Há muitos livros, em nossa existência de leitores comuns, que nos dão a impressão de que nasceram conosco, que sempre estiveram ao nosso lado. Até que chega a hora da verdade em que nos damos conta de que eles até podem ter sido companheiros, mas companheiros latentes, com quem nunca confraternizamos de fato. Entre profissionais, e também entre docentes e discentes, e outros que devem ler por obrigação de aprender e de escrever, isso parece ser mais comum do que se imagina. E há uma infinidade de razões. Uma das mais comuns é o fato de essa latência ser intrínseca à condição de maior ou menor dificuldade de acesso à língua em que foram escritos. Ou aprendemos a língua que eles ‘falam’, ou esperamos que alguém os converta à nossa língua. É um mundo bem vasto esse dos livros ‘conhecidos’, citados e nunca lidos. No mundo acadêmico, isso dá ensejo à subcultura do apud.

A biblioteconomia/documentação/informação se, durante muito tempo, careceu de produção bibliográfica, de extração local, voltada para as necessidades do ensino e da prática, mais carente era, e ainda é, no que se refere à tradução e edição de obras estrangeiras. E, quanto aos textos clássicos dessa área (clássico no sentido de ‘servir de modelo’, de ser ‘abonado ou autorizado por autores tidos como paradigmas’ (Houaiss), a situação era de penúria quase total.

Em 1957, Edson Nery da Fonseca fez, no Jornal do Brasil, onde manteve por algumas semanas uma coluna sobre documentação, uma enquete para saber quais obras de biblioteconomia deveriam ser traduzidas. Foram ouvidos sete experientes bibliotecários. Quase todos deram prioridade a livros que eram recentes. Cordélia Robalinho de Oliveira Cavalcanti, na época diretora dos serviços de biblioteca e do curso de biblioteconomia da Universidade do Recife, lembrou-se de Otlet, e declarou: “Quando tanto se fala em documentação, não poderia ser ignorado o monumental Traité de Paul Otlet, justamente chamado o ‘pai da documentação’”.[1]

Os sobreviventes dos tempos em que a biblioteconomia era uma profissão livre, ou seja, não exigia patente, brevê ou carteirinha para ser praticada, foram apresentados a alguns desses autores ‘clássicos’. Em minha memória rodava uma ciranda de avatares que correspondiam aos nossos clássicos. Unia-os não apenas essa identidade que os pósteros lhes atribuíram, mas também a ‘coincidência significativa’ (Jung) que era a presença do mesmo fonema no radical de seus nomes. Estavam sempre juntos e havia vozes que, de fora do grupo, pareciam entoar um cantochão: Naudé, Otlet, Briet, Gasset… Mosqueteiros do livro, da leitura e da informação aos quais se acrescentaria não um quarto, como d’Artagnan, mas um quinto, tão pouco lido e tão citado quanto eles: Ranganathan.

Talvez tenha sido para pôr fim a essa ciranda que, quando abri a editora Briquet de Lemos / Livros, estabeleci como uma de suas metas editar no vernáculo as obras desses autores. Decorridos doze anos da edição da Missão do bibliotecário, de Ortega y Gasset (2002), chegou a vez de Otlet, de seu tão famoso e tão pouco conhecido Traité de documentation.

Editado em 1934, é de se supor que, pelo menos no início da década seguinte, estivesse disponível nas livrarias do Rio e São Paulo. Essa suposição baseia-se na referência feita a ele na introdução que o poeta e crítico gaúcho Augusto Meyer, então diretor do Instituto Nacional do Livro, escreveu para a Bibliografia das bibliografias brasileiras, de Antônio Simões dos Reis, editada em 1942.

Capa de “Tratado de Documentação” de Paul Otlet. Imagem: divulgação

A impressão deste livro foi demorada e acidentada. Com os recursos gráficos disponíveis, ainda mais na Bélgica, é inacreditável que tenham sido necessários quase dois anos para compor e imprimir uma obra de cerca de 450 páginas e sem grande complexidade gráfica. Segundo informação no rodapé da segunda capa, os originais entraram em gráfica em outubro de 1932. A edição informa duas datas para o termino da impressão: no verso da página de rosto, abril e, no verso da capa, agosto de 1934, mês do fechamento do Palais Mondial, conforme indica o posfácio. Em nota no final do capítulo 2, Otlet informa que o trabalho de impressão foi interrompido em 1934, devido ao fechamento do Palais Mondial, quando a composição havia chegado à página 328. É razoável presumir, portanto, que esta seja uma obra inconclusa.

O livro se ressente dos problemas criados pela própria forma como trabalhava o autor e sua confessadamente péssima caligrafia, cuja compreensão exigia esforço que o fazia sentir pena de quem tivesse de ler seus manuscritos.

Em junho de 2018, escrevi para Stéphanie Manfroid, responsável pelos arquivos do Mundaneum, informando sobre erros tipográficos encontrados no texto. Ora eram coisas banais, outras vezes eram nomes próprios quase irreconhecíveis, letras trocadas; alguns eram facilmente identificáveis outros, não. Eis a resposta de Stéphanie Manfroid:

“As provas corrigidas do Traité de documentation não foram encontradas entre os papéis pessoais de Paul Otlet.

Encontrei, entretanto, alguns capítulos e diversas provas. Gostaria muito, se fosse possível, encontrá-las e colocá-las à disposição dos pesquisadores. Consegui identificar algumas principalmente graças à numeração sistemática adotada por Otlet. No começo, ele utilizou publicações ou comunicações feitas para profissionais da documentação ou do livro. Lembrando que ele dirigiu o Instituto Internacional de Bibliografia durante algumas décadas e depois interessou-se pelo ambiente do livro com o museu do livro. Enfim, as revistas e jornais também o interessaram por intermédio da Union de la Presse Périodique Belge. Assim, por volta de 1910, Paul Otlet possuía a estatura de um especialista em várias áreas, inclusive da pesquisa científica.

Quando suas instituições se desenvolvem, depois de 1910, sendo reunidas, após a Grande Guerra, no Palais Mondial / Mundaneum, ele se encontra à frente de um centro intelectual internacional onde a CDU é o instrumento metodológico de ordenação e pesquisa.

Outra informação muito útil: sua letra é ruim. Ele é vítima da impaciência de seu pensamento e de sua vivacidade. A leitura de sua escrita é bem difícil (envio-lhe uma amostra). Como consequência direta disso, tratamos de organizar a transcrição de seus escritos, inclusive os memorandos e as normas administrativas. Contamos com uma equipe que se declara impotente diante de sua letra, uma equipe que tem a incumbência de transcrever seus memorandos. Estes são então numerados e colocados no documento, como anexo, com o título de notas numeradas.

Depois de inúmeras leituras, passei a conhecer melhor sua letra. No entanto, decifrá-la nem sempre permite que se apreenda e compreenda o conteúdo. Às vezes, a transcrição está errada.

A organização das anotações de Paul Otlet é rigorosa quanto à numeração e contínua.

Além disso, nos anos trinta, quando ele precisava de ajuda para enviar correspondência, recorria à esposa.

Reitero minha mensagem de estímulo ao trabalho em curso. De meu lado a experiência acumulada durante quase 16 anos a serviço dos arquivos de Paul Otlet me permite ter uma ideia sobre a maneira como ele trabalhava e também sugerir pistas para reflexões sobre a conservação do arquivo e sobretudo o trabalho desse teórico da documentação (se nos ativermos somente a esse campo!).

Se o senhor puder me passar detalhes sobre sua iniciativa, terei muito prazer em divulgá-la em nosso site na internet, caso seja de seu agrado.

Aqui, cuido de velar pelo acesso adequado aos trabalhos concluídos e pelas pesquisas que o arquivo possibilita.

Cordialmente

Manfroid Stéphanie, Responsable des Archives”

Para ajudá-lo na edição, Otlet contratou uma amiga da família, a jovem holandesa, de 20 anos, Milisa Coops (Wilhelmina Emilia Suzanna Coops) (1912–2006), que fora para a Bélgica para melhorar seu francês. No depoimento que prestou a Françoise Levie, diretora do documentário The man who wanted to classify the world, sobre Otlet, ela diz:

“A obra [Traité de Documentation] estava pronta, mas precisava ser revista. O professor Otlet tinha uma letra muito pouco legível, e não era fácil para o editor decifrar o manuscrito. Eu corrigia as provas. Às vezes havia uma palavra que nem o tipógrafo nem eu podíamos entender e era preciso então pedir ajuda ao professor Otlet, que, na maioria das vezes, não tinha tempo! Eu fazia todo o possível para tornar o texto mais compreensível! Usava óculos especiais. Trabalhava na casa dele, na rua Fétis, e, durante seis meses sentamo-nos à mesma mesa.”[2]

O trabalho de Milisa, pelo que se vê nas amostras acima da letra de Otlet, não foi fácil. Mas, bem ou mal o livro aconteceu.

A edição espanhola incluiu ‘notas críticas de la traductora’ que fala dos obstáculos sintáticos e linguísticos que enfrentou, chegando a atribuir alguns desses obstáculos a uma influência ‘valona’, isto é, do francês falado na Bélgica. Acredito que outros motivos pesaram mais nas deficiências editoriais do tratado. Levem-se em conta, além das idiossincrasias do autor, sua sofreguidão intelectual, a amplitude de seus compromissos, as tensões econômicas e políticas daquele momento na Europa, que punham em risco a sobrevivência do grandioso (megalômano?) projeto do Mundaneum. Jean-François Füeg, que foi diretor do Mundaneum, comenta, no documentário narrado por W. Boyd Raymond, que Otlet fazia muitas coisas ao mesmo tempo, jamais conseguia se concentrar em um único objetivo e até os painéis expostos no museu eram mal-feitos, improvisados, caseiros, bricolés.[3]

Voltemos ao início da história desta tradução. Em 2010, foi infrutífera a tentativa de localizar os herdeiros de Otlet para negociar a aquisição de licença de tradução para o português. Em janeiro de 2017, tendo a obra caído em domínio público, aproximava-se a possibilidade de Paul Otlet se dirigir a seus leitores em português, à semelhança de seus outros colegas do panteão dos clássicos, a saber, Naudé, Ortega y Gasset, Briet e Ranganathan. Afinal, fazia tempos que o Traité de documentation fora apresentado a seus potenciais leitores brasileiros.

Em julho de 2017, lancei por uma rede social a ideia de fazer uma tradução cooperativa. Rapidamente formou-se um grupo de 31 voluntários, que selecionaram os trechos que gostaram de traduzir, a partir de uma lista onde o livro fora dividido em 41 grupos de páginas. Não se estabeleceu o máximo de páginas que cada um poderia escolher e tampouco definiu-se um prazo de conclusão do trabalho, caracterizado como estritamente voluntário e sem remuneração.

Com o passar do tempo, alguns desistiram. Houve, então, redistribuição do trabalho entre colaboradores que se prontificaram a assumir essa tarefa adicional. Foram 23 colaboradores que traduziram as seções indicadas entre parênteses: Taiguara Villela Aldabalde e Virginia Arana (seções 233.2 a 240.4), Letícia Alves (242.2 a 242.34), Silva Arduini e Ana Regina Luz Lacerda (262 a 262.442), Cristian Brayner (231.15 a 233.1, 242.4 a 242.63, 243.34 a 243.74, 257.6 a 258.2), Marcílio de Brito (241.7 a 242.19 e 243 a 243.334), Magno Evangelista (42 a 422.12), Maria Yêda de Filgueiras Gomes (422.2 a 422.34), Guillaume Achiles Clair Marie Isnard Filho (253.23 a 253.29) Nair Kobashi (seções 256 a 257.7), Antonio Agenor Briquet de Lemos (artigo de W. Boyd Rayward, capítulos 0 e 1, seções 221.4 a 223,2, 231 a 231,14, 241.22 a 241.328, 241.4 a 241.6, 243.75 a 253.0, 422.35 a 425.22), Ercilia Mendonça (253.1 a 253.22), José Antonio Pereira do Nascimento (262.443 a 265.2), Martha Suzana Nunes (253.29 a 255.1), Regina Obata (5 a 53, 225 até a alínea e de 230), Edmir Perrotti (255.2 a 255.5), Ivete Pieruccini (255.6 a 255.85), Alice Araújo Marques de Sá (242.35 a 242.38 e 259 a 261.4), Camila Silva (240.5 a 241.214), Max Evangelista da Sila (211 a 212.5), Johanna Wilhelmina Smit (4 a 417), Rosemeri Bernieri de Souza (22 a 221.13 e 222.3 a 223.1), Maria Carolina de Deus Vieira (265.3 a 283.4 e 30 a 324).

Os textos traduzidos foram revistos e editorialmente uniformizados pelo mentor do projeto, que também redigiu as notas marginais.

Os tradutores basearam-se no texto digitalizado disponível na internet, trabalho feito originalmente pela universidade de Gent, e disponibilizado pelo Internet Archive e pelo Wikisource, neste caso acompanhado do texto digitado.

Com as facilidades oferecidas pela internet e a existência em formato digital de obras citadas por Otlet, foi possível corrigir muitas das deficiências que ocorreram entre o registro em forma manuscrita e sua conversão para a composição em linotipo e a impressão. Quando possível, verificamos as citações e as referências bibliográficas. Muitos dos autores citados tiveram seus nomes verificados e, quando possível, corrigidos. Quando relevante, indica-se a correção feita. As notas marginais registram as intervenções de responsabilidade desta tradução e são identificadas pelas iniciais n. e. b. (nota da edição brasileira). Quando não foi possível elucidar uma dúvida no original, fez-se a tradução literal seguida da ressalva sic no próprio texto. Repetições e interrupções do texto original são indicadas por meio de notas marginais.

Os nomes de instituições nacionais estrangeiras foram grafados na respectiva língua. Eventualmente, diante da dificuldade de conhecer com precisão os nomes autorizados na língua do país, optou-se por não usar iniciais maiúsculas, sem prejuízo da compreensão da informação respectiva. Nomes russos e de outras origens que em textos de língua francesa soem ser escritos de modo ortograficamente afrancesado (ex., Roubakine) foram grafados conforme os preceitos gerais de transliteração (ex., Rubakin). Não se atualizaram os topônimos (ex., Pérsia, não Irã). Foram omitidos os pontos interliterais nas siglas (ex., URSS e não U.R.S.S.).

Como aconteceu com os outros clássicos que editamos, esta tradução exigia material adicional que explicasse, em grandes linhas, a importância de Otlet, antes e agora. A escolha de um artigo de W. Boyd Reward, o estudioso que, de certa forma, promoveu o renascimento de Paul Otlet, explica-se por si só.

Mas era preciso falar de Otlet no Brasil e seria bom que fosse alguém que, como Boyd Reward, tivesse vasculhado as fontes primárias, nossas fontes primárias. E ninguém melhor do que Carlos Henrique Juvêncio, que tanto pesquisou sobre as relações do Instituto Internacional de Bibliografia com a Biblioteca Nacional, para nos fazer pensar naqueles tempos em que começávamos a perceber que a troca de informações pode ajudar a romper fronteiras e aproximar os povos.

Esta é uma tradução aberta e em progresso. Comentários quanto a alternativas mais adequadas do que as que foram registradas pelos tradutores serão bem-vindos. Também pretendemos ampliar a verificação dos nomes de autores e das citações junto com a elaboração do índice onomástico. Isso será incluído em versões futuras. Esta é a versão 1.0.

A Stéphanie Manfroid, W. Boyd Rayward e Carlos Henrique Juvêncio os agradecimentos de toda a equipe responsável por esta tradução.

Além dos tradutores mencionados na página de rosto, este trabalho contou com a ajuda de Tarcisio Zandonade na tradução de textos latinos. Maria Lucia Vilar de Lemos foi a interlocutora sempre presente com críticas e sugestões.

A primeira reimpressão fac-similar do Traité foi feita em 1989 pelo Centre de Lecture Publique de la Communauté Française, de Liège. Em 2015, com o título alterado para Le livre sur le livre: traité de documentation, saiu nova edição fac-similar, feita pela editora belga Les Impressions Nouvellles, enriquecida com prefácios de Sylvie Fayet-Scribe, Benoît Peeters, Alex Wright. Digitalizações disponíveis na internet. Ver aqui, aqui, aqui e aqui.

É importante citar o projeto HyperOtlet, interinstitucional e interdisciplinar, do Centre Maurice Halbwachs (CNRS), de Paris, em colaboração com a École Nationale Supérieure des Sciences de l’Information et des Bibliothèques (ENSSIB), de Lyon, o laboratório MICA (Médiations, Informations, Communication, Arts) da Université Bordeaux-Montaigne, o Mundaneum, de Mons, Bélgica, e a Maison des Sciences de l’Homme (MSH-Paris Nord), que tem o objetivo de situar o Traité em sua complexidade contextual e pôr à disposição dos especialistas uma edição crítica, apoiada na proposta de ‘hiperdocumento’. Não apenas um texto melhorado, mas um texto decomposto em documentos, passíveis de proporcionar novos enriquecimentos, organizações e modelagens. Teve início em 2017 com término previsto para 2020. Ver aqui.

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Conferir as antecipações de Otlet é enriquecedor e divertido. Veja-se, por exemplo, como soam atuais os conceitos de ‘hiperdocumentação’ e ‘hiperinteligência’ que estão na seção 53 deste tratado. Aliás, uma recomendação: comecem a ler o livro pelo fim, a partir da seção 52 (‘O problema da documentação’). Terão a sensação de estar dialogando com um nosso contemporâneo. E mais contemporâneo do que muitos que andam por aí…

*Texto de introdução à tradução para o português de “Tratado de Documentação”, de Paul Otlet, num esforço do editor Antonio Agenor Briquet de Lemos, juntamente com diversos outros profissionais.

[1]  Suplemento Dominical do JB (2º caderno), nº 251, 27 out. 1957.

[2]  Levie, Françoise. Filmer Paul Otlet. Cahiers de la documentation – Bladen voor documentatie – 2012/2, p. 74-78. Disponível em: https://www.abd-bvd.be/wp-content/uploads/2012-2_Levie.pdf

[3]  Alle kennis van de wereld: het papieren internet, filme documentário criado e dirigido por Ijsbrand van Veelen para o programa Noordelicht, mostrado em 1º de novembro de 1998. Disponível, na versão original, em inglês e francês, em: https://archive.org/details/paulotlet

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