Há pouco mais de uma semana, o Brasil sofria uma perda irreparável para a história da ciência e da cultura.  O Museu Nacional (MN), que completou 200 anos neste ano, sofreu com um terrível incêndio na noite de domingo, 02 de setembro. A “tragédia anunciada”, como a mídia vem chamando, destruiu o Palácio do Imperador Dom Pedro II, bem como um grande número de artefatos não só da cultura brasileira, mas mundial.

Ando sem palavras para descrever o que sinto. Nos primeiros dias, queria que fosse um grande pesadelo e tinha a esperança que quando acordasse, voltaria tudo ao normal. Mas não foi assim que aconteceu. A realidade estava sendo dura para muitos que, assim como eu, tiveram o prazer de conviver nesta casa de excelência científica nacional.

Por isso, gostaria de compartilhar algumas memórias com todos. Não carrego memórias de infância e sim memórias profissionais. Por um acaso, o destino me colocou no Museu Nacional nos anos de 2011 a 2015, onde fui muito bem acolhida. Sim, tive a oportunidade de trabalhar nesta instituição renomada e ver de perto documentos únicos na Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional (SEMEAR/MN/UFRJ).

Faixada principal do Museu Nacional na oasião das comemorações dos seu 196 anos. Foto: Luciana Rodrigues / Arquivo pessoal

Embora as peças fossem antigas, tudo era novidade para mim. Como sou bibliotecária, no início me sentia um pouco deslocada em um arquivo histórico, mas com muita vontade de aprender um pouco mais das “três Marias”: a arquivologia e a museologia, dialogando com a biblioteconomia. E posso dizer: quanta coisa aprendi neste arquivo permanente/histórico do museu!

Todo dia era um aprendizado novo e não havia rotina, pois sempre havia uma demanda nova de pesquisa. Faziamos atendimento tanto para pesquisadores da própria instituição, quanto para de outras nacionais e até internacionais. Vou confessar a vocês, leitores, que havia horas em que eu sentia falta do trabalho monótono da catalogação na biblioteca (risos)… mas, ao mesmo tempo, era um desafio enriquecedor estar ali e conhecer um pouco mais da história da ciência nacional.

Através do acervo institucional e de acervos privados de cientistas que passaram pela instituição, ficávamos “íntimos” das grandes personalidades: Bertha [Lutz], Hat [Heloisa Alberto Torres], Lygia [Sigaud], Feio [José Feio], Roquette [Edgar Roquette-Pinto] etc.

E conhecíamos a nossa história nos originais sobre a luta pelo feminismo e o início da Educação Museal no Brasil com Bertha Lutz, a luta pela terra dos trabalhadores do campo no Brasil com Ligia Sigaud, a censura cinematográfica com Roquette-Pinto.  E como era gratificante mostrar para o público em geral os documentos na exposição que o setor preparava para as comemorações de aniversário do Museu.

Os “fundos”, como a arquivologia chama as suas coleções, que ficavam custodiados na SEMEAR, nos ensinavam muito sobre o passado, o presente e o futuro. Um passado de quase 200 anos (na época em que trabalhei foram dos 193 a 196 anos), pois a Seção custodiava entre seus arquivos o documento original de criação do MN, o primeiro museu brasileiro criado em 1818 por Dom João VI que, na época, chamava-se Museu Real.

Exposição do SEMEAR na comemoração dos 196 anos do MN. Foto: Luciana Rodrigues / Arquivo pessoal

Assim como a SEMEAR, o Museu possuía vários departamentos administrativos, científicos das pós-graduações e mais três unidades de informação: a Biblioteca do Museu (de Obras Raras), o Centro de Línguas Indígenas (CELIN) e a Biblioteca Francisca Keller (Biblioteca da Pós-graduação em Antropologia Social), estes dois últimos consumidos pelo incêndio.

No último dia 2 de setembro o Museu Nacional, que parecia ser eterno, estava incendiando e nos deixando perplexo diante das telas em busca de uma boa notícia. Uma profunda tristeza arrebatou muitos. Não só técnicos, professores, alunos, pesquisadores e frequentadores, como também boa parte da nação ficou de luto e publicou fotos pessoais mostrando a sua passagem pelo Museu. Os profissionais do MN estão iniciando a luta pela reconstrução através de diversas formas de doações nacionais e internacionais.

Além da enorme tristeza pela perda o Museu, como se tivesse perdido um ente querido ou  a minha segunda casa, também sinto uma sensação de impotência diante da situação que a educação e a cultura brasileira se encontram há décadas, uma revolta por saber que um país tão rico como o Brasil não precisaria passar por tal situação se houvesse investimento correto.

Triste realidade a nossa que trabalhamos com a informação e vemos cada vez há menos investimento nessa área. Triste saber que as instituições públicas estão sofrendo com cortes de verbas ocasionados pela Emenda Constitucional 95/2016 que congelou por 20 anos os gastos com a saúde, educação, entre outros segmentos.

Isto afetou diretamente à manutenção de prédios públicos, como a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional e tantos outros Museus de Universidades que já estavam numa situação bastante precária, a exemplo do MN. Triste saber que a verba pública, tanto para a reconstrução do Maracanã, quanto para a manutenção do Museu do Amanhã, eram superiores ao orçamento para as despesas da manutenção do Museu Nacional.

Também é triste saber que as línguas indígenas que não são mais faladas e compunham o acervo do CELIN agora foram totalmente silenciadas. Triste saber que ainda temos que agradecer que a tragédia não casou vítimas, mas muitas vidas científicas morreram ao ter suas pesquisas queimadas, inviabilizando tantas outras pesquisas que poderiam ser geradas. Triste saber que o Ministério Público Federal (MPF) pediu o fechamento imediato dos seis principais museus federais no Rio de Janeiro.

Que possamos aprender com essa tragédia que levou o Museu Nacional a perder boa parte das 20 milhões de obras. Segundo a vice-diretora do Museu, Cristina Serejo, foram salvas 1 milhão de peças que se localizavam nos prédios anexos ao Museu, a exemplo do Horto, além de duzentas e poucas peças indígenas que estão em exposição em Brasília.

Como cidadãos brasileiros e profissionais da informação, não podemos deixar isso no esquecimento. E preciso que o tema segurança de acervos fique sempre em pauta e  que tenhamos coragem de lutar por melhores condições de acervo, de trabalho e de visita aos museus, melhores condições para todos.

Ao ver fotos da época em que trabalhei lá, sinto uma saudade enorme e mesmo que reconstruam (pela previsão do Ministério levará uns 4 anos), nada será como antes. Concluo triste este meu desabafo com o pensamento de Luiz Carlos Mathias: “Um País que não preserva seu passado e sua História, não tem futuro”

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