáticos preocuparam-se em denunciar a infidelidade e desmoralização ao trabalho de Swift. A falta de compreensão entre os métodos de funcionamento de ambas as artes foi fator primordial para que se tecessem críticas tão ferrenhas à produção fílmica. No decorrer de nossa pesquisa nos preocupamos em traçar o modo de trabalho entre os dois meios. E é essa compreensão entre as diferenças das duas artes, bem como as circunstâncias sociais e históricas da produção e do consumo, que amplia nossa visão, quando nos deparamos com uma adaptação cinematográfica originada de obras consagradas.

No entanto, após todo esse estudo e pesquisa, afirmamos que não há pretensão alguma de desfazer o trabalho satírico. As temáticas descritas que são colocadas em evidência mostram quanto ainda temos a necessidade de avançar em pontos que Swift não frisou. E o cinema como uma arte tem a plena liberdade de evidenciá-los.

Logo, o bom desempenho da obra cinematográfica não depende apenas da fidelidade ao enredo original. Outros fatores que nos preocupamos em enumerar justificam o porquê da narrativa fílmica, Viagens de Gulliver, em alguns momentos recorrer à essência do que propôs Jonathan Swift, e em outros levantar uma série de inovações, levando ao espectador ideologias que no campo da literatura não foram presenciadas.

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